DIA 08
26) Um dos grandes prazeres em acompanhar a carreira de um artista por um bom tempo é testemunhar sua evolução. Vejamos, por exemplo, o caso de Willem Dafoe: embora sempre tenha exibido imenso talento, nos últimos anos o ator parece estar cada vez mais confortável na própria pele, criando personagens cuja humanidade vem de atos simples, de um sorriso aberto ao ouvir um comentário tolo, de um olhar perdido no meio de uma conversa ou de um menear de cabeça ao receber uma crítica. Dono de um rosto feito para se manifestar com excesso, Dafoe o controla com disciplina cada vez maior justamente por saber que suas profundas linhas de expressão tendem a aumentar cada sentimento – e poucos atores contemporâneos conseguem carregar sozinhos um filme inteiro como ele tem feito com frequência cada vez maior – como neste novo Tommaso.
Escrito e dirigido pelo veterano Abel Ferrara, o longa segue o personagem-título, um (vejam só) roteirista e diretor que, residindo em Roma com uma esposa décadas mais jovem e a filhinha pequena (interpretadas por Cristina Chiriac e Anna Ferrara, esposa e filha do cineasta), vem trabalhando em seu mais recente script enquanto aprende italiano, frequenta as reuniões dos Alcóolicos Anônimos, ministra cursos de interpretação e lida com os demônios acumulados por toda a vida.
Não se trata, portanto, de uma narrativa movida a incidentes, mas sim pela exploração da personalidade do protagonista, um homem que sabe ser carismático e jovial quando deseja, mas que com frequência se deixa dominar por dúvidas, inseguranças e paranoias que dificultam seus relacionamentos mais íntimos. Para ilustrar isso, Ferrara e o diretor de fotografia Peter Zeitlinger retratam o cotidiano da família na primeira metade da projeção de maneira acolhedora, permitindo a passagem do sol pelas janelas do apartamento, entrando no meio das brincadeiras com a criança e descobrindo alegria até mesmo numa transa interrompida pela filha que se recusa a dormir. Em contrapartida, a partir de certo ponto Tommaso começa a se tornar sufocante, fechando o quadro em torno do sujeito, deformando levemente seu mundo através das lentes da câmera e incluindo imagens que são representações de seus piores medos.
Orgulhoso ao discutir sua recuperação depois de décadas de abuso de bebidas e drogas, Tommaso também é rápido para apontar o que enxerga como deficiências de sua esposa, como a suposta recusa em seguir seus conselhos como homem mais velho e experiente (ao menos, segundo crê), falhando em perceber como aquilo reflete, na realidade, seu egoísmo e seu egocentrismo – não à toa, ele protesta quando a companheira esquece de chamá-lo ao almoçar, mas a abandona no meio da rua ao entrar num café para tomar um expresso. Ao mesmo tempo, suas interações com as mulheres com as quais convive (a professora de italiano, companheiras de AA ou alunas) sempre contêm um indício de tentativa de sedução ainda que não levada às últimas consequências, o que expõe sua hipocrisia diante dos ciúmes constantes que sente da esposa.
Corajoso por assumir contornos indiscutivelmente autobiográficos (Ferrara também mora em Roma há anos e “Tommaso”, claro, tem o mesmo número de letras de seu sobrenome e também duas letras repetidas no meio), o filme encontra espaço para cenas que fogem da autoanálise estrita e buscam uma contemplação da condição humana e da necessidade de empatia – o que encontra sua culminância numa linda cena em que Tommaso se irrita com os gritos de um bêbado sob a janela de seu apartamento e desce para confrontá-lo, adotando uma postura bem mais compassiva ao ser recebido de modo mais cordial do que esperava.
O curioso é que, ao se pintar com cores tão cinzas, Abel Ferrara exibe um apurado senso crítico com relação a si mesmo ao mesmo tempo em que exercita o egocentrismo que condena em sua versão ficcionalizada, como se ao se crucificar em público ganhasse pontos para seguir se enxergando como vítima – um conceito complexo que Willem Dafoe, em seu último plano no filme, expressa de forma brilhante com um único olhar para a câmera e, assim, para o espectador e o próprio realizador.
27) A ambição do jovem Cagalera (Benny Emmanuel) é modesta: conseguir 20 mil pesos – algo em torno de quatro mil reais – para subornar alguém que lhe dará um cargo público vitalício numa companhia de eletricidade. Habitante de um bairro pobre na periferia da Cidade do México – e origem do título Chicuarotes -, o rapaz está farto de ser agredido pelo pai alcoólatra e abusivo, de dividir o quarto com o irmão e a irmã e de esperar o dia em que passará a fazer parte das estatísticas de mortes violentas da região.
O problema é que o protagonista é também inconsequente e estúpido, o que o leva a colocar em ação um plano improvisado: sequestrar o filho do açougueiro, um homem que enxerga a função de líder comunitário como uma permissão para linchar transgressores a fim de ensinar aos jovens do bairro que o crime não compensa. Falastrão e impulsivo, Cagalera faz um considerável contraste ao lado de seu melhor amigo e parceiro, o calado Moloteco (Gabriel Carbajal), que o segue menos por confiar em seu julgamento e mais por pura passividade.
Extraindo graça das estratégias absurdas da dupla – entre outras coisas, eles levam pessoalmente o bilhete com pedido de resgate até o açougue -, Chicuarotes representa o segundo esforço do ator Gael García Bernal na direção de longas depois do ótimo Déficit, de 2007. Cheio de vigor e demonstrando segurança na função, Bernal faz um ótimo trabalho ao controlar o tom da narrativa, que vai da comédia ao puro horror em questão de segundos, culminando numa constatação triste de que, depois de toda uma existência sendo vitimado pela sociedade, talvez seja tarde demais para impedir que seu anti-herói se torne brutalizado e tão perdido quanto as gerações de oprimidos das quais sonhava em se distanciar.
28) O Cinema de Tarantino sempre foi sobre Cinema. Na superfície, pode falar de racismo, nazismo, maletas com conteúdos misteriosos ou qualquer outro tema, mas todos são concebidos e desenvolvidos a partir não de um naturalismo/“realismo”, mas de um filtro composto pela cultura cinematográfica do diretor. Assim, não é preciso dizer que um longa intitulado Era uma Vez... em Hollywood trará Quentin Tarantino completamente entregue a suas obsessões, o que pode ser sintetizado pelo plano no qual vemos os pés de uma bela mulher sobre uma poltrona de uma sala de exibição enquanto um filme é projetado ao fundo. Mais tarantinesco do que isso, só se Samuel L. Jackson estivesse escrevendo epítetos raciais no calcanhar da garota.
O longa, por sinal, não perde tempo em escancarar este mergulho na própria indústria, já que a projeção abre com uma vinheta da Columbia da década de 60 e, menos de 20 segundos depois, escutamos com destaque um “Wilhelm scream”, uma antiga e recorrente piada interna de cineastas e editores de efeitos sonoros. A partir daí, somos apresentados a Rick Dalton (Leonardo DiCaprio), famoso ator de séries de TV que agora encontra-se nos primeiros estágios de sua descida rumo à obscuridade, e seu dublê e melhor amigo Cliff Booth (Brad Pitt), que se mantém fiel ao sujeito em qualquer circunstância. Ao mesmo tempo, seguimos a atriz Sharon Tate (Margot Robbie) em seus passeios e confraternizações por Los Angeles, o que é contraposto por aparições ocasionais das garotas da família Manson.
Se há algo importante a saber antes de assistir ao filme, por sinal, é o fato de que este não gira em torno de uma trama nem busca criar uma história tradicional dividida em três atos (embora o ato final seja claramente definido); em vez disso, o que Tarantino procura fazer é imergir o espectador em uma época e em um lugar específicos: a Los Angeles do final da década de 60. Obviamente fascinado pela cultura e pela atmosfera do período, o diretor insere uma abundância de referências através de pôsteres, de títulos de filme nas marquises de cinema, de trechos de série de TV (reais e imaginárias), de músicas e até mesmo de propagandas no rádio, pintando um retrato recheado de uma nostalgia – idealizada, como as nostalgias tendem a ser – ressaltada pelas cores quentes e saturadas da ótima fotografia do veterano Richard Richardson.
O preciosismo nos detalhes desta reconstrução de uma era também surge nos figurinos, sendo possível reconhecer até mesmo várias das roupas que determinados personagens vestem em cena e que são recriadas a partir de fotos célebres. Além disso, Tarantino faz questão de inserir passagens em locais como a Mansão Playboy, de identificar certas figuras através de legendas (como Steve McQueen, que é vivido por Damian Lewis, um sósia perfeito) e de passear com o público através de ruas e mais ruas de uma Los Angeles provavelmente reconstituída com o auxílio de efeitos digitais. Neste aspecto, devo apontar, há até certo exagero; não sei se a versão em Cannes é a definitiva, mas poucas vezes vi, em um único longa, tantos planos que trazem apenas pessoas dirigindo e dirigindo e dirigindo, o que cria uma sensação de inchaço desnecessário aqui e ali.
Do mesmo modo, algumas das sequências que trazem filmes/séries-dentro-do-filme se estendem demais, como se Tarantino, apaixonado pela possibilidade de brincar de recriar produções que amava, não conseguisse excluir nada do que rodou. Não que os flashbacks (e, às vezes, flashbacks dentro de flashbacks) também não sejam longos, mas ao menos cumprem funções importantes – mesmo que para oferecer informações triviais, como o (hilário) motivo de Cliff não ser contratado pelos produtores de Besouro Verde -, já que ajudam o espectador a conhecer melhor os personagens. Além disso, estas digressões são um fim em si mesmas, marcando toda a filmografia de Tarantino.
Saltando continuamente entre Rick, Cliff e Tate, Era uma Vez... é favorecido por um elenco esplêndido (e que traz pontas de praticamente todo mundo que já trabalhou com o realizador): DiCaprio, por exemplo, cria uma figura vulnerável que, com uma leve gagueira quando não está recitando textos decorados, mostra-se inseguro quanto ao próprio talento, cobrando-se ao ponto da raiva ao esquecer falas ou oferecer performances que julga falhas. Já Brad Pitt, beneficiado por mais oportunidades pelo roteiro, cria um dos melhores tipos de sua carreira, já que Cliff, ainda que aparentemente satisfeito com sua posição subalterna perante o amigo, é um homem perigoso com um passado ambíguo (aqui, Tarantino possivelmente extrai elementos de Robert Wagner), mas também dono de uma personalidade afável e divertida. E há, claro, Margot Robbie como Sharon Tate, que é vista pela obra menos como a vítima mais célebre da família Manson e mais como um ideal de pureza. Enfocada com frequência enquanto dança com expressão feliz ou sorri afetuosamente para as pessoas ao redor, Tate comove, para citar uma cena específica, ao exibir um orgulho quase infantil ao assistir a Arma Secreta Contra Matt Helm em um cinema e notar o público reagindo bem à sua participação no projeto (e Tarantino demonstra respeito ao não recriar estas cenas, optando por retratar a Tate fictícia assistindo à Tate real – vivendo uma personagem fictícia – na tela).
Apesar do humor frequente do roteiro, no entanto, a simples presença de Sharon Tate na história imprime uma tensão subjacente à narrativa, já que sabemos para onde tudo está caminhando – e mesmo que Era uma Vez... não tenha uma trama rígida, a noite de 8 de agosto de 1968 atua como o ponto de convergência óbvio das trajetórias de todos os personagens. Aliás, Tarantino é hábil ao provocar inquietação no espectador sempre que a família Manson surge, destacando-se certa passagem envolvendo uma visita (não posso dizer mais do que isso, mas vocês reconhecerão o momento).
O que nos traz ao terceiro ato e que (de novo evitando spoilers) se passa no dia dos assassinatos, quando, inclusive, uma narração em off (feita por Kurt Russell) basicamente ausente até então toma do filme – o que, considerando o título do projeto e o que ocorre a seguir, é mais do que apropriada. Dito isso, saliento apenas que os 25-30 minutos finais de Era uma Vez... em Hollywood cometem todos os excessos que poderíamos esperar de Tarantino (isto é um elogio) e atuam de maneira quase catártica, justificando o investimento cuidadoso no desenvolvimento dos personagens e de suas relações nas duas horas anteriores.
Porém, a característica mais surpreendente deste nono trabalho de Quentin Tarantino é o afeto presente na narrativa – tanto entre aquelas pessoas quanto do diretor por estas e pela época retratada. Pois, em última análise, o filme é um lamento pela inocência perdida, pela ruína da esperança de que um amor fraternal irrestrito se fizesse possível no mundo e pela tragédia provocada pelos desvarios de uma mente perturbada e sua influência sobre jovens impressionáveis.
Em sua meia-idade, Tarantino está ficando sentimental – e, ao menos aqui, isto é muito bem-vindo.
21 de Maio de 2019
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