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Adoniran – Meu nome é João Rubinato: as muitas faces de um palhaço triste Brasil em Cena

Sempre impecável, de terno, gravata e chapéu, Adoniran Barbosa tornou-se um dos maiores símbolos da cidade de São Paulo, mesmo sem ser paulistano e sem se chamar Adoniran Barbosa. Nascido na cidade paulista de Valinhos, João Rubinato foi cantor, compositor, ator, radialista, humorista e, acima de tudo, um crítico social que usava a arte para expor as mazelas da pobreza.

Trabalhando em um curta de ficção baseado na obra de Adoniran Barbosa, o diretor Pedro Serrano viu-se desafiado a mergulhar na vida do compositor que, paradoxalmente, contava histórias verdadeiramente trágicas em roupagem ligeira, gaiata, debochada. Com estreia na quinta-feira, 23 de janeiro, semana do aniversário da cidade de São Paulo, o documentário “Adoniran – Meu nome é João Rubinato” será precedido, em algumas salas, do curta que deu origem a esta aventura – “Dá licença de contar”.

Pedro Serrano falou com exclusividade ao Cinema em Cena.

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Cinema em Cena – Qual foi o ponto de partida para o “Adoniran – Meu nome é João Rubinato”?

Pedro Serrano – Foi o curta “Dá licença de contar”, que lancei em 2015, e veio das minhas experiências ouvindo as músicas do Adoniran e achá-las muito visuais, desde os tempos de escola, porque tem um aspecto de tradição oral muito forte. A primeira música que mais me chamou a atenção foi “Saudosa Maloca” mesmo, que é a base do curta, mas resolvi fazer o roteiro baseado em vários personagens do universo dele, com esses personagens se cruzando. É uma abordagem sobre a poesia em si, nada biográfica, apesar de ter traços dos personagens dele do rádio.

Cinema em Cena – Por que você escolheu o Paulo Miklos para o papel do Adoniran no curta?

Pedro Serrano – Eu escrevi o roteiro quando consegui meios para produzir. Aí, eu falei “bom, agora preciso ir atrás” e fiquei um tempão pensando em quem poderia fazer. Um dia, ouvi a voz do Paulo Miklos na rádio e pensei “é o Paulo”, porque ele é ator, já tinha feito alguns trabalhos de cinema, é músico, então vai ser o casamento perfeito. O Paulo tinha me entrevistado quando eu lancei o documentário “Luto em Luta”, para um programa de TV que ele tinha na época. Aí mandei um e-mail para ele, que topou.

Pedro Serrano: "Adoniran tinha uma obra muito visual"

Cinema em Cena – Esse curta ainda pode virar um longa?

Pedro Serrano – É, sempre pode (risos). Quando o curta saiu nos festivais, recebemos uma proposta de transformá-lo num longa. Comecei a escrever o roteiro do longa, que ainda é um processo existente, que está em captação de recursos há muito tempo. Nesse processo, resolvi me aprofundar mais no personagem e ouvir pessoas que conviveram com ele. Nesse meio do caminho, recebi a sugestão de um crítico de cinema de fazer um documentário sobre Adoniran, inclusive porque não havia nenhum. Fiquei com isso na cabeça, enquanto continuava gravando entrevistas com várias pessoas. Naturalmente, a ideia foi surgindo. Se, no curta, eu trouxe muito do meu olhar sobre a obra dele, agora era a chance de retratar o personagem, fazer esse estudo aprofundado. E aí foi surgindo a ideia de não só traçar o perfil do Adoniran, mas esse panorama da cidade, das transformações.

Serrano (à esq.) com Paulo Miklos, na filmagem de "Dá licença de contar"

 

Cinema em Cena – Havia muito material em vídeo sobre o Adoniran ou você encontrou alguma dificuldade? O filme usa muitas imagens e fotos, inclusive de São Paulo. Isso foi uma opção ou uma necessidade?

Pedro Serrano – Eu acho que é um meio termo. Nas emissoras de TV, existe um material que não é extenso a ponto de se perder, mas existe bastante coisa. Pegando como paralelo de sambista um documentário do Cartola, há até menos imagem em acervo do que do Adoniran, que era um cara mais presente na rua, no dia a dia. Ele ia bater perna no Centro, não ficava em casa, como típico aposentado. As emissoras de TV tinham bons acervos. No acervo da Vera Cruz, tem os filmes que ele fez com Mazzaropi e com vários outros diretores, há também os filmes que ele fez na Companhia Maristela, na Cinédia, que foi material que eu fui conseguir só no ano passado e acrescentei no filme. Havia um bom material, mas é claro que a gente usa também fotos porque tem muita coisa que é importante na história dele e que só tem registro em foto. A época do rádio, por exemplo: existem poucas gravações dele, que nós usamos, mas a maior parte das participações dele era ao vivo.

Cinema em Cena – O documentário descontrói a figura popular do Adoniran, que é algo engraçado, ligeiro, e mostra o lado “palhaço triste”. Você acha que o Adoniran se tornou um personagem que encobriu um pouco o compositor sério, trágico até, que ele era?

Pedro Serrano – Eu acho que sim, mas acho legal perceber as nuances, porque aí talvez eu diria que o Adoniran realmente era esse palhaço brincalhão, mas o João Rubinato, não. No entanto, conversando com quem era próximo dele, fica claro que não é que um não tinha nada a ver com o outro. Ele não “encarnava” o Adoniran quando ia se apresentar ou dar uma entrevista, por exemplo. Era uma espécie de simbiose, mas o que se pode dizer é que o Adoniran acaba virando um dos personagens do João Rubinato. Ficam duas facetas bem claras: a do Adoniran, esse cara mais brincalhão, jocoso, e o João Rubinato, realmente o poeta, esse cara sensível, magoado com as dificuldades da vida. Concordo com a visão do Elifas Andreatto, que está no filme: um pouco dessas mazelas sociais que ele retratou e viveu penetrou e transformou o artista nesse ser mais amargurado.

Ilustração de Elifas Andreatto, retratando Adoniran como um "palhaço triste"

Cinema em Cena – E isso transparece na obra dele, não? Há músicas realmente divertidas e ligeiras, como “As mariposas” e coisas muito tristes, como “Iracema”.

Pedro Serrano – A maioria, de fato, é tragédia. Eu acho que o que acabou confundindo muito as pessoas tem a ver com um fato: como ele lançava as músicas e não conseguia fazer sucesso e quem conseguia estourar eram os Demônios da Garoa, com aquele jeito gaiato, cheio de “quais, quais, quais”, que é uma invenção deles, surge essa falsa ideia de que as músicas são engraçadas. E nem sempre são. O Adoniran achou o máximo que ele conseguiu fazer sucesso através dos caras, mas é possível ver que a interpretação dele, mais velho, é mais melancólica, mais sentida, mais sofrida

Cinema em Cena – Vocês incorporaram um trecho de uma entrevista da Elis Regina falando sobre essa necessidade de enxergar a seriedade na obra de Adoniran. Qual a importância da relação entre esses dois artistas?

Pedro Serrano – Nós encontramos uma entrevista dela, em que ela chama a atenção para isso, e foi nesse momento que eu e meu editor percebemos que tínhamos achado a solução para um problema que estávamos enfrentando, que era justamente como fazer a virada para o terço final do filme, quando evidenciamos esse lado mais sério dele. Elis traz esse assunto com uma força e um olhar para a câmera que definem perfeitamente esse conflito e sintetizam o próprio Adoniran, como essa controvérsia ambulante. Ao mesmo tempo que Elis é a pessoa que percebe e fala isso, cada vez que ela encontrava com ele a reação era a mesma: ficava gargalhando descontroladamente. E isso em todos os registros de encontro entre eles, desde O Fino da Bossa, nos anos 1960.

Elis Regina chamou a atenção para a seriedade de Adoniran, mas não se aguentava séria perto dele

Cinema em Cena – Adoniran é filho de imigrantes, caipira, e acabou se tornando uma síntese de São Paulo. Ele gostava dessa ideia de ser um símbolo paulistano?

Pedro Serrano – Acho que ele gostava. Inclusive, na rádio, o maior sucesso dele foi como Charutinho, um personagem que sintetiza um típico paulista, e não como sambista. Mas, ao mesmo tempo em que ele gostava de ser esse símbolo, ele sentia falta de um reconhecimento mais profundo. Por exemplo, ele chegou a ser parceiro de Vinicius de Moraes, em uma parceria à distância. Vinicius mandou a letra para Aracy de Almeida, que entregou para Adoniran, que fez a música, e é uma das poucas canções do Adoniran em que ele fez a música, e não a letra. No início, o Vinicius parece não entender a poesia dele, mas depois reconhece a beleza da poética do Adoniran, e isso é importante para o próprio Adoniran se sentir valorizado, integrado.

Cinema em Cena – Em determinado trecho do filme, Adoniran diz: “a maioria dos meus amigos é tudo crioulo”. Como era a relação dele com os pretos e pobres da cidade?

Pedro Serrano – Ele se enxergava neles. Como filho de imigrantes, o Adoniran realmente foi pobre durante a juventude toda, então acho que vem daí essa questão de entender a temática social da fome. Já nos anos 1930, ele está fazendo músicas como verdadeiro cronista social, falando de fome, de barriga vazia. Quando ele vai para a rádio, transforma essa questão da crônica social em um universo de humor, reforçando esse paradoxo de pegar coisas tão dramáticas e transformá-las em comédia. Na rádio, inclusive, o Charutinho era apresentado como um negro, e há até um episódio narrado no documentário em que um sobrinho conta uma ocasião em que a esposa do Adoniran foi apresentada a uma mulher que perguntou, espantada: “A senhora é casada com um negro?”, revelando esse preconceito sempre presente. O Adoniran fazia parte desse grupo de pessoas pobres, e a sua obra está sempre calcada na convivência e na observação desses tipos. Ele sempre manteve o hábito de ir para o Centro da cidade, ficava andando na rua, conversava com morador de rua, carregador de feira, com todos os mais humildes.

Adoniran, entre os mais humildes: uma cena comum

Cinema em Cena – Ele conseguia fazer humor com essas pessoas e situações sem ridicularizar?

Pedro Serrano – Durante a pesquisa para o filme, encontrei um texto que falava sobre “o não lugar de fala do Adoniran” porque, apesar de não ser preto e não ser mais pobre, ele falava sobre a perspectiva do retratado, não como um terceiro que fala sobre um tema estranho. Mas, é claro que, na rádio, existiam linguagens da época do tipo “ô, crioulo” que hoje em dia não são mais cabíveis, mas aí tem que se entender como uma questão de contexto. O fato é que ele sempre soube observar e que o humor dele era crítico, de denunciar por meio dos personagens da rádio, e que transferiu isso para as músicas.

Cinema em Cena – O filme destaca um texto de Antonio Candido sobre Adoniran. Quarenta anos depois desse texto, o que você encontrou sobre Adoniran em termos de estudos acadêmicos? Ele continua sendo um corpo estranho dentro desse ambiente?

Pedro Serrano – Do que eu encontrei, existem coisas pontuais. O documentário mesmo é o primeiro filme sobre o cara quase quarenta anos depois da morte dele. Isso pode significar que as pessoas olhavam Adoniran como uma coisa menor e isso faça parte do não reconhecimento? Talvez, mas isso pode ser também algo dos paulistas mesmo. Eu sempre brinco que o carioca não deixaria isso passar em relação ao Cartola, ao Nelson Cavaquinho, mas o paulista parece ter essa dúvida da grandeza acerca da poética do Adoniran. Sinto que ele é entendido e estudado do ponto de vista da linguística, de entender que as questões da fala não se prendem à norma culta. A partir disso, geraram-se muito mais observações e análises positivas sobre o papel dele, mas não é algo amplamente visitado e elaborado. Mas, na verdade, acho que o próprio Adoniran não se importava com isso. Ele ficou muito envaidecido com o texto do Antonio Candido, mas o que o fazia feliz mesmo era ver o povo cantando suas músicas.

Sobre o autor:

Alessandra Alves é jornalista com múltiplos interesses. Além do amor pelo cinema, pela música e pela literatura, também atua no jornalismo esportivo e na comunicação corporativa. Paulistana, corintiana, feminista e inimiga de fascistas, assina a coluna "Brasil em Cena", de entrevistas e reportagens sobre o cinema brasileiro contemporâneo.
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