DIA 05
15) É uma imagem estranha: no meio de uma pequena reentrância entre dois morros de areia, aquelas figuras caracterizadas como religiosos e soldados da primeira metade do século XV conversam de modo solene, em voz baixa e pausada. De tempos em tempos, um deles anuncia a chegada de mais um personagem, que se junta à discussão até se afastar lentamente. Trata-se de uma mise en scène teatral, com atores recitando seus diálogos de modo rígido. Aqui, num banco de areia; ali, no átrio colossal de uma catedral; acolá, em um campo de batalha - mas poderiam estar em um palco. No meio dele, a figura diminuta de uma adolescente de 14 anos vestida para a guerra: Joana d’Arc (Lise Leplat Prudhomme).
Comandado pelo francês Bruno Dumont como continuação de seu Jeannette: A Infância de Joana d’Arc, este Jeanne (ou “Joana”, como seria a tradução em português) acompanha os últimos meses da vida da personagem-título, desde sua primeira derrota com o exército do rei Carlos VII ao tentar invadir Paris até seu julgamento depois de ter atacado os ingleses sem permissão real e enfrentar as acusações de heresia por parte da Igreja.
Salpicando a projeção com passagens em que músicas lamuriosas recontam trechos da trajetória da personagem-título ou expressam seus pensamentos e sentimentos, Dumont mantém a câmera sempre estática enquanto enfoca seus atores, criando planos particularmente longos que se mantêm presos no rosto da jovem atriz e em seu olhar em adoração ou condenação. Aqui e ali, esta abordagem cria momentos de humor involuntário (como na cena em que um velho frade se levanta no julgamento e canta com uma voz angelical que em nada combina com sua imagem), mas o curioso é que, monótono como é (e esta é uma decisão consciente do diretor), Jeanne aos poucos começa a funcionar e sua estratégia narrativa acaba por sustentar o interesse do público.
Interessado nos detalhes dos rituais e processos, Dumont recria o julgamento da jovem com paciência para ouvir cada “bom dia” dado no início das sessões, as perguntas feitas e refeitas na confusão do debate, súplicas e respostas repetidas à exaustão e também detalhes periféricos sobre os coadjuvantes – como ao incluir uma conversa na qual o assistente de um torturador explica que foi parar ali por falta de opções profissionais.
Claramente tomado de admiração pela determinação da heroína diante de suas crenças e valores, Dumont ressalta ainda a hipocrisia dos “homens de Deus” que, usando a religião como arma política, mal escondem o propósito de eliminar Joana d’Arc e, se possível, usá-la contra o Charles VII (algo que disfarçam alegando que querem apenas “salvar a alma” da moça).
Enriquecido pelos belos figurinos, pelas locações e pelos rostos incomuns de seu elenco de desconhecidos, Jeanne é uma produção que aposta na representação de suas imagens como centro da narrativa, demonstrando um interesse maior pelos tableaux que concebe do que pela dinâmica da ação. Uma escolha corajosa que alcança um efeito curioso e gradualmente eficaz.
16) Não sou um dos inúmeros fãs de Carvão Negro, Gelo Fino, filme do chinês Diao Yi’nan que venceu o Urso de Ouro em Berlim há cinco anos. Ainda que tenha apreciado sua impecável fotografia e um ou outro elemento do roteiro, seu ritmo estudado (eufemismo para “lento até dizer chega”) me incomodou bastante. Parte deste elemento se repete em seu novo trabalho, The Wild Goose Lake (Nan Fang Che Zhan De Ju Hui), que acompanha um líder de gangue, Zhou Zenong (Hu Ge), que mata um policial por acidente e se torna alvo de uma busca que oferece uma fortuna por sua captura. Isto, por sua vez, atrai o interesse de vários de seus ex-companheiros e um destes envia a garota de programa Liu Aiai (Gwei Lun-mei) para contactá-lo.
A partir daí, acompanhamos a dupla enquanto é perseguida por policiais e bandidos, mas Yi’nan resiste até certo ponto à tentação de ceder ao clichê do romance que desabrocharia entre os dois ou da “prostituta do coração de ouro”. Liu é sensível e capaz de empatia, mas com limites, ao passo que Zhou está longe de ser um herói ou mesmo um anti-herói; estamos do seu lado por imposição da narrativa, mas jamais abraçamos totalmente sua defesa. Aliás, se não o rejeitamos é porque seus oponentes são pessoas piores, do policial que comanda a busca até os rivais que iniciam toda a confusão por uma disputa de território.
No processo, o longa cria algumas sequências formidáveis, como a que se passa em uma feirinha (e na qual vários indivíduos dançam com sapatos de neon ao som de Dschinghis Khan) ou a luta envolvendo uma sombrinha e que culmina na morte mais divertida desta edição do Festival.
17) A primeira vez que ouvi falar do mundo “Kiki”, do conceito de voguing e das competições em discotecas envolvendo a comunidade LGBTQ foi ao assistir ao excelente documentário Paris is Burning, de Jennie Livingston. Trata-se de uma cultura instigante e contagiante que também funciona, de certo modo, como ferramenta de empoderamento e apoio mútuo entre pessoas trans, que se organizam em casas/clãs/equipes que oferecem uma estrutura familiar para muitos indivíduos renegados pelos parentes de sangue.
Em Port Authority, longa que marca a estreia da documentarista Danielle Lessovitz na ficção, este universo é retratado a partir da bela Wye (Leyna Bloom, que merece se tornar uma estrela instantânea), que mora com outros sete “irmãos” e “irmãs” em um apartamento no qual caberiam apenas três enquanto ensaiam números e performances para as disputas, escolhendo estrategicamente as categorias nas quais irão competir a fim de aumentar a chance da premiação em dinheiro que poderá evitar o despejo. Alegres, talentosas e companheiras, aquelas pessoas se mantêm atentas a qualquer ameaça em potencial que possa afetar qualquer uma delas, já que, também negras em sua maioria, integram uma minoria entre minorias.
E, assim, é grande desperdício de oportunidade que o longa tenha, como centro, um homem branco heterossexual.
O sujeito em questão é Paul (Fionn Whitehead), que, depois de enfrentar problemas em seu estado natal graças ao seu temperamento explosivo, decide se mudar para Nova York para morar com sua meia-irmã – que, por sua vez, não fazia ideia deste plano e o rejeita em sua casa. Desabrigado, ele acaba sendo “adotado” por Lee (McCaul Lombardi), que reside em um centro para jovens infratores e trabalha cobrando aluguéis atrasados e despejando famílias com dificuldades financeiras. Certa noite, ao esbarrar por acaso com um grupo que ensaiava para uma das competições mencionadas acima, ele se encanta por Wye e se envolve com esta, esforçando-se para ocultar seu local de residência, seus problemas com a lei e os amigos homofóbicos que pontuam cada conversa com dúzias de “faggots” (termo pejorativo para designar homossexuais).
O contraste entre os dois grupos é revelador por si mesmo: com Lee e seus companheiros de dormitório, Paul passa o tempo bebendo, brigando e trazendo sofrimento para pessoas já desprovidas; com Wye e seus companheiros de casa, há sorrisos, dança e companheirismo, o que é apenas natural (vocês já notaram como indivíduos intolerantes parecem estar sempre com raiva de tudo e de todos?). Aliás, fica patente como o introvertido protagonista se sente bem mais à vontade com os amigos da namorada, que o aceitam – apesar de reservas iniciais – por compreenderem como ele se tornou importante para a parceira.
Usando sua experiência no documentário para inserir o público naquela cultura, Lessovitz (como outra estreante em Cannes, Annie Silverstein, responsável por Bull) mantém a câmera na mão, sempre móvel e preparada para capturar qualquer instante inesperado. Rodando nas ruas de Nova York quase no modo “guerrilha”, ela e seus atores trazem cor local e verossimilhança à narrativa, lidando com os obstáculos das locações e incorporando-as às situações (como no instante em que Wye tem uma conversa importante com Paul e é obrigada a repetir o que diz em função do ruído do metrô).
Previsível em alguns aspectos importantes (ao ver a nota de despejo na porta da casa da família de Wye, fica claro o que a trama reserva), Park Authority é tão autêntico em sua abordagem e tão fascinado por seus personagens e por sua cultura que isso mais do que compensa erros pontuais do roteiro, incluindo o tropeço inexplicável de colocar o aborrecido Paul como centro da narrativa. (Além disso, o aspecto Traídos pelo Desejo é absurdo, pois seria preciso uma imensa falta de atenção para não perceber como Wye se encaixa naquela comunidade.)
Cheio de energia e com um elenco de amadores extremamente carismáticos, este filme foi uma das surpresas mais agradáveis do Festival de Cannes de 2019.
18) O romeno Corneliu Porumboiu tem uma filmografia curta, mas memorável: A Leste de Bucareste, Metabolismo ou Quando a Noite Cai em Bucareste, O Tesouro e elementos de Polícia, Adjetivo estão entre algumas de minhas melhores experiências cinéfilas dos últimos anos. E mesmo que seu novo trabalho, La Gomera, talvez não esteja no mesmo nível de seus antecessores, ainda assim é uma obra tensa, envolvente e com um senso de humor sombrio.
Com um roteiro que serviria perfeitamente a um noir caso se passasse nas ruas de Los Angeles à noite (não é difícil enxergar Fred MacMurray no lugar do romeno Vlad Ivanov, protagonista do filme), La Gomera acompanha o policial Cristi, que, encarregado de investigar o empresário Zsolt (Sabin Tambrea), suspeito de esconder 30 milhões de euros da organização criminosa da qual é membro, é na realidade um informante do sujeito, fazendo o possível para mantê-lo fora da cadeia. Quando isto falha, porém, Cristi é contactado pela namorada de Zsolt, a femme fatale apropriadamente chamada Gilda (Catrinel Marlon), que o convence a ir até a ilha do título do longa para aprender uma “linguagem de assobios” que permitirá a troca de informações com a quadrilha sem que a polícia descubra. Pressionado por sua chefe Magda (Rodica Lazar), que desconfia de sua lealdade, e pela mãe decepcionada em vê-lo envolvido em situações ilegais, Cristi ainda se vê na mira de Paco (Agusti Villaronga), chefão da organização.
Um dos prazeres de La Gomera, diga-se de passagem, é acompanhar as traições e revelações do ótimo roteiro, já que nunca sabemos de fato quem está do lado de quem, já que, a rigor, todos só estão do próprio lado. Com uma estrutura que vai e volta no tempo enquanto capítulos dedicados a cada um dos personagens preenchem as lacunas da trama, o filme não disfarça a hilaridade do conceito (e do som) da tal linguagem secreta mesmo que os personagens a levem terrivelmente a sério.
E quando as coisas se tornam mais sérias e sangue passa a ser derramado, o choque é ressaltado pelo contraste.
Levemente enfraquecido por um desfecho que tenta amarrar demais as pontas, La Gomera ainda assim é uma experiência que não desapontará em nada os fãs do excelente romeno.
18 de Maio de 2019
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