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No Coração do Mundo: periferia universal Brasil em Cena

Primeiro longa metragem de Gabriel Martins e Maurílio Martins, “No coração do mundo” é, na definição de seus autores, uma história sobre a periferia. Filmado em Contagem, na grande Belo Horizonte, “No coração do mundo” costura gêneros tão diferentes quanto o faroeste e o filme de assalto, e teve sua estreia mundial no Festival de Roterdã, na Holanda, em janeiro de 2019.

Trabalhando juntos há dez anos, desde que criaram a produtora Filmes de Plástico, em 2009, Gabriel e Maurílio concederam juntos esta entrevista exclusiva ao Cinema em Cena, na qual falam sobre a realização do filme e também sobre o (novo?) papel da mulher no cinema, lugar de fala, violência e Carlos Reichenbach, que surge reverenciado no filme.

 

Este filme pode ser definido como uma história de mulheres em movimento e homens letárgicos?

Gabriel – Mulheres em movimento, com certeza, e a maioria dos homens está de fato mais parada. Isso é uma observação que não ficou tão óbvia para a gente, enquanto estávamos fazendo o filme. Surgiu com mais força durante a montagem e, principalmente, nas observações, especialmente de mulheres.

Maurílio – Na primeira exibição do filme, em Roterdã, aliás em todas as exibições e debates no Festival de Roterdã – foram cinco – sempre a primeira pergunta era essa, e nem era uma pergunta, mas uma afirmação, e sempre vindo de uma mulher, a partir dessa perspectiva. No caso de Roterdã, eles fizeram uma sinopse própria e ela já citava essa observação do movimento, identificando as mulheres da história como mais destemidas que os homens. Essa observação, na verdade, ilustra os últimos planos dos principais personagens, e isso não foi pensado na escrita: os homens terminam parados, num sentimento de frustração, e as mulheres estão todas em movimento, nos seus últimos planos. Cada uma está em busca de coisas distintas, mas todas em busca de algo, prosseguindo nessa dinâmica da vida, que eu acho que é um retrato muito fiel do que são as periferias do Brasil. A gente não quer e nem deve e nem temos cabedal para representar qualquer coisa. O máximo que a gente faz é apresentar o lugar onde a gente vive e essa apresentação saltou aos olhos porque é uma realidade das periferias brasileiras. É um lugar onde o abandono paterno é muito grande, então há um número muito alto de casas geridas por mulheres, mães, avós.

Gabriel – Sem contar que a gente ainda se frustra muito e não se interessa por um cinema que, até hoje, coloca a mulher em um lugar muito passivo, um lugar em que ela não pode opinar, não pode agir, é olhada com fetiche, com distanciamento ou com uma forma muito pouco interessante. A gente não quer repetir isso porque a gente não quer ver esses filmes mais.

Maurílio Martins e Gabriel Martins, em Contagem:  um filme sobre periferia

Qual foi o ponto de partir para a criação de “No coração do mundo”?

Maurílio – Contar histórias sobre o lugar em que a gente vive a partir de uma vivência cinéfila e cinematográfica. Se fosse para fazer um resumo para caber no Twitter, seria isso (risos).

Gabriel – O filme nasce de dois curtas que nós fizemos “Contagem” e “Dona Sônia pediu uma arma para seu vizinho Alcides” e nós sempre tivemos o desejo de expandir esses universos, porque nós gostávamos muito dos personagens e os dois curtas, que a princípio não se comunicavam dramaticamente, tinham um ponto em comum, que era o fato de se passarem no mesmo lugar e tinham como ponto de partida uma reflexão estética, visual, existencial e espiritual sobre aquele lugar. Começamos a encaixar essas duas histórias e criar outros personagens porque a gente queria fazer um filme sobre esse espaço nas suas várias subjetividades.

 

O filme nasce como uma promessa de faroeste e se encaminha para isso, mas o início é centrado na vida dos personagens principais, em planos fechados, quase um mergulho em cada um deles. Por que vocês optaram por momentos tão contrastantes?

Gabriel – Existe um flerte com muitos gêneros diferentes, o faroeste sendo certamente um deles, ou pelo menos uma releitura do que esse gênero significa enquanto uma possibilidade de épico, de questões mais existenciais a partir do espaço, da solidão, da melancolia. Acho que tem uma guia espiritual do western, mas que vai passar pelo filme de assalto, pelo filme de romance, começa quase como uma comédia romântica e vai passar por uma série de gêneros que nós gostamos, como espectadores, e achamos que a história poderia ter essas várias faces. Afinal, estamos lidando com personagens que percorrem caminhos muitos diferentes, então o filme acaba tendo também múltiplas personalidades e isso inevitavelmente muda as formas de filmar.

Maurílio – Eu acho que, especificamente com o faroeste, a identificação das pessoas vem pelo crime, ou antes pela ausência da lei, pela lei sendo escamoteada, mas eu acho que talvez o que mais nos mova em relação ao western é esse imaginário. E aí, Contagem vira um espaço nosso um pouco parecido com o que o (Sergio) Leone faz, esse western imaginário dele, que vai filmar na Espanha e pouco importa que ele está na Espanha, porque o imaginário do western está ali, é trabalhado de uma maneira que pouco importa se aquilo é verossímil, se existem ou não aquelas montanhas, é o western do seu imaginário. Não estou obviamente nos comparando ao Leone, mas enquanto uma intenção de fabular esse espaço e de criar regras próprias para esse espaço. A Contagem dos nossos filmes já está virando um pouco isso e, em “No coração do mundo” ela se solidifica como um espaço de imaginação, de reinterpretação do espaço geográfico real. A Contagem dos nossos filmes, especificamente aquela região do bairro Laguna com o Milanês, que é chamada região da Ressaca, aliás um nome muito bom, vai tomando outras cores, outras formas e, nisso, casa com o western. A música do MC Papo, “Texas”, que abre o filme, reforça essa ideia do Texas no nosso imaginário como um lugar onde a lei tem outras variações. Na criação da trilha, optamos por elementos que, em alguns momentos, soam muito parecidos com as coisas do (Ennio) Morricone, dos agudos, dessa coisa épica, mas feita com coisas dos anos 80, então vira uma trilha de western oitentista hi-tech.

Marcos (Leo Pyrata) e Ana (Kelly Crifer): homem letárgico, mulher em movimento

Pelo menos duas mulheres (Selma e Dona Sônia) vivenciam muito as dualidades de amor e ódio, ternura e violência. Para vocês, essa mulher forte da periferia está no limiar de se tornar um ser violento?

Gabriel – Nos casos dessas personagens, criamos essas duas camadas que eventualmente não são muito esperadas em suas personalidades. Falamos antes de estereótipos femininos, que sempre sugerem alguma doçura, mas isso pode vir acompanhado de algum imperativo. Nos casos das duas – que resolvem situações com armas, no filme, mas de formas muito diferentes, com desejos e intenções muito diferentes – é também a gente tentando transformar esse lugar de pegar uma arma, de dar um tiro em uma coisa que não é só social, mas cinematográfica, quase jogando com a expectativa de quem está vendo se aquilo é possível ou não. Quando a gente coloca aquela senhora com uma arma, é uma coisa muito pesada, ela destrói a vida de outra família, mas ela também teve sua própria vida destruída. Aquela arma não é uma questão condicional ou determinista do bairro, que vive uma violência. Aquelas cenas não estão ali para denunciar a violência na periferia por si só. Elas estão ali para mostrar que existe essa dor, que essa dor pode se transformar em outra coisa. Isso tem um pouco a ver com a gênese do curta “Dona Sônia”, no qual a personagem pensa muito a partir das manchetes sensacionalistas de jornais. Tanto que o curta tem um título – Dona Sônia pediu uma arma para seu vizinho Alcides – para soar mais ou menos como uma manchete de jornal. O que está por trás dessas notícias? “No coração do mundo” tem essa intenção: o que está por trás das notícias de páginas policiais? E é um monte de coisas muito complexas, que a gente não consegue nem se dar conta. Essas cenas com armas mostram que cada personagem lida diferente com essas situações. A própria maneira como o Marcos usa a arma é diferente da forma como a Selma faz isso. Ele é mais performático no uso da arma, talvez nem seja tão violento, mas faz isso como uma necessidade. Selma já tem mais altivez. Usa a arma de uma forma parecida como empunha uma câmera para tirar uma foto, como parte de um negócio.

Maurílio – E antes dos aspectos sociais, há as agruras humanas. Eu lembro que eu estava relendo “Crime e Castigo”, do Dostoievski, na época da reescrita do roteiro. Uma das faces mais maravilhosas dessa obra é a forma pela qual ele dissecou as agruras humanas dos personagens. Você vai lendo e, em determinado momento, você começa a defender aquele personagem, que é um criminoso. Eu refleti sobre os julgamentos que a gente faz, baseados na nossa moral, na nossa ética, ou nas leis, mas há as agruras humanas. Tem o porquê. No exemplo da Dona Sônia: quem tira o direito dela de fazer o que ela fez? Em Roterdã, uma das intervenções mais marcantes para mim foi de uma mulher holandesa, que vive naquele mundo por nós idealizado como civilizado, tudo perfeito, e ela disse que a maior marca do filme, sobre ela, era o fato de ele não fazer julgamentos sobre os personagens e isso fez com que ela assistisse ao filme refletindo sobre aqueles atos, chegando a se questionar: “por que eu não faria isso também?”

Selma (Grace Passô) na Escola Carlos Reichenbach: reverência

Vocês citaram Sergio Leone. Quais outros diretores influenciaram a carreira de vocês, especialmente Carlos Reichenbach, que é homenageado no filme?

Maurílio – O Carlão tem um papel na nossa vida que vai muito além da admiração de cinefilia, quando você se depara com um diretor que você ama. A gente começou a assistir aos filmes do Carlão muito antes de conhecê-lo. Quando nós chegamos a Brasília para a exibição do curta “Contagem”, em 2010, Carlão estava lá, tiramos uma foto com ele, lembro que eu subi tremendo para tirar uma foto com ele, quando apresentamos o filme, choramos copiosamente porque aquilo era muito importante para nós. Estávamos em um espaço por onde passaram grandes diretores e diretoras do cinema brasileiro. Ele viu o filme e nós soubemos, por um amigo, que ele tinha gostado muito, e isso para nós foi incrível. No outro dia, no café da manhã, o Carlão e o Inácio Araújo (crítico e professor de cinema) vieram até nós e começaram a falar do filme. Aquilo tudo era surreal para nós, porque eram duas pessoas que nós admirávamos muito. O Inácio segue sendo um dos meus críticos preferidos, uma pessoa que eu admiro demais. E o Carlão lá, falando sobre um filme de conclusão de curso de dois estudantes da periferia de Contagem, que estavam ali começando a tatear o mundo. Ele foi embora nesse mesmo dia, depois de pegar um DVD com a gente e escreveu um post no blog que ele tinha – Olhos Livres – com o título “Fez-se luz em Contagem”. Em determinado trecho ele fala que, por muitos anos, ele viu filmes feitos em película que pareciam vídeo, e era a primeira vez que ele via um vídeo que parecia película. Isso foi muito impactante e talvez o maior prêmio que nós recebemos, e vai continuar sendo, que foi esse abraçar do Carlão ao nosso filme, a mim, ao Gabriel e à produtora como um todo. Ele foi uma escola para nós, e era natural que nós fizéssemos essa homenagem, dando o nome dele à escola que aparece no filme. É mais que uma referência, é uma reverência a essa figura que eu acho que é nosso grande padrinho.

Gabriel – O tipo de cineasta que o Carlão é – o cineasta cinéfilo que tem muito prazer em falar sobre cinema, prazer em pensar a câmera – é o que nós buscamos ser. Uma coisa que a gente consegue perceber no cinema do Carlão, que também filmou a periferia, é principalmente a maneira como ele lida com a câmera. E, além dele, nós incluímos várias coisas de outros realizadores, principalmente da Nova Hollywood. Esse filme tem vários planos específicos que são homenagem/cópia/referência de Brian De Palma, James Gray, Kira Muratova, Charles Burnett, cineastas cujos filmes são diferentes entre si, mas que pensam muito o plano, uma relação muito forte com enquadramento e movimento de câmera. “No coração do mundo” tem muitos planos complexos, vários planos-sequência, planos longos, que estão bem nessa linha.

“No coração do mundo” tem mulheres muito fortes e coloca uma mulher negra como centro de várias ações. Vocês foram contestados em termos de lugar de fala por isso?

Maurílio – É um filme, antes de tudo, sobre periferia, e nós estamos falando sobre um lugar onde eu nasci, cresci e moro até hoje. Essas figuras existem, estão lá.

Gabriel – De novo, nós não sentimos que estamos representando nada. Se eu estivesse falando em nome de uma mulher negra, eu estaria mentindo, porque eu sou um homem negro. Não existiu esse desconforto porque a gente confia muito num processo coletivo de troca, com pessoas dialogando e colaborando com o filme. A gente sabe da responsabilidade que é trazer essas narrativas para a tela, e a gente se interessa muito pelo outro, por personagens que não são exatamente quem a gente é, a gente conhece muitas pessoas diferentes, ouve muitas pessoas diferentes, acho que acima de tudo é um processo de escuta. É um painel tão grande de personagens e, entre eles, nós temos seis mulheres muito fortes, que são completamente diferentes. Pareceu para nós muito natural contar essas histórias, de pessoas que não são nós mesmos e, no caso das mulheres, que ajudam a confrontar aqueles estereótipos que foram tão explorados no cinema até agora.

 

Para terminar: qual vai ser o futuro do cinema brasileiro?

Maurílio – Acho que a gente está vendo um personagem estranho que tomou forma. A classe média brasileira idealizou esse personagem e ele criou vida e tomou forma. Ele não está só na presidência. Esses personagens se alastraram por outros lugares e nós estamos lidando com isso. Estamos lidando com a frustração de uma classe média que se acostumou a alguns privilégios e não soube lidar com o fato de que outros atores sociais avançaram, tomaram frente das coisas e, é até estranho falar, mas historicamente essa não aceitação é recorrente na história, e não seria diferente com o período que a gente viveu, não só no Brasil como em outros países, de certa bonança na economia, de surgimento desses novos atores sociais. Estou falando do movimento negro, de outros movimentos identitários, de gênero. Nesses contextos, sempre se tenta calar a arte, em primeiro lugar. O cinema brasileiro é autossustentável. Muitas pessoas se assustam quando eu falo isso, mas é o fato. O Fundo Setorial virou realmente uma potência, surgiram muitas produtoras independentes, geramos muitos empregos, aumentou o número de mão de obra qualificada, novos equipamentos chegaram. O que vai acontecer? Ninguém sabe, nem ele. A expectativa é que a gente vá viver momentos bem tensos, vai levar um tempo até que tudo volte ou pelo menos que retomemos um caminho. Mas já passamos por isso, em 1992, com o famigerado governo Collor. Espero que essa situação não aconteça de novo. Falando de números, sem evocar nenhuma bondade com o cinema: o País vai sentir, porque hoje a indústria do audiovisual movimenta R$ 7 bilhões por ano. Isso é um número a se respeitar. Na hora que isso doer financeiramente, talvez se repensem certas decisões.

NO CORAÇÃO DO MUNDO
SINOPSE  
Na periferia de Contagem, Marcos busca uma saída para sua rotina de bicos e pequenos delitos. Surge uma oportunidade arriscada, mas que pode solucionar todos seus problemas. Para isso, ele precisa convencer sua namorada, Ana, a se juntarem a Selma e executarem o plano que pode mudar suas vidas para sempre.   

FICHA TÉCNICA   
Direção: Gabriel Martins, Maurílio Martins   
Roteiro: Gabriel Martins, Maurílio Martins   
Produção executiva: Thiago Macêdo Correia   
Produtora: Filmes de Plástico   
Direção de fotografia: Leonardo Feliciano   
Montagem: Gabriel Martins, Maurílio Martins, Guto Parente   
Direção de arte: Rimenna Procópio   
Direção de produção: Marcella Jacques   
Desenho de som: Tiago Bello, Marcos Lopes   
Música: Robert Frank, Heberte Almeida, Kim Gomes   
Elenco: Kelly Crifer, Leo Pyrata, Grace Passô, Bárbara Colen, Robert Frank, Rute Jeremias, Renato Novaes, MC Carol de Niterói, Gláucia Vandeveld.   
Distribuição: Embaúba Filmes   
País: Brasil   
Ano: 2019   
Duração: 120 min.   

 

Sobre o autor:

Alessandra Alves é jornalista com múltiplos interesses. Além do amor pelo cinema, pela música e pela literatura, também atua no jornalismo esportivo e na comunicação corporativa. Paulistana, corintiana, feminista e inimiga de fascistas, assina a coluna "Brasil em Cena", de entrevistas e reportagens sobre o cinema brasileiro contemporâneo.
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