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Jovens Estudantes Negros Abrem Caminhos no Cinema em Pernambuco Novas Vozes

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Após experiência afrocentrada, jovens estudantes negros abrem caminhos no cinema em Pernambuco

Por Rostand Tiago*

Era começo de 2018, um tempo em que o cinema nacional ainda se imaginava caminhando para um lugar de razoável estabilidade em seu fomento e as instituições de políticas culturais ainda se sustentavam de alguma forma. Dentro desse cenário, ainda era um trajeto cheio de barreiras aquele encontrado por um grupo de estudantes de cinema da Universidade Federal de Pernambuco, todos negros, na luta por colocar suas narrativas e vivências dentro do audiovisual. Equipamentos caros, produtoras não tão acessíveis e grana pouca. Ainda assim, O Fio e Noite Fria, os curtas frutos dessa empreitada corajosa começam a circular em um momento em que essas vozes há tanto silenciadas precisam mais do que nunca serem escutadas.

O incômodo é o começo. Ainda em 2017, durante a realização anual do Janela Internacional de Cinema do Recife, um grupo de estudantes negros de cinema integrava o Janela Crítica, oficina que convoca jovens críticos para escrever sobre os filmes do festival e compor um júri. Entre eles, estavam Anti Ribeiro, 24, e Priscila Nascimento, 27, que viriam a dirigir os dois curtas (Anti com O Fio e Priscila com Noite Fria). Na grade do festival, se depararam com representações de corpos negros ou com narrativas que lhes causaram certo incômodo, alguma descritas até como agressivas. Contudo, lá também puderam entrar em contato com filmes do L.A. Rebellion, movimento de cineastas universitários negros de Los Angeles que eclodiu nos anos 1970, trazendo um cinema de negritude autoral e dono de um olhar sensível sobre si mesmo e suas origens diaspóricas. Obras como Filhas do Pó, de Julie Dash (primeira mulher negra a dirigir um longa-metragem nos Estados Unidos), e O Matador de Ovelhas, de Charles Burnett, foram exibidas.


(Anti Ribeiro dirigido O Fio - crédito da imagem: (Divulgação) Marcia Rezende/Lilit Bandeira) 

Poucos alunos negros no curso de cinema da UCLA, poucos alunos negros no curso de cinema da UFPE. Anseios de poder falar sobre seus corpos a partir de suas visões germinando nos estudantes negros da Califórnia dos anos 1970, o mesmo para os negros pernambucanos deste fim de década. Instigados, Anti e Priscila colocaram para fora seus roteiros, se inscrevendo em um edital da própria faculdade. Aprovados, conseguiram um orçamento de R$ 5 mil cada, restrito para o custeamento de alguns poucos aspectos da produção, como equipamentos e arquivamento. Conseguiram arrecadar uma beirinha a mais em iniciativas de crowdfunding, para conseguirem filmar com o mínimo possível, com uma pulsão de cinema guerrilha.

Percebemos um pouco tarde que era pouco dinheiro (risos). Tivemos dificuldades, ligadas a essa iniciação, a primeira vez de muitos em um set, assim como ao que o projeto se propunha. Foi uma construção do que é fazer filme, entender esses processos e o que é fazer filme em uma guerrilha. Não tinha como ser tranquilo, mas tivemos um ambiente bom, apesar dos atritos, comuns, principalmente em um momento em que estava todo mundo nervoso, em fazer o trabalho pela primeira vez, sem tanta experiência”, relembra Priscila, sobre a gravação de Noite Fria, realizada em maio daquele ano.


(Priscila Nascimento, no topo, dirigindo Noite Fria - crédito da imagem: (Divulgação) Joelton Ivson) 

Era um ambiente semelhante em O Fio, gravado pouco tempo antes e com equipe quase toda compartilhada com Priscila, contando apenas com as mudanças de alguns cargos para as mesmas pessoas. “Foi uma experiência massa porque nos aproximou muito. Sentíamos que todo mundo compreendia o filme e se dedicava por ser uma história comum para todo mundo, uma história de pessoas negras. Mas, ao mesmo tempo, é um processo que eu não romantizo, isso de fazer um filme com muito pouco dinheiro. Faltaram muitas coisas, foi muito estresse. Pensar que a gente não estava ganhando nada para estar ali. A gente estava colocando o sangue e sentindo bem, mas não sendo remunerado para isso”, conta Anti.

De certa forma, a intensa jornada para desenvolver os dois projetos parece ter plantado sentimentos complexos sobre a produção cinematográfica em seus envolvidos. Vitória Liz, 21, diretora de arte em O Fio e figurinista de Noite Fria, diz ter batido certo desânimo após se dar conta de como era uma produção de custo baixíssimo e de que aquilo era uma realidade que ainda seria presente, mesmo com as coisas sendo feitas com amor. Procurou outras formas de set, como a videoarte, por meio da qual realizou Banzo, que também começa a circular. “Fiquei meio desanimada com produções em geral e comecei a pesquisar essas outras formas de produção e trabalho. Fui focando na minha escrita também”, conta Vitória.

Quando os filmes começaram a ser pensados e produzidos, Liz estava ainda se acostumando com o Recife. A estudante-realizadora-escritora veio de São Paulo com 18 anos para estudar cinema, seu sonho profissional, na capital pernambucana, após uma intensa preparação emocional para se ver tão longe da família. Voltava a cada seis meses para visitar os parentes, mas acabou de passar o primeiro ano inteiro longe da terra natal, retornando no final deste 2019. “Esse período mais longo no Recife me fez viver mais a cidade, o que sempre foi meu desejo. Tenho vontade de viver aqui, mas, ao mesmo tempo, aconteceram coisas com minha família que me fazem pensar em voltar. Estou empurrando isso com a barriga e deixando ser um problema para a Vitória do futuro”, afirma.

Atualmente, Vitória mora com Letícia Batista, 22, outra paulista que veio ao Recife estudar cinema. Diretora de fotografia em O Fio, a jovem trabalhava como empregada doméstica ao mesmo tempo em que se dedicava a um cursinho pré-vestibular em São Paulo. No serviço, ouvia que “teria o emprego garantido lá”, caso não passasse no vestibular. Foi aprovada na UFPE e também passou por um intenso processo emocional com a família para estudar no outro lado do país. Hoje, mais de um ano depois daqueles primeiros passos na produção dos curtas, a dupla vem se inserindo na cadeia produtiva, assim como os demais envolvidos.


(Letícia Batista e Anti Ribeiro nas filmagens de O Fio - crédito da imagem: (Divulgação) Marcia Rezende/Lilit Bandeira) 

Em uma cadeira de montagem, Letícia realizou o curta 2074 KM como um presente para sua mãe, mas que acabou circulando em alguns festivais. Morando com Vitória, começaram um processo de escrita juntas e conseguiram aprovação pela primeira vez em um edital, realizado pela Cultura Inglesa, em São Paulo. Juntas, realizarão Lua Azul, animadas com a possibilidade de voltar a produzir, agora em condições melhores. “Um filme nosso mesmo, sobre duas sapatões, negras, periféricas. E o primeiro com grana mesmo. E ainda pensar que estamos estabelecendo nossos nomes aqui, trabalhando aqui e logo mais fazendo uma coisa nossa”, comemora Letícia.

Priscila também dirigiu mais um curta, Ninguém Precisa Saber, aprovado no edital de incentivo do Funcultura, o mais importante do Estado - obras como Bacurau, Boi Neon e Piedade contam com recursos do fundo - com lançamento previsto para o próximo ano. “O objetivo inicial do Noite Fria era isso, colocar pessoas negras para produzir e ele conseguiu gerar caminhos, ser esse currículo. Mas, sendo muito sincera, ainda é um ambiente restrito essa cena de produção daqui. Falando em cinema, falamos em dinheiro - e ao falarmos em dinheiro, estamos falando de cor, classe, oportunidades. Essa inserção ainda é muito excludente, são pouquíssimas pessoas da periferia. E a periferia são as representações que o povo quer fazer o tempo inteiro, mas inserir essas pessoas de lá atrás das câmeras é outra questão”, aponta a diretora.

Anti enxerga esse mesmo processo excludente dentro desse cenário em que os espaços são conquistados com um esforço muito maior quando comparado ao de jovens com outros sobrenomes e CEPs. Atualmente, a realizadora vem desempenhando algumas atividades dentro do circuito da cidade. Ela é convidada para algumas curadorias, como a mais recente edição do Recifest: Festival de Cinema de Diversidade Sexual e de Gênero. Dentro de festivais, também ministra a oficina Afroficção, girando em torno da ficção enquanto arma para romper estereótipos, repensando também representações clássicas de narrativas.

Hoje eu sinto que meu pensamento está sendo mais considerado, enquanto pessoa negra e pessoa trans. A gente hackeia esses espaços e precisamos cavar uma estrutura. Mas ainda assim, é um privilégio poder cavar isso; enquanto você é um corpo dissidente, é, no mínimo, sorte. Eu não acho que essa estrutura mudou, mas vejo que a galera tá lutando muito para chegar a algum lugar, conseguindo algum tipo de visibilidade. Mas a transfobia, a LGBTfobia, o racismo ainda são muito reais e a gente ainda morre nas ruas”, comenta Anti.

É uma estrutura que, de certa forma, ainda pode ser vista no microcosmo do próprio curso de cinema. Vitória aponta que sua turma, ingressa no segundo semestre de 2016, é uma “anomalia” no curso, com metade da sala formada por negros e cotistas. São apontadas desatualizações no currículo em um contexto que não comporta essas outras vivências e olhares. “A universidade é esse lugar onde consegui legitimação, mas ainda não é o lugar ideal para nossos corpos. É só pensar que a gente está nesses corres de cinema, mas ainda muito em um de operários, não de pessoas que estão na criação”, elabora Anti.

Priscila enxerga o começo de uma maior amplitude, com um começo de caminhar para outras perspectivas. Já Vitória enxerga movimentações que permitem um olhar para o curso de cinema que vem de outros cantos que não os tradicionais. Ela foi uma das organizadoras da Semana do Audiovisual Negro da UFPE, na recém-inaugurada bem equipada sala do Cinema da UFPE, com produções de alunos que mostram que “tem alunos pretos, sim! Tem alunos periféricos e nós estamos nos formando, venha fazer cinema na UFPE”.


(Priscila Nascimento dirigindo Noite Fria - crédito da imagem: (Divulgação) Joelton Ivson) 

É um sentimento que parece encontrar reverberação na produção nacional que vêm encontrando, mais em sintonia com suas trajetórias e corpos. A maioria deles aponta, por exemplo, as obras da produtora Filmes de Plástico, de Contagem, Minas Gerais, responsável por narrativas como as de Temporada e Ela Volta na Quinta, de André Novais Oliveira e No Coração do Mundo, de Gabriel Martins e Maurilio Martins. Também é emblemático O Caso do Homem Rato, de Camila de Moraes, considerado o primeiro longa dirigido por uma mulher negra em 34 anos, quando Adélia Sampaio dirigiu Amor Maldito. Curtas de produtores locais ou de outros estados também são apontados como referência nessa movimentação, a exemplo do carioca Vinicíus Silva e a pernambucana Dandara de Moraes. Mesmo que tudo isso ainda ocorra apenas dentro de um circuito de festivais.

Esses encontros dos seus no cinema acabam tornando uma rede de estímulos e luta, algo que incentiva a luta pelos espaços e a busca por novos olhares. O peso da grana ainda é grande, há a busca por estágios, trabalhos em produções pontuais e apertos para sobreviver. Não só equipamentos, mas o próprio networking e os espaços em que este é feito são de difícil acesso para a juventude periférica. Mas há caminhos ou estão sendo cavados, como pontuou Anti. O grupo está prestes a entrar na maratona de TCCs, uns produzindo pesquisa sobre negritude no cinema, outros escrevendo e produzindo histórias que abracem suas próprias histórias.

Temos que celebrar a vida negra, não caindo só na representação de uma vida triste ou de momentos alegres, mas dar dignidade, complexificar. Vejo muitos cineastas e críticos brancos falando sobre uma possível morte do cinema. Para a gente, o cinema está só começando e eu quero estar nesse começo”, conclui Vitória.

17/12/2019

* Rostand Tiago concluiu a graduação em Jornalismo na Universidade Federal de Pernambuco. Durante o período, começou a estudar e refletir sobre as conexões entre arte, comunicação e negritude. Teve passagens enquanto estagiário na editoria de dados do Diario de Pernambuco e no caderno de cultura do Jornal do Commercio. Dirigiu o curta documentário "Quem Pôde Chegar Onde a Gente Chegou: Arte e Negritude no Recife" como projeto de conclusão de curso. Ele pode ser encontrado no Twitter e no Instagram.

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