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Festival de Berlim 2020 - Dia #07 Festivais e Mostras

DIA 07

29) “Esta história é baseada em fatos reais. Infelizmente.”, anuncia Curveball em seus primeiros segundos. É um aviso importante, pois, como veremos nas quase duas horas seguintes, o filme retrata uma série de incidentes tão absurdos e causados por atos de estupidez e irresponsabilidade tão grandes que em certos momentos o roteiro parece ter saído da imaginação dos irmãos Coen.

Iniciando a narrativa em 1997, quando o especialista em armas biológicas Arndt Wolf (Sebastian Blomberg) encontra-se no Iraque para investigar se Saddam Hussein está fabricando este tipo de material, o roteiro logo salta dois anos no tempo para ver o sujeito, de volta à Alemanha e frustrado com seu fracasso, ganhar a oportunidade de interrogar o cientista iraquiano Rafid (Dar Salim), que, em busca de exílio, promete contar como o ditador financiava laboratórios móveis pelo país – uma revelação que dá início a uma série de incidentes envolvendo o Serviço de Inteligência alemão e a CIA.

E é aí que a abordagem do diretor Johannes Naber se mostra mais acertada: ciente de estar lidando com uma história com graves consequências, mas protagonizada por indivíduos inicialmente cegos pela ambição e posteriormente paralisados pelo embaraço, o cineasta adota um tom de humor que ressalta estes aspectos sem negar a seriedade do resto. Assim, quando o chefe de Arndt na Inteligência alemã celebra a descoberta de seu agente, a comemoração se apresenta vazia de preocupação com a segurança do país, ocorrendo apenas pelo orgulho de ter “derrotado” os colegas norte-americanos – o que, por sua vez, expõe um equívoco básico em sua abordagem, que encontra-se tão predisposta a acreditar em algo que seria vantajoso que a cautela na investigação é abandonada sem remorsos.

Com exceção, claro, do protagonista, cuja obsessão em encontrar as armas biológicas é substituída por outra para impedir que as conclusões incorretas de sua investigação sejam usadas para criar políticas de guerra. Aliás, a persistência do sujeito é ilustrada pelo ótimo ator Sebastian Blomberg como uma espécie de teimosia infantil: mesmo que suas motivações sejam as corretas, Amdt as defende sem estratégia ou tato, acreditando ingenuamente que o mero fato de estar certo torna sua posição imbatível. Esta certeza é contrastada com a do iraquiano Rafid, que permite a Dar Salim roubar o filme sempre que surge em cena graças à confusão do personagem diante da reação dos agentes diante de suas mentiras; afinal, se ele inventou informações para permanecer vivo, qual é a motivação dos serviços de inteligência da Alemanha e dos Estados Unidos para insistirem em divulgá-las mesmo reconhecendo serem inverídicas?

A resposta, como de hábito, é “política” – e Curveball utiliza imagens de arquivo que trazem Colin Powell repetindo no plenário das Nações Unidas as invenções que acompanhamos durante a projeção para justificar a invasão do Iraque e sua “guerra contra o terror” (leia-se: guerra pelo petróleo).

O que, no final das contas, escancara as consequências trágicas das ações de indivíduos medíocres em situação de poder.

(Observação: durante o festival, uma disputa legal pelo título do filme levou o nome “Curveball” a ser retirado da programação, senso substituído apenas pelas palavras “Sem Título”. Como falei, os Coen seriam perfeitos para este projeto.)

 

30) É preciso admirar a coragem do jovem diretor alemão Burhan Qurbani que, em seu mais recente trabalho, escolheu adaptar nada menos do que um dos livros mais celebrados de seu país, Berlin Alexanderplatz, e que já havia gerado uma épica versão de mais de 15 horas de duração comandada por ninguém menos do Rainer Werner Fassbinder. O resultado é um longa de pouco mais de três horas que encontra boas soluções para a modernização do livro (publicado em 1929), conta com um elenco excelente, mas tropeça em seu desenvolvimento temático e, principalmente, em um epílogo digno de novela de televisão.

A base da trama é a mesma, seguindo o ex-criminoso Franz (Welket Bungué), que chega a Berlim determinado a abandonar a contravenção e levar uma vida honesta, descobrindo aos poucos que as amizades e as próprias circunstâncias de seu cotidianos são obstáculos intransponíveis no caminho deste objetivo. A diferença é que, aqui, Franz (ou Francis) é um refugiado africano cuja namorada (assassinada por ele no livro) se afogou durante a tentativa de chegar à Europa, o que traz uma série de novos subtextos à narrativa, incluindo racismo e xenofobia – e a existência dos imigrantes na Alemanha é registrada como uma série de indignidades que os transformam, na melhor das hipóteses, em mão-de-obra escrava (nas piores, são explorados sexualmente ou forçados ao crime).

Dividido em cinco partes que recontam a jornada do protagonista a partir de “três quedas” enfrentadas em seus esforços de reabilitação, Berlin Alexanderplatz é encabeçado pelo carismático e talentoso Welket Bungué, que usa a angústia constante de Franz como centro de sua composição, não permitindo que o personagem relaxe nem mesmo em seus poucos instantes de alegria. Enquanto isso, Jella Haase consegue a proeza de conferir inocência e astúcia ao mesmo tempo a Mieze, ao passo que Albrecht Schuch oferece uma performance hipnotizante como Reinhold, fazendo escolhas de caracterização que deveriam torná-lo uma caricatura (como sua postura física estranha, sempre com a mão esquerda na cintura, e a voz sussurrada), mas que resultam num vilão estupendo.

Aliás, Reinhold se torna tão marcante que isto compromete o desenvolvimento temático do longa, já personifica o mal que insiste em derrubar Franz, diluindo, assim, a relevância dos aspectos sociais e políticos da história. Até que vem o epílogo covarde que acaba por derrubar o filme.

 

31) Lin é uma documentarista chinesa respeitada que acaba de sair de um longo relacionamento. Em constante movimento entre Japão, Hong Kong e seu país, ela visita amigos antigos, viaja com frequência para visitar os pais idosos no interior e apresenta seus filmes em festivais e exibições especiais. Mas sempre que alguém menciona seu ex-namorado por não estar a par do término, ela se desvia do assunto, indicando feridas ainda abertas que, no entanto, não se mostra disposta a explorar.

Comandado pela cineasta Song Fang, The Calming é um estudo de personagem que, como o título em inglês indica, demonstra interesse pelas processos internos da protagonista enquanto esta lida com suas questões pessoais – que envolvem ainda a doença do pai – e com a solidão que se torna praxe em seu cotidiano. Para isso, o longa assume um ritmo contemplativo que através de longos planos observa a mulher enquanto esta observa o mundo com sua curiosidade artística de alguém habituado a enxergar tudo com lirismo.

Evocando a inteligência, a sensibilidade e a solidão de Lin através de uma interpretação magistral em seu minimalismo, a atriz Qi Xi sustenta a narrativa de modo impressionante, esteja ajudando a mãe nas tarefas de casa, trocando reminiscências com uma amiga ou apenas olhando as montanhas cobertas de neve. Uma das melhores atuações que vi ao longo da Berlinale, sem dúvida alguma.

 

32) Inspirada em fatos reais, One of These Days gira em torno de um concurso que durante anos ocorreu em uma cidade do Texas e que, promovida por uma concessionária de automóveis, envolvia um teste de resistência, iniciando com 24 competidores em volta de um veículo que tinham, como única regra, jamais tirar as duas mãos da lataria. O último a permanecer nesta posição ganhava o automóvel.

Escrito e dirigido pelo alemão Bastian Günther, o filme desenvolve sua narrativa a partir de dois personagens: o jovem pai de família Kyle Parson (Joe Cole), que prometeu à esposa que venceria, e a relações públicas da concessionária, Joan Dempsey (Carrie Preston), uma mulher cheia de energia que supervisiona a disputa desde sua primeira versão. A partir daí, o longa enfoca os sacrifícios exigidos dos participantes e extrai tensão não só do suspense quanto a quem sairá vitorioso, mas também por trazer desde o princípio a sugestão de que a história não acabará bem.

Ensaiando um comentário desajeitado sobre como o consumismo associado às desigualdades sociais leva a espetáculos de humilhação pública como o visto, One of These Days é o retrato do fracasso do “sonho americano”, pecando pela obviedade ao mastigar a motivação de Kyle para o público (“Ele não precisava do carro, mas de vencer”) em vez de confiar em sua habilidade de apresentá-la organicamente. Ainda assim, este é um drama que mantém o espectador atento e interessado.

Até cometer, nos quinze minutos finais, um ato de autodestruição inexplicável em sua estupidez, jogando fora tudo que havia construído ao revelar uma estrutura cronológica anticlimática, insatisfatória e que ignora alguns dos princípios mais básicos na construção de um roteiro.

 

33) O cineasta russo Ilya Khrzhanovskiy é insano. Em 2006, depois de decidir dirigir uma cinebiografia do físico Lev Landau e conseguir um financiamento um pouco maior do que planejava, ele decidiu que a abordagem lógica seria, em vez de construir cenários específicos, erguer uma cidade inteira. Nascia, assim, o que ficou conhecido como O Instituto, um dos maiores sets de filmagem da História do Cinema, que recriava as ruas de Moscou no período stalinista com um nível de detalhes impressionante. Não satisfeito, o realizador realizou dezenas de milhares de testes com atores não profissionais e povoou sua cidade durante três anos – e o imenso elenco se mantinha nos personagens 24 horas por dia, mesmo quando as câmeras não estavam rodando. O resultado: uma exposição/instalação que seria montada em Londres, Paris e Berlim e, não menos importante, treze longas-metragens em vez daquele que deu origem à empreitada (cada filme se concentra em um grupo de personagens ou em períodos particulares).

Um destes longas é DAU – Natasha, que acompanha a personagem-título, a funcionária da cafeteria frequentada pelos funcionários do instituto de pesquisa que serve de âncora ao projeto. Vivida pela estreante Natalia Berezhnaya, Natasha passa os dias tentando convencer sua subalterna Olga (Olga Shkabarnya) a desempenhar suas funções, alternando entre brigas (que chegam ao confronto físico) e momentos de amizade e cumplicidade. Além disso, a história enfoca o envolvimento da protagonista com o cientista visitante Luc Bigé (encarnado pelo... astrólogo Luc Bigé) em um romance que o serviço de segurança soviético dificilmente verá com bons olhos, já que o sujeito é estrangeiro.

Mas talvez eu não devesse ter usado a palavra “história”, posto que na maior parte do tempo Natasha soa improvisado, sendo construído a partir de longas cenas nas quais os atores conversam com liberdade, explorando tangentes que em ocasiões chegam a tirar o foco da narrativa de modo por vezes prejudicial – e muitas das interações entre as duas mulheres enveredam por caminhos opostos em uma mesma cena, saltando da briga ao riso nem sempre de forma convincente apesar da entrega de ambas (uma entrega que pode ser constatada, por exemplo, através dos arranhões reais que vemos em seus rostos e pescoços depois de uma troca de agressões).

Esta liberdade de ações, porém, não é um equívoco de Khrzhanovskiy, mas sua estratégia narrativa principal: na segunda metade do filme, ele chega a incluir uma longa cena na qual Natasha ensina Olga a beber certa combinação alcoólica e o que testemunhamos nos 20 minutos seguintes (uma estimativa conservadora) é a embriaguez crescente e real das atrizes, com a mais jovem chegando a vomitar e se tornando incapaz de articular frases coerentes. Já em outro instante, testemunhamos as interações de Natasha e Luc, que não falam a mesma língua e têm a conversa intermediada pelas traduções confusas de Olga em inglês, o que traz certa doçura desajeitada ao romance.

No entanto, não há como negar que o grande atrativo de DAU – Natasha é mesmo o design de produção. Em vários pontos da projeção, me surpreendi admirando detalhes como o formato de um cinzeiro, uma pia no canto do cômodo, o formato da torneira de uma banheira ou os rótulos dos suprimentos do restaurante, bem como as peças de figurino que refletem não só a época e a personalidade dos personagens, mas o uso constante.

Brutal ao encenar um interrogatório da polícia de Estado que abarca humilhações morais e físicas, incluindo agressões que nada têm de simuladas, o diretor é bem sucedido ao evocar o horror da repressão e a natureza imprevisível que assume em um país tomado pelo autoritarismo, mas, se levarmos em consideração a violência à qual integrantes do elenco são submetidos, a decisão de Khrzhanovskiy de incluir sequências de sexo explícito e o histórico da própria produção, com vários tipos de abuso relatados durante os três anos de filmagem, Dau – Natasha cruza uma fronteira ética perigosa que acaba por moldar a percepção do espectador acerca do que vê – tanto que, embora nunca comente os bastidores dos longas que analiso, me vi compelido a fazer uma exceção aqui.

O projeto é fascinante, não há dúvida, mas não é possível avaliá-lo sem reconhecer também o custo moral de todo o processo.

28 de Fevereiro de 2020

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Sobre o autor:

Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.
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