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Festival de Berlim 2020 - Dia #01 Festivais e Mostras

DIA 01

1) Em Swimming Out Till the Sea Turns Blue (Yi zhi you dao hai shui bian lan), Jia Zhang-ke realiza um documento de memórias pessoais, culturais, políticas e sociais a partir da subjetividade de seus entrevistados, mas com o propósito de criar o registro de uma nação em permanente construção e desconstrução. Para isso, ele emprega imagens de arquivos (poucas), entrevistas com figuras diversas (mas com uma concentração particular em escritores) e interlúdios que constroem, através de recortes do cotidiano, um tom calculado que vai da nostalgia ao lamento.

Os primeiros minutos de projeção, que revelam esculturas que parecem ter sido arrancadas à força das pedras que as continham (não só literalmente, pois foram, mas sentimentalmente), expõem o tema central do filme como um todo, percorrendo os rostos e corpos de trabalhadores que resistem ao tempo e à fome com expressões resolutas, apoiando-se uns nos outros para se manterem vivos e ativos. Assim, quando logo a seguir o primeiro entrevistado, um senhor que reside na vila da qual o próprio cineasta se originou, reconta como a união dos habitantes locais resgatou o chão alcalino, salgado, infértil, através de iniciativas em conjunto que trouxeram prosperidade e futuro, o documentário parece interessado em discutir o convívio entre o sofrimento e o orgulho de um povo simples – e, de fato, a projeção segue neste caminho por algum tempo até revelar seu verdadeiro propósito: uma discussão de como a seara do realizador, a Cultura, registra (e forma) as histórias e sentimentos do país.

De modo quase metalinguístico, o diretor inclui, por exemplo, diversas passagens nas quais vemos dúzias de pessoas assistindo a apresentações de teatro e dança, refletindo a experiência do próprio espectador em seu mergulho nas narrativas trazidas pelo filme – que, como aqueles espetáculos, é um registro (mais literal, mas não menos evocativo) da trajetória em comum da plateia no cinema. O olhar de Zhang-ke sobre estes indivíduos é frequentemente romantizado através da fotografia, como no instante em que vemos vários idosos se servindo em um restaurante e a contraluz confere a eles uma aura quase beatífica.

Dividido em capítulos que abordam tanto aspectos históricos (como o papel do escritor Ma Feng durante a Revolução Cultural) quanto pessoais (como os relatos de uma autora sobre seu relacionamento com o pai), o filme oscila no interesse que desperta de acordo com o engajamento que cada entrevistado provoca – e o escritor Yu Hua, por exemplo, ergue a narrativa sempre que surge na tela. Por outro lado, o projeto peca pela falta de foco, já que o cineasta parece saltar de um tema a outro sem se preocupar muito em conectá-los organicamente.

Mas mesmo que o todo não se estabeleça como um dos melhores trabalhos de Zhang-ke, as partes que o compõem trazem momentos de extrema sensibilidade.

 

2) A obsessão inspirada por O Apanhador no Campo de Centeio, publicado por J.D. Salinger em 1951, é notória – embora nem sempre de maneira positiva, considerando que este era o livro que Mark Chapman carregava consigo quando foi preso depois de assassinar John Lennon. Assumindo um caráter ainda mais mítico depois que Salinger se tornou um recluso e abandonou a Literatura, o romance – e seu protagonista, Holden Caulfield – levou um número colossal de pessoas a buscar contato com o escritor durante as décadas seguintes à sua publicação, o que supostamente o frustrava imensamente.

O que nos traz a My Salinger Year, filme baseado no livro autobiográfico da norte-americana Joanna Rakoff, que aos 23 anos de idade trabalhou na agência que representava o sujeito e foi encarregada de responder às cartas de seus fãs. Aspirando a uma carreira como poeta, Rakoff (aqui vivida por Margaret Qualley, que se destacou há pouco em Era uma Vez... em Hollywood) se vê movida pelas correspondências e também por suas breves conversas com Salinger ao mesmo tempo em que tenta lidar com sua chefe, Margaret. Esta, por sinal, é interpretada com segurança por Sigourney Weaver como uma espécie de Miranda Priestly que tem a frieza no lugar da agressividade, o que a torna menos raivosa, mas não menos enlouquecedora do que a personagem de Meryl Streep em O Diabo Veste Prada.

Dirigido pelo canadense Philippe Falardeau (O Que Traz Boas Novas) com uma doçura que evita o piegas mesmo que nem sempre o clichê, o longa é hábil ao traçar o amadurecimento gradual da protagonista – algo refletido em seus figurinos, que vão do severo, conservador, a um design mais leve e confortável – e, no processo, ainda se diverte ao brincar com o aspecto lendário de Salinger, que, vivido por Tim Post, jamais tem seu rosto exposto às câmeras.

Ainda assim, é uma pena constatar que o momento mais forte da projeção é pouco mais do que uma cópia da sequência mais mágica do soberbo O Pescador de Ilusões (a dança na estação), o que não é exatamente o melhor dos sinais.

 

3) Ao lado de Cristian Mungiu e Corneliu Porumboiu, o cineasta Cristi Puiu é um dos nomes mais importantes da Nova Onda do Cinema romeno surgida na segunda metade dos anos 2000, sendo responsável pelo maravilhoso (e devastador) A Morte do Sr. Lazarescu e, mais recentemente, pelo ótimo Sieranevada. Já este seu novo trabalho, Malmkrog, remete mais ao trabalho que dirigiu em 2010, Aurora, se apresentando como um filme corajoso, maduro, mas também autoindulgente que nem sempre reconhece o momento de seguir adiante depois de desenvolver algum ponto específico.

Com 3 horas e 21 minutos de duração, o longa se inspira em um texto do filósofo russo Vladimir Solovyov e esta origem é óbvia desde os primeiros minutos, já que, quase inteiramente situado no interior da ampla casa de um aristocrata, o roteiro se concentra do início ao fim nas conversas entre seis personagens sobre assuntos que vão de questões históricas a culturais e religiosas, detendo-se em embates filosóficos sobre a natureza do mal, da guerra e da morte. E, claro, considerando a complexidade e a ambição de debates como estes, a obra jamais sugere que está em busca de respostas definitivas, mostrando-se bem mais interessada nas argumentações em si – e é notável como, na maior parte do tempo, os pontos e contrapontos são apresentados de modo equilibrado e articulado, sem que Puiu pareça julgar suas criações (com exceção, talvez, da Olga interpretada por Marina Pali e cuja devoção religiosa a torna simultaneamente ingênua e hipócrita – menos por maldade e mais por cegueira).

O elenco, vale apontar, se sai extraordinariamente bem considerando não apenas a imensa quantidade de diálogos, mas o fato de que a condução de Puiu implica na manutenção de um tom cordial que beira o monocórdico, sendo fascinante perceber como mesmo com esta homogeneidade cada um consegue imprimir personalidade própria aos indivíduos que encarnam – e tão instigante quando os argumentos em si são as trocas de olhares (cúmplices ou hostis) e a movimentação em cena, que sugere uma coreografia movida por proximidades e distanciamentos filosóficos entre aquelas pessoas. De maneira similar, é interessante observar como há sempre uma ação de fundo, seja na preparação da mesa pelos empregados do conde, seja por uma criança correndo e sendo alcançada por sua babá antes que interrompa a conversa dos adultos. Além disso, o design de som traz vida e autenticidade à casa e aos seus ocupantes, servindo também para habituar o espectador aos ruídos do ambiente e que mais tarde culminarão num incidente chocante inicialmente anunciado sonoramente.

Outro aspecto interessante de Malmkrog é o arco traçado pela câmera de Puiu e do diretor de fotografia Tudor Vladimir Panduro, que mantém a câmera praticamente imóvel em longuíssimos planos-conjunto na primeira metade da projeção apenas para aos poucos adotar um ritmo mais acelerado à medida que se tornam mais breves e fechados na segunda metade, aumentando a tensão entre os personagens e a intensidade (e, por que não?, crueldade) de seus argumentos.

Pontualmente cansativo – embora nem de perto o tanto que poderíamos esperar de um filme com 200 minutos de duração e composto totalmente por diálogos -, Malmkrog é uma obra que madura, ousada e que, mesmo imperfeita, é um atestado da inteligência e do talento de seu diretor.

 

4) No início da década de 70, o fotógrafo norte-americano W. Eugene Smith, um dos maiores em sua área, encontrava-se já nos últimos momentos de uma carreira brilhante quando o acaso depositou em seu colo uma história chocante: do outro lado do mundo, em uma pequena vila japonesa estava sendo contaminada pelos resíduos tóxicos de uma fábrica de produtos químicos, que não via problemas em despejar os produtos no mar, transformando os peixes consumidos pela população local em verdadeiras bombas de veneno. O resultado: doenças neurodegenerativas, bebês com graves problemas congênitos e muitas mortes. E o mais chocante, embora não surpreendente: a Chisso, corporação responsável, sabia dos problemas há décadas e nada fez.

Sim, exatamente como em tantos outros casos, incluindo aquele narrado há pouco em O Preço da Verdade (Dark Waters), que estreou semana passada nos cinemas brasileiros. A diferença aqui, de um ponto de vista narrativo, é que se muitos dos longas que discutem situações afins giram em torno dos processos legais resultantes ou da investigação sobre as ações dos poderosos, aqui todos já sabem o que está acontecendo e o máximo que os habitantes da vila podem esperar é que o mundo tome consciência de sua tragédia – o que resultou no envolvimento do protagonista, que viajou até Minamata para fotografar o que conseguisse a fim de publicar as imagens na revista “Life”.

Encarnado por Johnny Depp em uma daquelas caracterizações físicas que o ator tanto adora e envolve o uso de próteses, perucas e maquiagem, Eugene é um homem torturado por suas experiências profissionais, que, afinal, o obrigaram a encarar de perto alguns dos maiores pesadelos que a humanidade é capaz de produzir, de guerras a genocídios. E é revelador como, mesmo com toda esta bagagem, o sujeito mal consegue acreditar na crueldade que testemunha em sua nova missão. Afinal, uma coisa (não menos horrível, mas esperada) é ferir alguém em uma guerra; outra é propositalmente destruir inúmeras vidas apenas para obter um pouco mais de lucro no final do trimestre.

Aliás, sempre que se concentra neste escândalo e em suas repercussões, Minamata flui de maneira eficaz; o problema é que, como produção influenciada pelos clichês narrativos hollywoodianos, o roteiro escrito a oito mãos (nunca um bom sinal) logo encontra uma desculpa para enfiar um romance no meio da trama, apelando também para discursos que resumem os temas principais enquanto buscam comover o público de modo artificial. Um pouco mais eficiente, ainda que também previsível, é o arco dramático atravessado pelo protagonista, que de alcoólatra tomado pelo autodesprezo e pelo niilismo, aos poucos aprende a se importar com os sentimentos daquelas pessoas e a sacrificar os próprios interesses imediatos – e sei que a cena que traz Depp embalando no colo uma adolescente com graves problemas congênitos pode soar apelativa e mesmo sensacionalista (e é, até certo ponto), mas a gentileza do ator naquele momento acaba por torná-la tocante.

Menos aceitável é a ingenuidade surpreendente que o filme e seu diretor, Andrew Levitas, demonstram ao sugerir que, depois de décadas de descaso criminoso, um executivo de uma grande corporação subitamente demonstraria remorso e decência ao ser confrontado pelos resultados de sua negligência – algo que, inclusive, vai na contramão do que realmente ocorreu (óbvio).

Encerrando a projeção com uma série de fotos que expõem o horror de diversos desastres ambientais provocados pela ganância do capitalismo desregulado ao lado das últimas décadas (incluindo, sim, Brumadinho), Minamata é mais uma ilustração – entre milhares – dos holocaustos diários provocados por um sistema dominado por psicopatas que enxerga mais valor nas ações de suas empresas na bolsa do que nas atitudes daqueles que ainda consideram a empatia e a solidariedade como elementos básicos da experiência humana.

 

5) “O cara lá em cima não gosta de mim”, diz o pintor Antonio Ligabue (Elio Germano), referindo-se a Deus em certo momento de Volevo nascordemi, cinebiografia que relata sua trajetória da infância à morte – e ele certamente tem motivos para pensar assim: abandonado ainda na infância por uma mãe que depois acabaria assassinada pelo parceiro e sofrendo transtornos psíquicos que o tornaram um pária na pequena comunidade que vivia, Ligabue ainda se viu expulso da Suíça, país em que morou desde criança, e obrigado a morar na Itália, que, embora seu lugar de nascimento, era uma terra estranha povoada por desconhecidos que falavam uma língua que não compreendia. Dependendo da caridade ocasional de estranhos e da paciência contínua dos conhecidos, o sujeito aos poucos – e de modo surpreendente – foi se estabelecendo como pintor reconhecido por seus contemporâneos, servindo como exemplo clássico de como a diferença entre um “louco” e um “excêntrico” reside apenas na fama.

Dirigido por Giorgio Diritti a partir de um roteiro co-escrito por Tania Pedroni, o filme se preocupa em explorar o gênio criativo de Ligabue – e sua possível associação com seus tormentos psiquiátricos – e também suas experiências em um mundo sempre hostil com o que julga “diferente”, adotando, para isso, uma estratégia visual marcada pelo uso de grandes angulares em closes, pelo movimento constante de câmera, pelo embaçamento das extremidades dos quadros e por uma montagem que evoca bem a confusão mental do sujeito em diversas passagens de seu cotidiano. Além disso, o design de produção não teme flertar com o expressionismo em certos pontos – e o quarto do pintor na infância, que, apresentado como um quadrado de madeira com os cantos atirados na escuridão pela fotografia, se assemelha a um caixão, expondo em seu espaço externo o que ocorre no emocional, interno. E não é surpresa que Diritti empregue com frequência a câmera subjetiva, inserindo o espectador ainda mais no olhar do protagonista.

Enquanto isso, a montagem brilhante de Paolo Cottignola investe na fluidez cronológica, na quebra de sua linearidade, para ao mesmo tempo preencher lacunas na trajetória do artista em pontos-chave e retratar a maneira como o mundo lhe parece ilógico, como se causas e consequências se desconectassem apenas para atormentá-lo. Esta estratégia torna patente, também, como Ligabue passou a vida entrando e saindo de sanatórios, já que muitas vezes testemunhamos suas versões em diversas idades enfrentando os mesmos processos tortuosos de “análise” e “tratamento” – isto em uma época e cultura que lidam com doenças mentais a partir da brutalidade e da ignorância. Para completar, o desenho sonoro da obra salienta as obsessões particulares do pintor, transformando tosses em trovões e “brincadeiras” (leia-se: bullying) em sessões de pura tortura.

Mas não há como negar que a grande força do filme reside em Elio Germano, que, remetendo fisicamente a Daniel Day-Lewis, investe numa caracterização realista que equilibra bem os tiques e arroubos vocais de Ligabue com seus instantes de introspecção e melancolia, criando um retrato complexo e convincente de um homem que encontrava nos animais que retratava na tela um meio de exorcizar seus demônios e revelar sua natureza carente de contato e gentileza.

21 de Fevereiro de 2020

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Sobre o autor:

Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.
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