DIA 04
10) Quando Rocketman, cinebiografia do cantor Elton John, tem início, vemos o protagonista chegando dramaticamente em uma reunião dos Alcoólatras Anônimos vestido a caráter - e se você apenas já ouviu falar do britânico, pode imaginar que “a caráter” neste caso envolve um figurino brilhante, elaborado e absurdo. Ao longo das duas horas seguintes, retornaremos pontualmente a esta sala enquanto Elton John recorda passagens importantes de sua vida e carreira, removendo gradualmente a fantasia num simbolismo óbvio que o filme parece julgar brilhante.
Estes primeiros minutos de projeção são também os mais inquietantes, pois ameaçam seguir a mais do que batida estrutura do gênero e que foi destruída para sempre pela comédia A Vida é Dura: A História de Dewey Cox (Walk Hard), um dos melhores exemplos de crítica cinematografia em forma de filme já produzidos. E, até certo ponto, o longa segue estas convenções, embora também tente se distanciar destas o bastante para não se tornar insuportável. Na verdade, Rocketman consegue até mesmo criar diversas sequências memoráveis, embora estas infelizmente sejam reequilibradas por outras que beiram o embaraço completo.
Tomemos, como exemplo, estes momentos iniciais: ao se lembrar da infância, o protagonista (Taron Elgart) enxerga sua versão mirim em uma bicicleta no canto da sala numa daquelas “visões” que filmes como este usam como sinal de uma memória dolorosa que retorna. Porém, quando estamos prestes a gritar “sério?” na direção da tela, o roteiro de Lee Hall atira o sujeito em um número musical envolvendo dezenas de dançarinos em uma imagem dessaturada na qual os únicos a manterem a cor são os dois Eltons, adulto e criança. É original? Não, mas é melhor do que só enfocar o sujeito cantando com os olhos distantes. Aliás, o elemento mais forte de Rocketman é exatamente a concepção das sequências musicais – e não apenas porque as músicas são contagiantes (e são), mas por envolver coreografias elaboradas que o diretor Dexter Fletcher (responsável por finalizar o irritante Bohemian Rhapsody depois da demissão de Bryan Singer) concebe através de planos longos e em quadros abertos que permitem que o público veja os dançarinos de corpo inteiro enquanto a câmera desliza entre todos (e o fato de o design de produção pincelar tudo em cores fortes e marcantes coordenadas entre cenários e figurinos torna tudo melhor).
O que o longa compreende é que uma cinebiografia como esta não deve depender somente das canções do homenageado (caso contrário, bastaria vermos um registro de seus shows), mas no contexto no qual estas são inseridas na narrativa. Neste aspecto, Rocketman merece fartos aplausos, pois com frequência aposta em imagens que nos inserem no estado emocional de Elton John ou em seu encanto pela música – como na cena em que, ainda menino, imagina estar conduzindo uma orquestra que, então, é vista sob a luz oscilante da lanterna que ele carrega. Do mesmo modo, quando o artista entra no palco para sua primeira apresentação no Troubadour, o tempo parece correr mais lentamente como reflexo de seu nervosismo, ao passo que, segundos depois, ele e toda a plateia surgem flutuando como uma representação literal do júbilo que a música traz ao cantor e ao seu público. Esta lógica, por sinal, também se mostra presente em instantes icônicos da carreira de Elton – como no plano que parece congelar momentaneamente quando este recebe um envelope com as letras escritas por aquele que viria a ser seu parceiro artístico por décadas, Bernie Taupin (Jamie Bell, excelente como de hábito).
Por falar nas letras, uma grande importância é conferida pelo filme às músicas (especialmente os versos) como reveladoras do estado mental de Elton John em cada época, como se estas fossem expressões pessoais de suas preocupações – contudo, ao mesmo tempo o roteiro ressalta diversas vezes que as palavras em si vieram em grande parte de Taupin, o que complica a lógica estrutural da narrativa. Ainda assim, elas fazem um trabalho melhor em revelar mais sobre o compositor do que as composições caricatas de Bryce Dallas Howard e Steven Mackintosh como seus monstruosos pais ou a de Richard Madden como seu ex-empresário e ex-namorado (e vilão oficial do longa) John Reid.
O que nos traz a Taron Egerton, que, depois de alcançar o estrelato com os dois ótimos Kingsman, oferece aqui alguns dos melhores – e também piores – momentos de sua carreira. Para começo de conversa, o óbvio: fisicamente, o ator não poderia ser mais diferente do personagem, algo que nem as toneladas de maquiagem e peruca conseguem solucionar (e seu porte atlético, em especial, está a anos-luz da silhueta do verdadeiro Elton John). Mesmo assim, Egerton evoca a postura apropriada, emulando a boca curvada para baixo, os meneares de cabeça e os movimentos do cantor no palco (e créditos adicionais devem ser conferidos por ter de fato cantado as músicas que ouvimos no filme). Em contrapartida, a partir da segunda metade da projeção ele se entrega frequentemente ao overacting, o que talvez seja resultado da falta de confiança no roteiro para sugerir o estado mental do protagonista, já que chegamos ao fim da obra ainda sem uma ideia clara de como Reginald Dwight se tornou Elton Hercules John (a única coisa que fica patente é sua genialidade como músico).
Mas o maior obstáculo de Rocketman reside no desespero do roteirista Lee Hall para encontrar algum arco dramático que ancore a narrativa. Considerando que o caminho de Elton John rumo à fama parece ter sido relativamente tranquilo, Hall tenta forçar um clássico ascensão-apogeu-decadência-crise-recuperação-glória ao trazer o músico se questionando frequentemente sobre quem “é” – mas nem o filme, nem Taron Egerton parecem acreditar muito no recurso, que soa artificial e melodramático. Para piorar, isto leva a dois momentos pavorosos: aquele em que, surfando sobre a plateia, o protagonista relembra todas as crueldades que ouviu em sua vid... nas duas horas anteriores, e – ainda mais constrangedor – a cena “catártica” na qual se reconcilia com os espectros/lembranças/imagens daqueles que cruzaram seu caminho.
Já a música não tem pontos baixos. E isso já é um consolo.
11) Um estado autoritário e repressor não precisa ser construído em um só golpe. Alguns dos mais letais, ao contrário, foram e são aqueles surgidos uma limitação por vez, implementando uma lei aqui, incentivando a violência policial acolá, como paredes que se erguem tão lentamente ao redor da pessoa que, quando esta se dá conta, já está dentro de uma cela.
Papicha, longa da diretora argelina Mounia Meddour, compreende bem este risco. Inspirado nas memórias de juventude da cineasta como estudante universitária na Argélia dos anos 90 (e, portanto, durante a Guerra Civil que daria origem à "década negra"), o filme acompanha Nedjma (Lyna Khoudri), que busca uma graduação em francês ao mesmo tempo em que desenvolve sua verdadeira paixão, design de moda, criando roupas sob encomenda e entregando-as clandestinamente nos banheiros de boates da cidade, já que os fundamentalistas religiosos que tomam conta do país vêm se tornando cada vez mais violentos e radicais em suas imposições de "pudor" às mulheres. Testemunhando inquieta o crescimento das hostilidades e da dominância dos teocratas, ela e amiga Wassila (Shirine Boutella) resistem ao seu próprio modo: primeiro, arrancando os cartazes que tentam determinar o chandor como única vestimenta aceita para mulheres e, em seguida, planejando um desfile de moda em sua faculdade – o que, naquele contexto, é um protesto poderoso e, consequentemente, perigoso.
Retratando com precisão o mecanismo pelo qual o autoritarismo passa a dominar a sociedade, Meddour vai plantando os sinais de alarme aos poucos: inicialmente, panfletos e olhares condenatórios; a seguir, perseguição a professores que supostamente tentam "perverter" mentes jovens com algo perigosíssimo chamado "ideias"; e, finalmente, com a força bruta. Assim, ao lado de Nedjma o espectador testemunha com revolta (e impotência) a loucura coletiva que vai se estabelecendo como norma, assumindo também o ponto de vista de um grupo duplamente reprimido, o das mulheres, já que estamos ao lado da protagonista enquanto é constantemente assediada nas ruas da cidade, pelo porteiro de sua própria faculdade e surpreendida de forma negativa (e recorrente) pelos homens em sua vida, que podem até expressar uma visão progressista a princípio, mas logo revelam um machismo entranhado que se expressa assim que sentem que seus interesses deixaram de ser prioridade.
O que jamais devemos esquecer – e que Papicha lembra tão bem – é que o fundamentalismo é uma doença contagiosa que provoca intolerância, falsos sentimentos de superioridade e tende a se retroalimentar. E o mais importante: se apresenta de várias maneiras, seja ao obrigar as mulheres a cobrirem seus corpos com o chador preto ou ao afirmar, do alto de um ministério que deferia defender os interesses destas, que sua cor “certa” é o rosa.
12) Antes da sessão de The Climb, o diretor, ator e co-roteirista Michael Angelo Covino apresentou à plateia aquele que identificou como sendo seu melhor amigo, Kyle Marvin, com quem divide a tela e a autoria do roteiro do filme – no qual também interpretam dois amigos. Pois o filme se beneficia claramente desta afinidade, criando humor através da relação conturbada dos dois rapazes ao longo dos anos em uma narrativa que salta com destreza no tempo e exibe uma ambição impressionante ao ser construída através de longos planos-sequência. Divertido e caloroso, The Climb foi uma grata surpresa que merecia ser vista também fora do circuito dos festivais e resultar em mais oportunidades para seus dois simpáticos criadores.
13) Mistura de Os Invasores de Corpos e A Pequena Loja dos Horrores, a produção austríaca Little Joe também é um filme excessivamente longo e irritante. O primeiro problema é resultado de um roteiro prolixo que insiste em repetir a mesma dinâmica diversas vezes; o segundo é intencional, sendo alcançado através de uma trilha insuportável que começa querendo sugerir uma dissonância incômoda e acaba por se entregar à mais pura babaquice.
14) Até 2006, quando lançou o ótimo Volver, o espanhol Pedro Almodóvar parecia quase à prova de falhas. A esta altura, já havia dirigido obras ímpares como Matador, Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos, Ata-me, Tudo Sobre Minha Mãe, Fale com Ela e Má Educação – uma lista de fazer inveja em qualquer cineasta -, mas a partir daí os resultados começaram a piorar consideravelmente e sua estética particular deixou de parecer assinatura e se transformou em maneirismo. Ao mesmo tempo, depois de demonstrar um equilíbrio admirável no melodrama, ele perdeu a mão de vez em desastres como Abraços Partidos e Julieta, tropeçando também no humor forçado de Os Amantes Passageiros. Sim, no meio disso tudo veio o soberbo A Pele que Habito, um dos melhores de sua carreira, mas os equívocos já haviam se tornado numerosos o bastante para que seu novo filme, Dor & Glória, se tornasse uma incógnita.
E é um alívio vê-lo de volta à boa forma.
Desta vez, o protagonista é Salvador Mayo (Antonio Banderas), um diretor e roteirista que, atormentado por dores crônicas e emocionais, decidiu se afastar temporariamente do Cinema e já se encontra há três anos sem se dedicar a um projeto. Quando um de seus primeiros trabalhos ganha uma restauração da cinemateca espanhola, que também o convida para apresentar as sessões ao lado do ator Alberto Crespo (Asier Etxeandia), ele revisita o filme e, para sua surpresa, gosta do que vê, já que na época do lançamento original havia brigado com o protagonista por detestar sua performance. A partir daí, acompanhamos o sujeito enquanto restabelece contato com Alberto, entrega-se ao vício em heroína, descobre novos problemas de saúde e reflete sobre a infância pobre ao lado da mãe, Jacinta (Penélope Cruz).
É aqui que o espectador mais atento notaria a distância de três anos entre Dor & Glória e Julieta, filme anterior de Almodóvar, e também o fato de que seu sobrenome está todo contido em “Salvador Mayo”. Encarnado por Banderas como um homem triste, solitário e exausto o tempo todo, o personagem é ao mesmo tempo uma representação de paralisia criativa e das dores e ressentimentos que se acumulam ao longo da vida e subitamente retornam para cobrar um preço, sendo magistral a disciplina do ator ao ilustrar a natureza contida do personagem, que mesmo ao expressar suas mágoas busca tratá-las como algo inevitável a ser eventualmente compartimentalizado e deixado para trás. Com uma postura sempre rígida em função das dores nas costas, Salvador surge como um homem sem prazeres – e até suas experiências com a heroína soam desinteressadas e distantes. Por outro lado, seu afeto pela mãe é visível, sendo as cenas entre Banderas e a veterana Julieta Serrano, que interpreta a versão idosa de Jacinta, algumas das melhores da narrativa, contendo doçura e rancores numa mistura tocante (aliás, é a terceira vez que os dois interpretam mãe e filho para Almodóvar).
Dominando cada segundo que está em cena, Antonio Banderas confere uma delicadeza linda ao personagem, disparando um olhar infantilizado em direção à mãe, por exemplo, que resume sem necessidade de palavras como se posiciona diante desta. Da mesma maneira, a cena que divide com Leonardo Sbaraglia, que interpreta um antigo amor, é construída com paciência pelos dois atores, pelo diretor e pela montadora Teresa Font, que, juntos, condensam décadas de conversas perdidas em alguns minutos – e novamente os olhares são determinantes para o êxito desta magnífica passagem, revelando de expectativas a frustrações, passando por feridas reabertas e potencialmente cicatrizadas, lágrimas e brilhos, sem a necessidade de palavras ou movimentos. Fechando o elenco, Penélope Cruz projeta intensidade, severidade e ternura na mesma medida, ganhando uma dimensão mais ampla e ambígua graças ao surpreendente plano final da projeção.
Fluindo com ritmo pelas duas linhas temporais, Dor & Glória justifica sua estrutura não apenas nos já mencionados segundos finais do longa, mas ao oferecer pinceladas de informações que enriquecem as composições dos atores – e quando Banderas sorri rapidamente ao ver a pintura de um céu retratado através de grades no teto, por exemplo, compreendemos a lembrança que aquilo recupera e por que ele a apreciaria. Aliás, o design de produção do filme, como já seria de se esperar, é estupendo, imprimindo personalidade ao amplo e bem decorado apartamento de Salvador (além de sugerir sua solidão) e um primitivismo atraente ao seu lar de infância.
Não posso dizer, claro, o quão autobiográfico é Dor & Glória, mas se há algo que Salvador e Pedro certamente aprenderam bem ao longo dos anos é como digerir suas dores e transformá-las em Arte.
17 de Maio de 2019
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