Já houve intermináveis tentativas de adaptar contos de fadas para mídias além da narrativa descrita. Filmes, séries, jogos e quadrinhos já tentaram recontar essas histórias de reinos mágicos, criaturas incríveis, maldições e monstros, mas a sensação provocada pela experiência de absorver um conto de fadas em sua forma original é única. Pode-se traduzir todos os elementos da história para uma mídia visual, mas essa sensação de intimidade e magia vive apenas nas palavras.
O que é responsável por causá-la é o fato de os contos de fadas só se concretizarem completamente dentro da mente do leitor. Você é quem molda a forma final das imagens presentes no texto, usando os elementos descritos nas frases como utilizaria pistas para resolver um mistério.
Cada pessoa imagina o que está sendo narrado de formas diferentes. Se você ler a descrição “Cravada na rocha, havia uma espada. Sua lâmina dourada cintilava sob o facho de luz que penetrava por uma rachadura no teto da caverna”, você verá essa imagem de uma forma única, exclusiva. Mais que isso: você só verá essa imagem - dessa forma específica - uma vez. Se, no futuro, retornar à história, sua mente criará uma outra imagem única.
A momentaneidade e intimidade das imagens criadas pela criatividade individual é o que adaptações visuais de contos de fada não conseguem replicar.
Pois The Unfinished Swan chega bem perto. Contando a história (dividida em quatro capítulos) de um garotinho que entra em um reino mágico ao perseguir um cisne incompleto que escapou de uma pintura não finalizada de sua falecida mãe, o jogo evoca esta sensação da construção de um mundo fantástico através de seu design de som detalhado e de sua mecânica principal simples, mas eficaz e criativa: atirar gotas de tinta preta para revelar o ambiente, até então completamente branco, pelo qual devemos navegar.
As formas pretas, sem textura ou sombreado, que nos são reveladas quando jogamos tinta de nosso pincel e os ruídos produzidos pelo mundo em que estamos (nossos passos, o canto dos pássaros, o vento) são as dicas que nossa imaginação segue para preencher os espaços presentes entre o que podemos ver e o que permanece escondido no branco.
Dessa forma, o jogo dá o tom mágico à história que explica seu universo e que, contada em textos espalhados pelos caminhos que percorremos em nossa aventura, falam de um monarca que se esforça para criar o reino perfeito. O jogo explora o ato de criar através do rei, expondo-o como um artista frustrado com sua Arte, já que esta, sempre que ganha vida e personalidade, revela suas próprias falhas (como o labirinto em volta de seu castelo, que se prova lindo, mas impossível de navegar). Ao longo de sua vida criativa, quando sua Arte não se comporta da forma que ele concebeu, o rei consegue apenas abandonar o que criou ou tenta forçar suas criações a se comportarem da forma que ele deseja, mutilando-as no processo e arruinando sua beleza - como quando tenta controlar as vinhas crescendo por todo seu reino dando vida a um monstro violento para caçá-las.
É através dessa história, inclusive, que o jogo explica a estética minimalista e extremamente criativa que escolhe adotar e a evolução que ela sofre ao longo da história, já que se trata do resultado do rei tentando aprimorar sua Arte e, ao mesmo tempo, agradar seus súditos. O branco infinito que abre o jogo eventualmente adota detalhes dourados; depois, sombras são adicionadas para ressaltar e revelar as formas perdidas no branco perfeito. Nos ambientes seguintes, algumas cores discretas são acrescentadas a certos elementos que compõem o reino, como o azul claro dado à água e às bandeiras dos castelos, ao passo que, eventualmente, o verde também se junta à paisagem, inicialmente nas vinhas que crescem pela cidade e depois se espalhando para outras plantas e alguns balões.
E mesmo que esses diversos detalhes adicionados alterem fortemente a estética (até chegarmos a um ponto em que a cor dominante é trocada de branco para preto), ela se mantém consistente, sendo sempre dominada por uma simplicidade que a faz parecer um desenho 2D composto por formas simples sobre papel.
Junto com a estética, a forma que a única mecânica do jogo - jogar gotas com nosso pincel - é usada também evolui: inicialmente, atiramos as gotas de tinta apenas para ajudar nossa navegação pelo reino, revelando suas formas e caminhos; depois, as gotas são usadas para impulsionar a movimentação de certos objetos, abrindo passagens, ou ativando mecanismos da arquitetura. No segundo capítulo do jogo, passamos a jogar gotas de água para guiar e impulsionar o crescimento de vinhas que poderemos usar para escalar, ou para nos guiar e, no terceiro capítulo, quando entramos em uma floresta escura infestada por aranhas escondidas nas sombras, usamos as gotas para acender e movimentar fontes de luz, garantindo nossa segurança.
A mecânica se mantém inalterada sempre com o objetivo de possibilitar nossa navegação por aquele mundo, mas sua funcionalidade muda drasticamente. E o mais interessante é que todas as ações que tomamos ao longo do jogo são construtivas, nunca destrutivas: pintar, aguar, iluminar, criar. Nossa visita a esses ambientes maravilhosos apenas incentiva o embelezamento destes, o desenvolvimento de suas estéticas. Nós contribuímos para as criações do rei mesmo que ele, controlador e perfeccionista, provavelmente viesse a acreditar que estamos apenas atrapalhando sua visão.
Acompanhados pela trilha sonora composta por Joel Corelitz, que é uma linda mistura de digital e orquestral, esses ambientes criam um universo único, com uma atmosfera calma e leve, contando pacientemente um conto de fadas que carrega uma exploração poderosa do legado que um artista deixa através de sua Arte (ou apesar dela) - uma análise do processo criativo que é, infelizmente, ferida e bagunçada pelo último capítulo do jogo (sobre o qual não revelarei nada). O desfecho da história, ao contrário do resto da narrativa, acontece rapidamente, com um ritmo tão acelerado que os últimos momentos que assistimos chegam a parecer quase que casuais, como se fossem só mais um detalhe irrelevante que revelamos com tinta preta.
Devido a isso, quando olhamos para trás e analisamos The Unfinished Swan como um todo e relembramos os mistérios e detalhes que o jogo apresentou, mas aparentemente esqueceu de expandir ou explicar, ele se revela ser uma obra de Arte incompleta.
Como o cisne que dá origem ao seu título.
18 de Novembro de 2020
Leia também a edição #01 da coluna.
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