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Festival de Cannes 2019 - Dia #07 Festivais e Mostras

DIA 07

22) Chambre 212 é uma espécie de Um Conto de Natal no qual Ebenezer Scrooge é um adúltero serial e, no lugar dos Fantasmas de Natais Passados, Presentes e Futuros, recebe a visita das versões jovens do marido traído, da mãe, de todos os amantes e – por que não? – do próprio id, que por alguma razão é personificado por um senhor bonachão vestindo um casaco de pele de onça e que faz a protagonista se lembrar do cantor Charles Aznavour.

A protagonista em questão é Maria (Chiara Mastroianni), uma professora de Direito que parece incapaz de resistir a homens jovens com nomes exóticos. “Eu tenho um fetiche antroponímico”, ela explica ao mais recente, Asdrubal Electorat (Harrison Arevalo). Porém, quando as mensagens enviadas por este são descobertas por Richard (Benjamin Biolay, uma mistura de Benicio del Toro e Andy Serkis), com quem Maria é casada há 20 anos, uma crise se instala na relação, o que a leva a passar a noite no hotel localizado em frente ao seu apartamento – e é ali, no quarto-título, que ela receberá as estranhas visitas que a farão revisitar passagens de sua vida e decisões há muito tomadas.

Escrito e dirigido por Christophe Honoré, Quarto 212 jamais se preocupa em estabelecer as regras que definirão a natureza das aparições, o que traz possibilidades positivas e negativas: por um lado, sou sempre favorável à ideia de deixar espaço para que a imaginação do espectador preencha lacunas em vez levar o roteiro a mastigar tudo; por outro, isso dificulta parcialmente o envolvimento do público por não estabelecer se, afinal, o que testemunhamos terá consequências. Afinal, estamos testemunhando uma representação da autoanálise da protagonista ou algum tipo de evento sobrenatural? As aparições são apenas isso, espectros, representações de algo real, ou possuem materialidade e sentimentos próprios, já que parecem sofrer quando rejeitados e são consolados por personagens que sabemos reais? Quando Irène (Camille Cottin), uma antiga paixão de Richard, sai do hotel, atravessa a rua e visita o marido da protagonista, tudo que passamos a testemunhar ocorre para o sujeito ou este também se converteu em uma versão espectral, fantasiosa, de si mesmo?

Em boa parte do tempo, as respostas não importam de fato, já que a lógica onírica do roteiro dispensa a realidade para funcionar, já que o relevante é como aqueles eventos e aquelas discussões estão servindo para dissecar o colapso do casamento de Maria e Richard como meio de terapia ou apenas para encerrar o processo. Aqui e ali, contudo, quando Honoré se concentra nos efeitos de tudo aquilo sobre os espectros (“espectros”?), a impressão é de que entramos numa tangente que não contribui muito para a proposta da narrativa.

Ainda assim, é curioso ver o quarto de Maria se encher de ex-amantes e há um simbolismo óbvio, mas divertido, na imagem que traz o velho Richard aplicando curativos em sua versão jovem (algo similar ocorre em Rocketman, também exibido nesta edição do Festival de Cannes). Por outro lado, em certos momentos o filme dá a impressão de estar julgando Maria por sua sexualidade ativa, por sua libido considerável, o que sugere um moralismo preocupante – mesmo que acidental – por parte da obra.

A verdade é que constantemente ficamos perdidos com relação ao que sentimos e por que sentimos ou deixamos de sentir. Histórias de décadas se perdem por um desinteresse físico gradual, amores românticos são substituídos por amores fraternais e paixões são renovadas graças a faíscas acendidas por lembranças há muito relegadas ao fundo da memória. E Quarto 212 sabe que tentar encontrar explicações simples para sentimentos complexos é um esforço tolo.

Não é à toa que, afinal, o restaurante localizado logo abaixo do hotel tem o nome de “Rosebud”.

 

 

23) Ao longo dos anos, manifestei diversas vezes minha admiração pelo cinema dos irmãos Jean-Pierre e Luc Dardenne, que, com sua abordagem direta, sem o uso de trilhas não-diegéticas ou de efeitos de montagem mais elaborados (fusões, fades, cortinas, etc), costumam criar retratos humanistas sobre todos os personagens que seguem com sua câmera quase voyeurística, mesmo quando o filme em si não alça voo. Em O Jovem Ahmed (Le jeune Ahmed), contudo, senti falta pela primeira vez de algo fundamental nos longas da dupla: um senso de propósito. É como se os Dardenne houvessem decidido um tema a abordar, mas não como ou o que falariam – e este vácuo acaba por abrir o longa a interpretações que, considerando a obra dos belgas, certamente não eram o objetivo.

Quando a projeção tem início, encontramos o personagem-título (Idir Ben Addi), que espera ansiosamente a hora de sair da escola para poder ir à mesquita ouvir seu imam (Othmane Moumen), que insiste em envenená-lo contra a professora Inès (Myriem Akhedddiou) por condenar seus planos de usar música para ensinar árabe aos alunos. Cada vez mais revoltado com o que passa a considerar um ataque ao Islã, Ahmed decide matar a mulher, mas seu nervosismo, sua inexperiência e sua hesitação levam o plano a fracassar. Enviado a um centro de detenção juvenil, o rapaz frequenta sessões de terapia, presta serviços em uma fazenda - atraindo a atenção da adolescente Louise (Victoria Bluck) – e aceita se encontrar com a vítima de seu ataque, que insiste em vê-lo para tentar processar melhor o que aconteceu. A questão é: Ahmed está realmente mudado ou tem outros planos?

É sempre uma aposta arriscada quando, com menos de cinco minutos de projeção, um filme já desperta no espectador um forte desejo de socar a cara do protagonista, mas os Dardenne justificam essa escolha à medida que permitem que percebamos como fomos apresentados a Ahmed em sua pior versão, depois de meses de lavagem cerebral feita por seu irresponsável e odioso imam – e a ideia, claro, é a de nos levar a enxergar o menino doce que existia antes deste processo e refletir sobre o modo como a radicalização pode afetar qualquer indivíduo vulnerável. Neste sentido, o rosto infantil do protagonista, com seu estrabismo acentuado que lhe confere um ar ainda mais vulnerável, é uma ponte para que acreditemos na possibilidade de recuperação e lamentemos o uso da fé por parte de criaturas inescrupulosas para manipular jovens em busca de um sentimento de pertencimento ou propósito.

Assim, quando vemos Ahmed abrir um raro sorriso de timidez ao ouvir o interesse da nova amiga em beijá-lo, enxergamos sua inocência e juventude, saltando da antipatia à compreensão. Enquanto isso, sua obsessão com as abluções ganham um tom quase compulsivo, como se o ritual servisse de válvula de escape para uma questão psicológica subjacente. O problema é que, ao mesmo tempo, a aparente diminuição do fervor religioso do rapaz é usada para indicar sua “regeneração”, como se a prática dos rituais islâmicos o impedisse de melhorar como indivíduo (o que, nem preciso apontar, abre margem para uma interpretação preconceituosa).

Com uma resolução que soa abrupta e tenta resumir a complexidade das motivações do protagonista a um simplório “no fundo, ele é uma criança perdida e vulnerável”, O Jovem Ahmed é um bom estudo de personagem – até revelar que, no fim das contas, não fazia muita ideia do que estava estudando.

 

24) A única explicação possível para a seleção de um longa como Frankie para a mostra competitiva do Festival de Cannes é uma obrigatoriedade, por parte da lei francesa, de que toda edição do evento tenha pelo menos uma produção estrelada por Isabelle Huppert. Escrito e dirigido pelo norte-americano Ira Sachs, o filme se passa ao longo de um único dia e acompanha a família da atriz do título (Huppert), que, nos estágios finais de câncer, reúne o marido (Brendan Gleeson), o ex-marido (Pascal Greggory), o filho (Jérémie Renier), a enteada (Vinette Robinson), o marido desta (Ariyon Bakare) e a filha do casal (Sennia Nanua) em Sintra, em Portugal, para suas últimas férias.

E aí passamos 100 minutos ouvindo as conversas desinteressantes daquelas pessoas enquanto passeiam pelos lindos arredores da cidade – e sou capaz de apostar uma caixa de bombons como o projeto foi rodado ali porque a produção conseguiu algum tipo de incentivo fiscal.

Com um elenco excepcional em suas mãos, os realizadores desperdiçam a oportunidade prendendo todos a tipos genéricos: Gleeson é o grandalhão de olhos tristes; Réniér, o filho mimado problemático; Robinson, a esposa presa em um casamento infeliz; Bakare, o marido que se recusa a aceitar o divórcio; e Kinnear faz um personagem tão descartável que o roteiro simplesmente o manda embora no meio da projeção sem afetar nada. E Huppert, claro, encarna a mulher sofisticada, segura e com um toque de arrogância que a atriz é capaz de interpretar dormindo. Na verdade, a única que consegue fazer alguma coisa de interessante é Marisa Tomei, que traz certo grau de complexidade a uma mulher que, em mãos menos capazes, se tornaria esquecível, mas graças à sua intérprete nos convence de que todo o projeto deveria girar em torno de seus dilemas. Quanto às cenas envolvendo a neta-enteada da protagonista e seu passeio ao lado de um garoto português, meu palpite é de que existem somente para aumentar a duração da narrativa – como se monólogos terríveis (e inexplicáveis) como o de Réniér sobre uma memória da adolescência não fossem tortura suficiente.

Fazendo questão de ressaltar como todos os parentes de Frankie são independentemente ricos (ou no mínimo muito bem pagos em seus empregos) para evitar qualquer sugestão de que alguém poderia ter interesse na herança da matriarca, o filme é em essência um guia de turismo centrado na figura moribunda (mas externamente saudável para ninguém ficar deprimido) de Huppert, que, de modo apropriado, passa todo o tempo andando para lá e para cá vestida de roxo.

Pois confesso que não sentirei falta alguma de Frankie.

 

25) Um dos prazeres resultantes da imersão completa em festivais como o de Cannes é a conexão inesperada que por vezes surge entre filmes que não poderiam ser mais diferentes um do outro. Enquanto assistia ao brasileiro A Vida Invisível de Eurídice Gusmão, por exemplo, pensei várias vezes no maravilhoso francês Retrato de uma Jovem em Chamas, que, além de também contar com um título evocativo, é irmão de espírito do primeiro, já que ambos são ancorados pela forte relação de cumplicidade entre duas mulheres diante de um mundo patriarcal que insiste em sufocar suas aspirações.

Baseado no livro de Martha Batalha e dirigido por Karim Aïnouz, o longa gira em torno de Eurídice (Carol Duarte) e sua irmã Guida (Júlia Stockler), filhas de um conservador casal de portugueses que moram no Rio de Janeiro do início da década de 50. Próximas e dedicadas uma a outra, elas acabam se separando quando Guida se apaixona por um marinheiro grego e foge com a intenção de se casar, despertando a ira do pai e deixando Eurídice sozinha com seu sonho de se tornar uma pianista profissional. Algum tempo depois, ao retornar ao Brasil grávida e desiludida, Guida é rejeitada pelo pai ainda enfurecido, que, como se não bastasse, ainda mente ao afirmar que Eurídice foi aceita em um conservatório em Viena e saiu do país – uma mentira duplamente cruel, já que joga com a frustração da filha mais nova (que na realidade se casou com Antenor, vivido por Gregório Duvivier) enquanto planta na mais velha a sugestão de ter sido abandonada pela irmã bem-sucedida.

A arbitrariedade com que as irmãs são separadas, aliás, poderia ser vista como uma das opções mais arriscadas do roteiro, já que depende de uma quase (e pouco razoável) conspiração para justificar o distanciamento forçado das duas mulheres; por outro lado, o fato é que este é o impulso central da trama e, assim, um compromisso necessário. Mais problemáticos são os diálogos expositivos que surgem pontualmente na narrativa e que trazem uma artificialidade que na maior parte do tempo Aïnouz consegue evitar apesar dos elementos novelescos da história (“Já juntei metade do dinheiro para ir procurar minha irmã em Viena” e “Já esqueceu que fui policial?” são dois exemplos que me incomodaram em especial). Em contrapartida, os toques de melodrama – e há bastante disso na obra – se encaixam bem na abordagem do diretor, que torna os ingredientes novelescos (troca de identidades, encontros frustrados por uma questão de segundos) sempre eficazes.

Enquanto isso, o ótimo elenco cria uma galeria de personagens multidimensionais que forjam relações complexas uns com os outros: a estreante Júlia Stockler, como Guida, é um achado particular, emprestando resiliência tocante a uma mulher forçada a pagar contínua e excessivamente por um erro de julgamento típico da juventude. Aprendendo precocemente a se defender dos homens, ela faz um cálculo rápido, por exemplo, ao se arrepender de ficar com um desconhecido em um bar e optar por masturbá-lo até levá-lo ao gozo por perceber que seria a forma mais rápida (e tristemente mais segura) de se livrar deste. Já em outro instante, ao ouvir um pedido doloroso feito por uma pessoa amada, a garota esboça um sorriso de compreensão apenas para se entregar ao choro em outro cômodo a fim de evitar perturbá-la com seu próprio sofrimento, exibindo um estoicismo admirável. E se Bárbara Santos traz vivacidade, calor humano e empatia a Filomena, Gregório Duvivier evita que Antenor se torne uma caricatura machista ao encarná-lo com instantes pontuais de vulnerabilidade, empregando também seu ótimo timing cômico para suavizar o personagem, o que torna sua falta de companheirismo para com a esposa ainda mais frustrante (gosto sobretudo da cena em que o sujeito faz questão de chamar a atenção de Eurídice para cada mínima contribuição que dá ao montar o quarto da filha).

E há, obviamente, Carol Duarte como Eurídice – e aqui preciso fazer uma observação com relação ao título do projeto, ressaltando, contudo, que não li o livro no qual se baseia: ao trazer o nome da pianista para o centro das atenções, o título cria expectativas claras com relação ao foco da narrativa, que, esperamos, será naturalmente a personagem-título. Porém, na prática é Guida quem comanda dramaticamente o filme – e por mais que ver Eurídice se anulando como pessoa em função do machismo estrutural seja trágico, é inegável que a trajetória de sua irmã conta com obstáculos bem mais robustos (e, a rigor, esta se torna muito mais “invisível” do que a caçula). Seja como for, Duarte confere intensidade a Eurídice em uma performance que ganha mais peso à medida que se torna mais sufocada, sendo revelador a frequência com que a mulher surge se olhando no espelho, como se fosse a única a notar suas expressões de tristeza, desolamento, alegria e dor (e de certo modo é).

Ecoando Retrato de uma Jovem em Chamas também na forma como estabelece os homens como ameaças constantes à integridade feminina (e as estatísticas provam que somos), A Vida Invisível de Eurídice Gusmão incute um tom animalesco ao gozo masculino e uma cumplicidade maldosa contra as mulheres (como na concordância frequente entre Antenor e o sogro ou na indiscrição intencional do médico da protagonista ao quebrar o sigilo profissional). Já o sexo é, em sua versão mais benéfica, uma mera inconveniência, posto que a ideia de oferecer prazer é algo que quase nunca ocorre aos homens que cruzam o caminho das personagens, sendo a noite de núpcias de Antenor e Eurídice um exemplo típico, surgindo violenta não por agressividade, mas por falta de afeto.

Esteticamente impecável na utilização de cores quentes e saturadas que equilibram o horror daquelas vidas com uma beleza exterior que sugere a possibilidade de deleites que jamais se concretizam (créditos à diretora de fotografia Hélène Louvart), este novo filme de Karim Aïnouz representa uma experiência tocante e envolvente em seus dois primeiros atos.

Já no terceiro se torna sublime, pois é aí que surge a magia chamada Fernanda Montenegro.

20 de Maio de 2019

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Sobre o autor:

Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.
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