DIA 01
Foi em 2001 que cobri minha primeira Mostra de São Paulo. Na época, o Cinema em Cena tinha apenas quatro anos de existência e eu estava roteirizando e apresentando um programa homônimo em uma TV local de Belo Horizonte quando meu amigo Pedro Olivotto, na época dono do cinema Belas Artes da capital mineira, sugeriu que eu participasse do evento. Havia, ainda, bastante resistência da Mostra com relação a veículos exclusivamente virtuais, mas depois de algumas trocas de e-mails e telefonemas, consegui uma credencial. Aliás, mais do que isso: por algum motivo, a organização aceitou arcar com os custos da minha hospedagem – algo que só voltou a acontecer duas outras vezes (e uma delas porque fiz parte de um dos júris).
Foi amor à primeira sessão. Desde então, perdi, creio, apenas uma edição deste que foi o primeiro grande evento que cobri em minha carreira como crítico de cinema.
Em 2020, em função da pandemia, a Mostra está ocorrendo online, o que substitui a atmosfera corrida e deliciosa da versão presencial por algo menos mágico, mas acessível para quem jamais pôde ir a São Paulo para viver 14 dias de puro amor pela Sétima Arte.
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Ainda que a divisão da cobertura por dias de programação seja algo meio sem sentido numa versão em que os filmes não estão presos a cronogramas específicos, tentarei manter o hábito dos eventos passados ao menos para trazer alguma estrutura aos trabalhos – e, assim, vamos aos longas vistos no “primeiro” dia:
01) Logo nos primeiros segundos do documentário Impedimento em Cartum, os seguintes letreiros descrevem o tema central do filme de maneira breve e objetiva: “Sob o atual regime militar islâmico no Sudão, as mulheres não podem jogar futebol - e tampouco podemos fazer filmes. Mas..”
É neste “mas” deixado em aberto que nascem as revoluções.
Dirigido pela saudita Marwa Zein em sua estreia em longas-metragens, o filme acompanha um grupo de mulheres apaixonadas por futebol que, mesmo sob todas as restrições impostas pelo governo de seu país, tentam conseguir reconhecimento oficial para a primeira seleção feminina do Sudão. Pobres, mas devotadas ao esporte, elas fazem vaquinhas para pagar o aluguel de quadras nas quais possam treinar, tentam organizar times suficientes para que um campeonato feminino se torne viável e lidam com travas criadas pela burocracia, pelo autoritarismo, pelo machismo e pela corrupção.
Seguidas pela câmera de Zein durante partidas amadoras, conversas de bar e reuniões com os líderes da federação local de futebol, as mulheres são forçadas a conciliar seus esforços com trabalhos (normalmente braçais e mal pagos) que tragam alguma renda, ressaltando, através de sua exaustão, a dimensão de sua devoção à causa que abraçaram.
Infelizmente, de tempos em tempos a cineasta parece perder o foco ao seguir alguma tangente que, mesmo ilustrando o cotidiano das personagens, pouco acrescenta ao que estas têm a dizer sobre o que buscam alcançar. Ainda assim, é tocante observar como, pela mera paixão que exibem pelo futebol, elas acabam por inspirar uma nova geração de meninas que certamente crescerão com a consciência de que podem e devem exigir mais de uma sociedade comandada por homens que – como de costume - se negam a vê-las como iguais.
02) “A verdade não reconhecida até mesmo por aqueles ansiosos em apoiar as mulheres é que elas, assim como as classes trabalhadoras, são oprimidas. E que esta condição, como a dos trabalhadores, é de impiedosa degradação. A mulher é uma vítima da tirania masculina assim como os trabalhadores são vítimas da tirania dos exploradores; ela foi expropriada de seus direitos como ser humano assim como os trabalhadores são expropriados de seus direitos como produtores. O método em ambos os casos é o único que torna possível a exploração em qualquer momento e circunstância: a força”.
Dito para ninguém em particular em cena – em outras palavras: para o espectador -, este discurso feito pela personagem-título de Miss Marx em certo ponto da projeção é, como se pode perceber, uma articulação aberta, sem sutilezas, das ideias da protagonista sobre o sistema patriarcal que limita suas possibilidades por mais livre que ela seja comparada à boa parte de suas contemporâneas. E, no entanto, mesmo que seja possível acusar o roteiro escrito pela também diretora Susanna Nicchiarelli de excesso de didatismo, transformando em monólogo o que poderia ser transmitido de modo mais narrativamente ambicioso, a verdade é que, dentro da lógica do filme, este posicionamento faz sentido ao refletir como, em outras passagens, a personagem vê suas tentativas de se expressar sendo interrompidas pelo companheiro em um exemplo típico do que passou a ser chamado de manterrupting, restando-lhe, portanto, a opção de usar uma quase quebra da quarte parede para finalmente poder se comunicar.
O mais irônico (e trágico) nesta situação é que Eleanor “Tussy” Marx (Romola Garai) é, de modo geral, uma pessoa forte, independente e cuja inteligência se torna ainda mais viva por vir associada à sua rebeldia; assim, vê-la ignorar todos os sinais vermelhos disparados pelo comportamento do amado, Edward Aveling (Patrick Kennedy), é algo que ressalta como a própria estrutura na qual foi criada parece tê-la condicionado a sentir-se obrigada a apoiar o companheiro. “Ainda somos moralmente dependentes dos homens”, ela diz, exibindo o olhar cansado e triste que Garai adota como marca constante da personagem. O problema, percebemos, não é a série de decepções com Edward – já esperadas -, mas o “dever” de tolerá-las.
Filha caçula de Karl Marx (Philip Gröning), Eleanor é ao mesmo tempo fruto das ideias progressistas deste e de um sentimento de que, no fim das contas, ele não a levava tão a sério quanto dizia; um contraste que, claro, dói mais justamente pela contradição – e há também um termo moderno para isto: esquerdomacho. Aliás, o próprio Edward é um exemplo perfeito desta condição, já que, tão empenhado em discutir e defender os problemas das classes operárias, é capaz de fazer uma “piada” agressiva sugerindo que um final ideal para a Nora de Casa de Bonecas, de Ibsen, seria ser morta pelo marido Torvald (infelizmente, este é o menor dos pecados de Edward).
Iniciando em 1883 com a morte de Karl Marx, Miss Marx é, em resumo, um estudo de personagem que ganha ainda mais relevo por lidar com uma figura cuja trajetória e cujos dilemas encontram forte eco nas sensibilidades sociais e políticas contemporâneas, permitindo que o filme extrapole as ações e ideias de Eleanor a partir não só de quem era, mas de quem poderia ter sido - uma abordagem narrativa que, de modo próximo à metalinguagem, é adotada pela própria protagonista ao tentar imaginar como os poetas Byron e Shelley teriam mudado caso não tivessem morrido tão jovens (o primeiro teria se tornado um “reacionário burguês”; o segundo, um “líder do socialismo”).
Outro elemento interessante da estratégia da cineasta (responsável pelo ótimo Nico, 1988) reside na utilização do punk rock como forma de amarrar musicalmente as sequências que lidam com a passagem do tempo e que refletem a natureza rebelde de Eleanor. No entanto, em vez de seguir, por exemplo, o que Sofia Coppola fez em Marie Antoinette, Nicchiarelli mantém estas intervenções anacrônicas afastadas da linha principal da história – com uma única e poderosa exceção durante a qual Eleanor finalmente parece ouvir (não literal, mas simbolicamente, claro) a música vinda do futuro. O que não quer dizer que o filme não encontra espaço para A Internacional, evidentemente.
Vivida por Romola Garai como alguém cuja convicção ideológica é reafirmada a cada encontro com operários (crianças, inclusive) trabalhando em condições sub-humanas, Eleanor Marx sabe – e expõe – como a luta de classes é um fenômeno inato, inevitável, em qualquer sociedade que mensure o valor do trabalhador com uma métrica distorcida para beneficiar aqueles que o exploram. E que, ao contrário dos homens esclarecidos que a cercam, não demora a constatar como esta mesma distorção atua contra metade da população do planeta, independentemente de qualquer ideologia.
03) O artista plástico e documentarista chinês Ai Weiwei é, sem dúvida, um dos críticos mais célebres do governo de seu país – e é em parte esta natureza de “celebridade” que o torna tão importante, já que suas denúncias ganham voz internacionalmente e se tornam difíceis de sufocar (não que Pequim não tenha tentado, como podemos ver no excelente Ai Weiwei: Never Sorry, de 2012). Igualmente importante, contudo, é a rede de colaboradores criada pelo sujeito e que foi empregada de modo brilhante na captura das imagens que compõem este seu novo longa, CoroNation, que registra a realidade em Wuhan durante os primeiros meses da crise de saúde provocada pela COVID-19 e que viria a se espalhar rapidamente por todo o planeta.
Autoexilado na Europa há algum tempo, Weiwei moldou as centenas de horas de imagens recebidas para construir uma narrativa que, mesmo ocasionalmente se perdendo em tangentes que refletem mais suas obsessões pessoais do que os efeitos da pandemia em si, leva o espectador para o centro daquela catástrofe humana, sendo mais do que apropriado que a projeção tenha início quase como um filme de terror ao acompanhar um casal que retorna de carro a Wuhan depois que a região se encontra em lockdown: além das estradas vazias em uma noite coberta de neve, eles passam por controles periódicos que exigem suas identidades, monitoram suas temperaturas e anotam seus dados de contato antes que possam continuar a viagem. Tudo para serem recebidos em casa pela imagem arrepiante de seus peixes mortos e congelados no aquário da sala.
A partir daí, CoroNation salta pelos meses seguintes enquanto enfoca várias facetas da situação, desde a impressionante construção de um hospital inteiro (com dois andares e capaz de atender mil pacientes) em apenas dez dias até a chegada de milhares de profissionais de saúde (jovens em sua maioria) à região em meio aos aplausos do habitantes locais, o que é tocante tanto pela bravura de médicos e enfermeiras quanto pelo reconhecimento por parte dos residentes. Aliás, a gravidade da situação fica patente também graças ao acesso obtido por aqueles que tudo registraram (e cujas identidades são mantidas em anonimato), já que podemos ver os detalhados procedimentos de segurança que envolvem qualquer tarefa, de vestir e remover peças de roupas a compartilhar os prontuários dos pacientes com outros médicos (como os papéis não podem sair de suas áreas por estarem contaminados, há tablets disponíveis para que sejam fotografados e enviados pela Internet para grupos específicos).
Ao mesmo tempo, o documentário ajuda a ressaltar a humanidade daquelas pessoas, buscando dissipar a imagem de frieza que normalmente é conferida aos chineses sempre que são retratados no restante do mundo – e, de novo, é comovente testemunhar os esforços feitos para trazer algum calor humano ao ambiente, seja através das carinhas sorridentes desenhadas nos trajes esterilizados, seja através dos desenhos que cobrem trechos das paredes internas dos corredores e mostram homens e mulheres combatendo versões gigantes do coronavirus.
É óbvio, porém, que Ai Weiwei não deixa de escancarar as falhas grotescas do governo chinês e que causam sofrimentos e mortes perfeitamente evitáveis: em certo momento, por exemplo, acompanhamos a situação desesperadora de um operário que, depois de viajar até Wuhan para ajudar a construir o hospital, é impedido de deixar a região e acaba tendo que viver em seu carro até que o lockdown seja suspenso. Do mesmo modo, a falta de transparência nas semanas iniciais da pandemia, somada às constantes negativas de que algo errado estava ocorrendo, leva os cidadãos a assumirem riscos desnecessários e fatais – como explica um homem que permitiu que o pai idoso retornasse à cidade por julgar que estava tudo sob controle e agora não consegue sequer ter acesso às cinzas deste. Por outro lado, há instantes em que o diretor se mostra tão ansioso para (justificadamente) criticar o governo chinês que acaba gastando um tempo precioso repetindo pontos já amplamente discutidos e estabelecidos (como a longa passagem que se dedica a expor o fanatismo de uma senhorinha pelo Partido).
Encerrando de forma apropriada com a dor dos parentes que buscam as cinzas de familiares no que parece ser a repartição pública mais mórbida da história da humanidade, CoroNation é provavelmente o primeiro documentário a retratar de modo abrangente, com acesso quase irrestrito (mesmo que anônimo), os bastidores dos estágios iniciais desta crise sem precedentes. Considerando o contexto, não consigo pensar em um nome melhor para ter executado esta tarefa do que o de Ai Weiwei.
04) CoroNation, contudo, foi o segundo longa que Ai Weiwei lançou em 2020; no início do ano, o artista chinês já havia apresentado Vivos, documentário rodado no México e que lida com as consequências do desaparecimento de 43 estudantes em setembro de 2014 enquanto voltavam de um evento na capital em homenagem às vítimas (também estudantes) de um massacre ocorrido em 1968. Embora diversas teorias tenham sido apresentadas ao longo dos últimos anos (teria sido uma represália política; eles teriam entrado por engano em um ônibus que transportava heroína), a “verdade histórica” apresentada pelo governo mexicano – sim, eles chamaram de “verdade histórica” – reza que os jovens foram presos pela polícia local e então entregues a um cartel, que teria executado todos eles por julgarem erroneamente que eram membros de uma organização rival. Esta conclusão, no entanto, é rechaçada por evidências científicas e forenses – o que leva a uma pergunta incômoda: se a versão mentirosa é tão pavorosa a ponto de sugerir conluio entre política e narcotraficantes, que tipo de horror estaria no centro do que realmente aconteceu?
Como é fácil imaginar, esta é uma situação que se encaixa perfeitamente nas preocupações habituais de Ai Weiwei com relação a governos autoritários, corruptos e que empregam a violência como forma de calar os cidadãos – e aqui ele encontra mais uma função nobre para sua câmera ao usá-la para dar voz aos parentes das vítimas, que, seis anos depois, seguem cobrando as autoridades para que devolvam seus filhos com vida.
Este, aliás, é um dos aspectos mais tristes de Vivos: a esperança persistente de muitas daquelas pessoas de que um dia, de algum modo, seus filhos retornarão (não por acaso, Weiwei abre a narrativa com imagens de homens e mulheres olhando em direção ao horizonte, como se a qualquer momento um dos jovens pudesse surgir na curva da estrada de terra. Mas qual seria a alternativa para estes pais e mães que não puderam se despedir dos filhos ou, no mínimo, descobrir o que sofreram em seus instantes finais? Não há horror maior do que a ideia de perder um filho (alguns dos entrevistados perderam dois) – a não ser aquele que provocado pela impossibilidade de sequer saber se, como, quando ou onde este(s) teria(m) morrido.
Enfocando aquelas famílias através de quadros abertos que frequentemente ressaltam a ausência das vítimas através de suas fotos nas paredes (além de figuras de santos e cartazes de protesto), Vivos não se preocupa em tentar desvendar o que realmente teria ocorrido (e como poderia?), optando, em vez disso, por honrar a dor das famílias e permitir que possam registrar suas lembranças e manifestar o amor que sentiam e sentirão, usando o microfone internacional oferecido por Ai Weiwei para também expressar sua revolta e denunciar o descaso com que são tratadas por seu país.
Não é surpresa, por sinal, que todos que surgem na tela sejam camponeses ou indígenas (e, portanto, pobres); seja no México, no Brasil, na China ou nos Estados Unidos, o sofrimento dos miseráveis é uma constante ignorada pelos poderosos, que parecem geneticamente incapazes de compreender um princípio que deveria ser absoluto: o de que a dor de um indivíduo é a dor de toda a humanidade.
24 de Outubro de 2020
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