Para se ter uma visão mais completa de Quando Papai Saiu em Viagem de Negócios, é importante entender um pouco o contexto político e histórico da trama, que o diretor Emir Kusturica nunca se dá ao trabalho de explicar didaticamente – o que não é, de maneira alguma, uma falha. O longa se passa na Iugoslávia em 1950, durante o chamado Cominform, quando o governo local começa a criticar e se distanciar do socialismo stalinista, chegando a uma tensão tal que o país é expulso da União Soviética.
O resultado foi uma grande paranoia e uma patrulha ideológica de ambos os lados, com os “titoístas” (apoiadores do presidente Tito) à caça dos stalinistas, e vice-versa. É por isso que na cena inicial, o velho vizinho do protagonista Malik (vivido pelo adorável Moreno D’E Bartolli) afirma que canta apenas músicas em espanhol: assim, não corre o risco de ofender nenhum dos dois grupos. E é por sua falta de tato nesse sentido, ao criticar a charge de um jornal, que Mesa (Predrag Manojlovic), pai de Malik, é despachado para a “viagem de negócios” do título – leia-se, condenado a trabalhos forçados em uma mina no interior do país.
O mais curioso, porém, é que a produção, vencedora da Palma de Ouro em Cannes em 1985, é aberta por um letreiro que anuncia “an historical love film”. E como o próprio Mesa dispara logo no início, “quem ama alguém neste hospício?”. Além do clima de desconfiança mútua e geral, Mesa é um machista e mulherengo compulsivo que começa e termina o longa traindo a esposa, Sena (Mirjana Karanovic), enquanto esta sofre para sustentar os filhos e o casamento. O pequeno Malik vive o primeiro amor na metade final, mas a garota sofre de uma doença crônica e tem os dias contados. Zijo (Mustafa Nadarevic), o policial irmão de Sena, trai o cunhado Mesa para ficar com sua amante, Ankica (Mira Furlan), mas ela parece usá-lo apenas para se vingar do ex. E o único amor que resulta no casamento da sequência final (entre o irmão caçula de Sena e sua vizinha) mal aparece no filme.
Seria possível, portanto, afirmar que não existe amor na Iugoslávia titoísta. E que o roteiro de Abdulah Sidran fala mais de um amor por uma época, uma nostalgia da infância – por um pedaço e um tempo de sua vida – do que por uma pessoa específica. O título e a relação carinhosa entre Malik e Mesa podem sugerir um amor por esse pai injustiçado, mas, conscientemente ou não, o filme faz um retrato tão cafajeste e machista do patriarca – em dois momentos, com a esposa e a amante, ele solta um “cale a boca, sua vadia”, chegando a ser violento com as duas (uma cena no final pode ser lida, ou não, como um estupro) – que é difícil ver o longa como uma declaração de amor ao personagem. É mais provável que, ao contrapor Mesa e o cunhado Zijo, Quando Meu Pai Saiu... argumente que, na disputa entre titoístas e stalinistas, nenhum dos dois lados era exatamente santo.
A produção de Kusturica se alicerça toda, na verdade, sobre esse equilíbrio entre o político e o pessoal. Quando Papai Saiu... é estruturado no contraste entre a adorável narração em off do inocente Malik, interpretando seu mundo do ponto de vista de uma criança, e as imagens de caráter quase documental – muitas vezes sem diálogo – do diretor de fotografia Vilko Filac. E o filme todo é um reflexo desse desencontro entre certa rigidez oficial, de regras e polos políticos claros, e o caos do comportamento humano – falho, incoerente, imprevisível – e das relações de uma grande família. A cena do jantar antes da circuncisão do protagonista, em que todos se mostram sisudos à mesa, mas vão viver seus segredos (cartas de amor, bebidas) no banheiro, deixa bem clara essa imagem de uma superfície ilusoriamente perfeita escondendo o desarranjo por baixo dela.
Associado à belíssima e onipresente trilha de Zoran Simjanovic, esse olhar humano e familiar – falando de temas espinhosos, políticos e violentos com leveza e certo humor – dão a Quando Papai Saiu... um parentesco próximo com o cinema de Fellini (a cena em que Malik toca o sino toda vez que os pais começam a transar é puramente felliniana). Existe uma poesia enxergada no cotidiano, uma inocência quase idealizada e onírica daquele universo, que nunca ignora suas imperfeições, mas que sente um carinho irresistível por elas – como na (hoje bastante desconfortável) cena em que a família inteira dorme junto na cama após Mesa bater na esposa.
Essa relação com a cultura masculina e machista dos Bálcãs (não muuuuito distante da América Latina e do Brasil) é um dos aspectos mais difíceis de decodificar e reconciliar hoje no longa de Kusturica. Cabe ressaltar, no entanto, que ele nunca a ignora, nem seu papel na história em que está contando. Da obsessão do regime político com o esporte nas cenas iniciais às regras de postura e no andar que Mesa ensina a Malik, o filme parece refletir muito sobre o que constitui um “grande homem”, com o roteiro reconhecendo uma certa vista grossa moral nessa obsessão puramente física do homem báltico.
Além disso, Quando Papai Saiu em Viagem de Negócios termina com os homens escutando a partida em que a seleção iugoslava se classificou para as Olimpíadas após bater a União Soviética em 1952 (o futebol sempre muito presente nos filmes do cineasta), enquanto as mulheres, isoladas em outro canto, choram e sofrem – uma tenta se suicidar, outra encara a chegada de mais um filho para criar. Um filme histórico de amor, mas amor à moda dos Bálcãs.
A Competição
Vencer a Palma de Ouro já em seu segundo longa anunciou Emir Kusturica como um dos grandes autores do cinema mundial do fim do século XX (o primeiro, Você se Lembra de Dolly Bell?, havia ganhado os prêmios da crítica e de melhor filme estreante no Festival de Veneza quatro anos antes, em 1981). E a concorrência que ele desbancou na Croisette em 1985, como de costume, estava lotada de grandes medalhões, como Jean Luc Godard (Detetive), Istvan Szabó (Coronel Redl), Mario Monicelli (As Duas Vidas de Mattia Pascal), Nicolas Roeg (Malícia Atômica), Paul Schrader (Mishima: Uma Vida em Quatro Tempos) e Clint Eastwood (O Cavaleiro Solitário).
A lista, invejável para qualquer festival, é apenas a ponta do iceberg da edição de peso que Cannes teve naquele ano. O Grande Prêmio do Júri foi para Alan Parker e seu libelo anti-Vietnã Asas da Liberdade. Norma Aleandro ficou com a Palma de atriz, pelo argentino A História Oficial – que tiraria o Oscar de filme estrangeiro das mãos de Kusturica em 1986 – mas dividiu o prêmio com ninguém menos que Cher, pela trama real Marcas do Destino, de Peter Bogdanovich. Já a Palma de ator foi para William Hurt, que também venceria o Oscar no ano seguinte por O Beijo da Mulher-Aranha, de Babenco.
E falando de grandes intérpretes, o Rendez-Vous de André Téchiné – ao lado de Eu vos Saúdo, Maria; Vida de Família; e O Melhor da Vida – faria de 1985 o ano da entrada triunfal de uma certa Juliette Binoche na história do cinema. Não existe Cannes sem grandes (ou enormes) nomes, meus caros.
Onde assistir: Para quem entende sérvio, croata e húngaro, o filme se encontra na íntegra no YouTube, porém sem legendas.
27/11/2019
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