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Ano 03, Filme 01 The Winner Is...

Começamos o terceiro ano da nossa coluna (e 2020) com – quase literalmente – bomba, tiro e porrada. Isso porque os bastidores da competitiva do Festival de Berlim em 1986 foram bastante intensos, com vários autores e filmes de peso sendo desbancados por uma produção alemã de caráter fortemente político, numa decisão tomada por um júri abertamente dividido (quem quiser mais detalhes pode pular para os comentários sobre A Competição mais abaixo, antes de seguir a leitura do resto do texto).

E com um longa inflamável e inflamatório como Stammheim, qualquer reação menos acalorada não faria sentido. O filme do diretor Reinhard Hauff é um docudrama que reencena, a partir de transcrições e reportagens, o julgamento de quatro líderes do grupo Baader Meinhof, também conhecido como Facção do Exército Vermelho (RAF): Andreas Baader (Ulrich Tukur), Ulrike Meinhof (Therese Affolter), Gudrun Ensslin (Sabine Wegner) e Jan-Carl Raspe (Hans Kremer). Preso em 1972, o quarteto era acusado de uma série de crimes na Alemanha Ocidental – em especial, o ataque a bomba em um prédio de Axel Springer, magnata dono de um império midiático de direita no país, que resultou na morte de vários civis; e o assassinato de quatro militares norte-americanos.

O julgamento durou nada menos que 192 dias, entre 1975 e 1976, no tribunal do presídio de Stammheim, que dá nome ao longa. E foi marcado por uma série de polêmicas, desde greves de fome dos réus, que pleiteavam melhores condições prisionais, até a morte – declarada controversamente como suicídio – de um dos quatro membros e, por fim, a descoberta de que as conversas entre eles e seus advogados estavam sendo ilegalmente monitoradas pelas autoridades alemãs.

Reinhard Hauff filma isso tudo com um olhar clínico e quase impassível, numa mistura interessante de documental e teatral. Porque o que está em jogo no julgamento – e no filme – são duas encenações. De um lado, o teatro jurídico rígido, formal, cheio de regras e ritos fortemente roteirizados, ditando uma hierarquia e um sistema de poder que representa exatamente aquilo a que os réus se opunham. E do outro, quatro militantes politizados e articulados que, cientes da situação em que se encontram e da improbabilidade de obterem um veredicto favorável, recusam-se a se sujeitar a esse teatro de cartas marcadas e decidem usar as audiências como palco para propagarem seu discurso e seus ideais.

Colocados em julgamento, Baader, Meinhof e seus colegas tentam colocar o próprio imperialismo capitalista – em especial a Guerra do Vietnã, e a colaboração alemã nela – também no banco dos réus de seu tribunal político. E fazem isso com sua irreverência jovem e um tanto arrogante, numa performance debochada e contestadora que é tão (ou mais) subversiva quanto o conteúdo do que dizem – sua estratégia de defesa é a simples recusa de tudo que aquele tribunal representa.

Não por acaso, nos poucos planos gerais do longa o set da Corte de Stammheim lembra um teatro de arena – com réus, juízes e advogados no palco, e o público presente como espectadores numa arquibancada. A direção de fotografia de Frank Brühne se concentra bem mais fortemente, porém, numa série de planos e contraplanos fechados que demarcam a separação entre os dois lados desse embate. São raríssimos, ou quase inexistentes, os enquadramentos em que réus e juízes aparecem no mesmo plano, ou mesmo movimentos de câmera que conectem os dois flancos.

Com isso, a direção de Hauff deixa claro como não existe um diálogo acontecendo ali porque os dois lados nunca se comunicam, jamais são capazes de ouvir um ao outro. Por mais que o grupo Baader Meinhof se encaixe no contexto das guerrilhas urbanas de extrema esquerda dos anos 1960 e 70, que incluem desde os Panteras Negras nos EUA, o Exército de Libertação da Palestina até Marighella no Brasil, o que eles combatiam e pretendiam derrubar na Alemanha tinha um caráter muito específico, determinado por um fantasma que assombra o tempo todo o julgamento encenado em Stammheim: o ranço e a herança do nazismo. Muitos dos oficiais e políticos que apoiaram Hitler permaneceram em altos cargos no governo e no judiciário alemão, e é esse sistema hipócrita e falido que os membros da RAF recusavam em sua totalidade. O embate do longa de Hauff é, na verdade, entre uma geração incapaz de compreender como seus pais e antepassados fizeram o que fizeram e um status quo que não apenas finge que nada aconteceu, mas ainda reproduz e abriga vários elementos do discurso fascista.

O resultado disso é um filme de guerra entre dois mundos separados: o sistema vs a anarquia que o recusa totalmente, dona de uma “agressão violenta sem vazão”, nas palavras de Meinhof. E essa violência acaba sendo, em última instância, a grande ré em julgamento ali: porque, sim, o sistema capitalista é injusto e quebrado, mas os métodos e a reação de grupos como o Baader Meinhof são os corretos? Em sua abordagem docudramática, Hauff deixa essa resposta para o espectador. A própria definição como “guerrilheiros urbanos” ou “terroristas” é algo que o público deve decidir por si mesmo, já que o roteiro não gasta muito tempo explorando os detalhes das ações que levaram os quatro militantes até ali (quem quiser saber mais a respeito pode conferir O Grupo Baader Meinhof, de 2008, indicado ao Oscar de filme estrangeiro).

Curiosamente, a única sugestão de uma possível filiação ideológica do cineasta e seu filme pode estar na paleta de cores da produção. Stammheim é todo fotografado num tom azul frio, e o jeans quase monocromático do figurino dos quatro réus casa perfeitamente com essa paleta, enquanto o preto e o vermelho fortes das togas de juízes, promotores e demais autoridades destoam claramente do conjunto. Afirmar, no entanto, que isso significa que Hauff escolhe um lado ali seria extrapolar o que o próprio longa deseja ser: o retrato de um sistema corrompido e decrépito lutando para se manter no poder, mas incapaz de lidar com as críticas e com os violentos efeitos colaterais que ele mesmo gera. É nesse sentido que Stammheim, um filme de 1986, é tanto sobre eventos dos anos 70 quanto sobre... hoje, 2020.

 

A Competição

Como já dito acima, a competição de Berlim acirrou os ânimos do júri presidido pela atriz italiana Gina Lollobrigida. Reza a lenda que apenas um voto de diferença deu o Urso de Ouro a Stammheim. E ao entregar o prêmio, a presidente deixou claro que a escolha havia sido feita por maioria, após uma “discussão controversa”, e que ela mesma havia sido “contra o filme”.

O maior sintoma dessa divisão interna, porém, é o fato de que nada menos que três Prêmios Especiais do Júri foram concedidos: para A Missa Acabou, de Nanni Moretti; Caravaggio, de Derek Jarman; e Yari no Gonza (Gonza the Spearman), de Masahiro Shinoda. Não satisfeitos, os jurados ainda deram uma Menção Honrosa ao romance romeno Pas în Doi, de Dan Pita.

Além deles, grandes nomes fizeram parte da seleção oficial, em especial mulheres: Liliana Cavani (Berlin Affair), Lina Wertmüller (Camorra) e a brasileira Suzana Amaral, cujo belíssimo A Hora da Estrela rendeu o Urso de melhor atriz à grande Marcélia Cartaxo. Nem nisso, porém, o júri concordou totalmente: Cartaxo dividiu o prêmio com a francesa Charlotte Valandrey, por Rouge Baiser, outro drama político da Europa pós-guerra.

Para o que o valha quanto aos méritos da vitória de Stammheim, o longa de Reinhard Hauff também foi eleito o melhor filme da competitiva pela crítica, por meio do júri da Fipresci. Foi o único prêmio em um festival de grande porte da carreira de Hauff.

 

Onde assistir: Para quem está com o alemão em dia, Stammheim está disponível na íntegra no YouTube.

Sobre o autor:

Daniel Oliveira é crítico de cinema desde 2004. Foi freelancer para veículos como Folha de S. Paulo e, entre 2012 e 2018, foi repórter e crítico do jornal O Tempo. É formado em Comunicação Social pela UFMG, com especialização em História da Cultura e da Arte, e pós em Roteiro para Cinema e TV, pelo Humber Institute, de Toronto. No Canadá, trabalhou como leitor e analista de roteiros. Criou o site Pílula Pop e foi seu editor de 2004 a 2011. É mestrando em Cinema pela Universidade da Beira Interior, em Portugal, e membro da Abraccine.
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