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Festival de Berlim 2020 - Dia #06 Festivais e Mostras

DIA 06

24) Em maior ou menor grau, todo artista emprega sua arte como terapia. Seja para tentar entender o mundo à sua volta ou para expressar inquietações e angústias, um criador constantemente rasga-se publicamente, através de sua criação, expondo sangue, vísceras e dores em uma busca que jamais termina. Mas poucos diretores têm feito isso de modo tão obcecado quanto o norte-americano Abel Ferrara – em especial nos últimos anos. Em Cannes, há pouco tempo, o cineasta abordou seu casamento com uma mulher bem mais nova e as ansiedades por tornar-se pai mais uma vez já numa idade avançada, bem como seus conflitos familiares – uma autobiografia que, mesmo usando um protagonista com outro nome (Tommaso), chegava a trazer sua esposa e a filha reais vivendo suas versões ficcionais.

Agora, em SIberia, Ferrara faz um mergulho ainda mais profundo em si mesmo, escalando novamente Willem Dafoe, seu alter-ego oficial, como Clint (ou “Clint”), um homem que se isolou da humanidade ao decidir viver no meio das montanhas cobertas de neve e longe de tudo e de todos, o que não impede a chegada de uma ou outra visita ocasional que ele serve em seu bar sem clientes. Mas como ele foi parar ali? Quem era e o que fazia? O que está buscando agora? Estas são algumas perguntas que Siberia desperta, mas jamais responde; ao menos, não diretamente, abrindo mão de qualquer semblante de trama para lançar o protagonista e o espectador em uma série de sequências ligadas mais pela livre associação do que por um enredo. Aqui, Clint está numa caverna escura; ali, num vale esverdeado. Em um instante, surge sobre a neve apenas para, num corte brusco, aparecer caminhando pelo deserto.

Trata-se de uma lógica de sonho (ou pesadelo) que serve, como concordariam os freudianos, a um propósito analítico submerso no que vemos na tela, buscando iluminação nas sombras das memórias – reais ou distorcidas –, o que chegamos a ver numa imagem potente do sol nascendo dentro de uma caverna. Esta viagem pessoal, porém, é tudo, menos pacífica: constantemente, o sujeito se vê sob o ataque de cães raivosos ou de outras versões de si mesmo enquanto é visitado por representações das figuras importantes de sua história e que, como tais, são parte integrais de sua identidade. Assim, não é surpresa que ele veja o pai saindo da escuridão apenas para descobrir que este tem seu rosto – e que, minutos depois, ao pegar os óculos deste e usá-los, se veja assumindo seu papel enquanto embala uma criança que, percebemos, é ele próprio.

Mas estas sobreposições assumem eventualmente características quase metalinguísticas: além de sua esposa real, a atriz Cristina Chiriac, voltar a aparecer em uma cena no primeiro ato, mais tarde, ao discutir com uma ex-esposa (encarnada por Dounia Sichov), Clint revê o filho pequeno – que é interpretado por Anna Ferrara, a filha do cineasta. Esta, aliás, se converte em uma das sequências mais intensas do filme à medida que o sujeito é confrontado por toda a dor que causou, o que o leva a se defender com um clichê “Minha única culpa foi te amar demais” (um clichê que Ferrara por certo reconhece como tal, o que o transforma mais em autocondenação do que autodefesa).

O componente sexual, como é fácil antecipar, também desempenha papel fundamental em Siberia, sendo uma obsessão de Ferrara na Arte e, pelo que tudo sugere, na vida (obsessão compartilhada, suponho, por boa parte da humanidade) – e que vem acompanhado de movo previsível por certa culpa, culminando na imagem de um homem caminhando com uma imensa mancha de sangue sobre os genitais. Além disso, não é preciso saber nada de psicanálise para perceber o significado do momento em que Clint se vê transando com várias parceiras até ser arranhado por uma delas e, no segundo seguinte, surgir conversando com a mãe.

Contendo ainda passagens que podem ser tanto símbolos de incidentes biográficos quanto saídas de histórias contadas ou só imaginadas ao longo da carreira do diretor, Siberia é um filme que desafia interpretações que se atrevam a buscar respostas definitivas, pois, no final das contas, apenas um espectador será capaz de compreender toda a subjetividade de uma narrativa carregada de símbolos: o próprio Abel Ferrara. Mas apreciar o processo é fascinante o bastante.

 

25) Autumn tem 17 anos de idade, é uma jovem introspectiva com uma família disfuncional e acaba de descobrir que está grávida. Mantendo a expressão impassível que, percebemos, se tornou um escudo ao impedir que seus tumultos internos a tornem mais vulnerável diante daqueles que a cercam, ela retorna para casa, toma dezenas de comprimidos de vitaminas com potencial abortivo e, diante do espelho, castiga o abdômen com uma série de socos que a deixarão coberta de hematomas, mas ainda com um feto no útero. Sem ter outras opções diante das leis da Pensilvânia, que impedem que uma menor de idade aborte sem autorização dos pais, ela pega um ônibus ao lado da prima Skylar e viaja para Nova York para dar fim à gravidez.

Remetendo à obra-prima romena 4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias, este Never Rarely Sometimes Always, escrito e dirigido por Eliza Hittman, deve muito em estilo à Nova Onda do cinema daquele país ao adotar uma abordagem narrativa seca e direta ao acompanhar três dias nas vidas de suas personagens, os detalhes de sua jornada e dos procedimentos envolvidos - médicos e burocráticos. Louvável ao sugerir motivações sem sentir a necessidade de mastigá-las para o espectador, o filme indica, por exemplo, uma mentira intencional por parte da clínica que informa Autumn de sua gravidez e que, ao informar à garota que esta tem dez semanas de duração (em vez de dezoito, como veremos logo depois), tenta enganá-la para que não termine a gestação enquanto a lei permite por acreditar erroneamente ter mais tempo do que acredita para tomar a decisão.

A discussão sobre o direito ao aborto, por sinal, é algo que a cineasta promove mais através do subtexto do que do texto em si, evitando retratar os cristãos que protestam diante da clínica de aborto como caricaturas mesmo deixando evidente como tentam constranger e assustar as mulheres que entram no local – um comportamento que se contrapõe radicalmente aos modos gentis e solícitos da equipe da instituição. Do mesmo modo, seu feminismo é defendido por gestos em vez de discursos, apresentando-se através do silêncio confortável entre Autumn e Skylar ou de um plano-detalhe belíssimo que traz a primeira segurando a mão da segunda enquanto esta é beijada por um rapaz que usou um subterfúgio para isto – e a imagem daquelas mãos ficaria perfeitamente confortável em um pôster debaixo da palavra “sororidade”. Contribuem para isto as performances impecáveis de Talia Ryder, como Skylar, e principalmente a de Sidney Flanigan como Autumn, que protagoniza uma das melhores cenas entre os filmes exibidos na Berlinale de 2020: aquela que dá título ao projeto e na qual permite que o público finalmente compreenda toda a triste dimensão de sua situação. (E embora esta seja a estreia da atriz no Cinema, já posso antecipar uma carreira brilhante.)

Com uma equipe quase toda composta por mulheres, Never Rarely Sometimes Always é uma obra que enxerga a figura masculina como uma ameaça constante, seja de modo ostensivo (como o sujeito que se expõe no metrô ou o patrão das garotas) ou sutil – e aqui é importante analisar de perto as ações do rapaz que conhecem no ônibus (Théodore Pellerin) e ao qual elas recorrem para conseguir dinheiro emprestado: se alguém perguntasse a este (ou a inúmeros indivíduos como ele) se os beijos que deu em Skylar foram uma forma de abuso, estou convicto de que negaria (acreditando na própria negativa), já que, a rigor, não a forçou a nada. A verdade, porém, é mais complexa: ao receber o pedido de ajuda, o sujeito poderia ter respondido “sim” ou “não”; em vez disso, porém, adota uma postura de cara legal ao mesmo tempo em que usa este pequeno poder para levar Skylar a se sentir quase obrigada a retribuir seus avanços. A definição de abuso, portanto – mesmo que ele não veja isso.

Soberbo em sua capacidade de levar o espectador a sentir a aflição de Autumn e de tantas garotas em sua posição, este é um filme importante como representação feminina e como um estímulo essencial a um exercício de empatia por parte do público masculino, que, espero, sairá da projeção com duas certezas: que toda mulher deveria ter controle total sobre o próprio corpo e que, na discussão sobre o aborto, os homens deveriam ficar calados.

 

26) O Cinema de Hong Sang-soo é um gosto adquirido. A princípio, sua abordagem minimalista, com longos planos conjuntos estáticos (ou com lentos movimentos para acompanhar os personagens) e conversas que fluem livremente de um assunto trivial a outro podem soar como tolices descartáveis, mas o sul-coreano tem uma curiosa capacidade de ir nos conquistando pouco a pouco com seu humor sutil e até mesmo com os zooms deselegantes, mas funcionais.

Neste seu novo trabalho, Th Woman Who Ran, o cineasta mais uma vez emprega sua musa, a ótima atriz Kim Min-hee, como guia para suas explorações temáticas, acompanhando sua personagem enquanto esta aproveita uma viagem do marido (a primeira vez em cinco anos que se separam, como insiste em repetir) para visitar três amigas antigas: uma recém-divorciada; outra, mais velha, que vem mantendo um caso com o vizinho casado; e uma terceira que se caso com seu ex-namorado, um escritor famoso. Ao contrário do que ocorre na maioria de seus projetos, contudo, aqui as conversas não são regadas a álcool (mais especificamente, soju), o que as torna mais coerente e estruturadas do que de costume.

Contando com um dos melhores planos da carreira do diretor (aquele envolvendo um gato, com direito a um zoom que funciona como clímax perfeito de uma conversa hilária em sua passivo-agressividade), este é um filme simpático que os fãs de Hong Sang-soo seguramente abraçarão. Eu entre eles.

 

27) O italiano Bad Tales (Favolacce) é, como o título indica e o narrador explica, uma coleção de histórias protagonizadas por personagens desagradáveis que terminam em desastre. É um feel-bad movie, uma alegoria do sentimento de frustração e desajuste crescente de uma classe média que insiste em se enxergar como privilegiada e superior ao mesmo tempo em que reconhece sua insignificância aos olhos das elites econômicas e políticas. É, em análise, um retrato satírico de uma geração perdida que vem condenando a próxima a um destino ainda pior.

Saltando entre seus núcleos familiares com fluidez, este longa escrito e roteirizado pelos irmãos Damiano e Fabio D’Innocenzo conta com um elenco formidável encabeçado por Elio Germano (tão fantástico em Hidden Away, que também está na competitiva) e um desfecho que satisfaz por ser tão profundamente insatisfatório, num paradoxo que comprova a inteligência da narrativa. Ainda assim, a frieza consequente da própria natureza do projeto prejudica o impacto que suas revelações deveriam provocar e que tornariam suas ideias ainda mais fortes.

 

28) O capitalismo está nos levando à destruição. Ok, se você já revirou os olhos depois de ler esta frase e murmurou “lá vem ele com seu comunismo galopante”, recomendo que respire fundo e se faça uma pergunta básica: se a lógica capitalista reside na ideia de financiar apenas o que traz lucros, quais são as chances de que iniciativas de preservação ecológica, que implicam justamente na não-exploração de recursos, sejam apoiadas por bancos e outras corporações?

Dirigido pela alemã Carmen Losmann, o documentário Oeconomia é uma investigação sobre as contradições de um sistema que vem gerando crescimento econômico constante no planeta – mas antes que alguém comemore e defenda este fato como prova de que o capitalismo é salutar, é importante lembrar que a desigualdade econômica também vem se tornando cada vez mais colossal. Ou seja: se mais riquezas estão sendo produzidas, praticamente 100% destas acabam parando nos bolsos dos mais ricos ao mesmo tempo em que os mais pobres vêm enfrentando dificuldades que se tornam mais e mais opressivas.

Isto se devem, em grande parte, a um problema grave na essência do neoliberalismo que rege a economia moderna: para que o crescimento continue a ocorrer, é preciso que mais crédito seja concedido aos clientes das instituições financeiras, sejam estes pessoas físicas ou jurídicas, produzindo o que na prática é dinheiro virtual, que não reflete qualquer lastro financeiro real. Em outras palavras, o capitalismo contemporâneo funciona à base do endividamento alheio; se todos que devem aos bancos subitamente acertassem suas dívidas, o sistema entraria em colapso da noite para o dia.

Isto é algo que parece ir na contramão do que o bom senso diria, é verdade, mas ao longo de seu filme, a cineasta explica de maneira didática e convincente, através de uma estrutura engenhosa de textos inseridos em matrizes (que vão nos mergulhando no buraco sem fundo do capitalismo), como isto ocorre. De modo resumido, bancos são instituições que têm permissão de literalmente produzirem dinheiro: cada vez que aprovam um empréstimo, o valor em questão é creditado na conta do cliente sem que precise, na prática, ser debitado dos ativos da instituição – e como é uma promessa de capital futuro (já que o cliente terá que pagar aquela soma ao banco), acaba por representar uma quantia que até então não existia. Para ser mais claro: mais de 90% do dinheiro existente no mundo é puramente virtual, um número que não encontra reflexo em recursos físicos, sejam estes propriedades, ouro ou cédulas.

Mas a coisa fica pior: esta dinâmica só se mantém viva enquanto as instituições financeiras acreditam conceitualmente em seu funcionamento, o que resulta em crises cíclicas (cada vez mais frequentes e grandiosas) nas quais a dúvida leva à diminuição de crédito, diminuindo o ritmo de crescimento. E adivinhem quem tem que intervir para resolver o problema? O Estado. Ou seja: quando o 1% mais rico hesita, os 99% mais pobres fazem os sacrifícios necessários para que a elite continue a lucrar como de hábito.

Para tentar entender esta insanidade, a documentarista inclui entrevistas com alguns nomes importantes do cenário mundial, como o economista responsável por criar as políticas econômicas da União Europeia, e para sua surpresa, várias de suas perguntas são recebidas com silêncio ou risadas de embaraço diante da incapacidade de explicar como um crescimento constante pode ser algo possível (não pode) ou de onde viria o dinheiro em uma realidade na qual todas as corporações obtivessem os lucros prometidos pelo capitalismo (eles admitem não saber a resposta). Ainda mais revelador, porém, é notar como vários presidentes de instituições financeiras se recusam a conceder entrevista (ou voltam atrás depois de aceitarem), agindo como mafiosos que temem a exposição pública. O que de certa forma são.

Frustrante ao demonstrar como estamos caminhando conscientemente para a ruína apenas para que as elites econômicas possam se tornar ainda mais ricas, Oeconomia é um filme fundamental. Mas que, infelizmente, jamais será visto por aqueles que mais precisam de um choque de realidade.

27 de Fevereiro de 2020

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Sobre o autor:

Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.
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