2020 – O Filme (2020 - The Fucking Movie, 2020) – 1 estrela em 5
Um dos grandes problemas relacionados à produção de continuações de obras de sucesso reside na necessidade experimentada pelos roteiristas de aumentar a intensidade e os riscos vividos pelos heróis. É assim que uma franquia vai de um vilão por filme (o Duende Verde em Homem-Aranha ou o Coringa no Batman de Tim Burton) a um excesso que compromete a narrativa (Duende Macabro, Venom e Homem-Areia em O Homem-Aranha 3; Hera Venenosa, Senhor Frio e Bane em Batman & Robin). Com o objetivo de justificar o envolvimento emocional do público e mantê-lo interessado nos acontecimentos, as continuações aos poucos se aproximam de exageros que as tornam absurdas e implausíveis.
Talvez isto explique um pouco o fracasso de 2020 – O Filme.
Vindo na esteira de uma produção repleta de tragédias que haviam atirado o público em um estado emocional de profunda angústia (a malfadada 2019 – O Filme, que, por sua vez, já vinha tentando superar os incidentes retratados nos títulos anteriores, 2018, 2017 e, claro, 2016), este 2020 tem um início até discreto, que basicamente se limitava a dar continuidade a um elemento de roteiro apresentado no capítulo anterior: os incêndios florestais na Austrália. Pavorosos por resultarem na morte ou no deslocamento forçado de cerca de três bilhões de animais, estes incêndios ainda viriam a compor uma rima temática com aqueles que posteriormente ocorreriam na Califórnia com efeitos também devastadores, sendo também um elemento relacionado a outro tópico que estes projetos vêm desenvolvendo há tempos e cuja urgência cresce a cada capítulo: o do aquecimento global.
Contudo, os roteiristas de 2020 logo resolveram deixar claro que não aceitariam ficar atrás de seus antecessores, elevando o nível de tensão da narrativa ao incluírem, já no primeiro ato, um ataque do governo norte-americano que resultaria na morte de um importante general iraniano, levando o mundo a um suspense imediato quanto à possibilidade de uma Terceira Guerra Mundial. Curiosamente, porém, o que se seguiu foi um (bem-vindo) anticlímax, já que o Irã optou por um gesto simbólico ao atacar duas bases dos Estados Unidos sem provocar fatalidades – uma solução elegante que permitia que os líderes do país afirmassem ter retribuído o ataque sem necessariamente escalar o conflito.
O que o público desatento pode ter deixado passar despercebido, no entanto, é que aqui 2020 empregou um recurso clássico do gênero Terror, criando um momento de tensão que, subitamente aliviado, desarma o público para o susto que virá a seguir.
E foi aqui que a narrativa introduziu seu novo vilão – e que já pode ser considerado um dos ícones da franquia: o diminuto (microscópico, na realidade), mas intenso, SARS-CoV-2, que o público logo passou a tratar por seu apelido, “coronavírus” (ou, em alguns fandoms, “corona” ou “rona”). Mudando a lógica e a atmosfera da história quase imediatamente, CoV-2 inicialmente se tornou célebre na Ásia, conquistando o restante do mundo nas semanas e meses seguintes e inspirando discussões e teorias acerca de suas origens, estratégias e destino. Além disso, CoV-2 permitiu que os responsáveis por 2020 (os diretores são anônimos, mas eu apostaria nos irmãos Safdie) criassem um tom de tensão colossal ao mesmo tempo em que investiam em imagens que remetem a mundos pós-apocalípticos – e os planos que revelam metrópoles com suas ruas completamente vazias estão entre os mais emblemáticos dos últimos anos. Infelizmente, a presença de CoV-2 também despertou um lado impiedoso dos roteiristas de 2020, que incorporaram George R.R. Martin e Robert Kirkman (para citar apenas dois escritores contemporâneos) na facilidade que demonstraram para eliminar vidas importantes da história.
Ao mesmo tempo, 2020 insistiu em manter elementos terríveis das tramas que também faziam parte dos capítulos anteriores – em especial, os stormtroopers que, mesmo usando figurinos diferentes dependendo de cada locação, exibem um talento repugnante para a violência. Assim, se nos Estados Unidos tivemos as mortes de George Floyd e Breonna Taylor inspirando protestos em todo o país, no Brasil as tragédias atingiram também um número demolidor de crianças, estabelecendo nomes como Anna Carolina, João Vitor, João Pedro, Luiz Antônio, Ítalo Augusto, Leônidas, Emilly e Rebecca como símbolos de um sistema quebrado que trata a população (especialmente se pobres e negras) como elementos sem importância. Enquanto isso, o assassinato bárbaro de João Alberto pelos funcionários do Carrefour reforçou como o racismo ainda é um componente inconfundível da narrativa, embora muitos espectadores com problemas de caráter insistam que deixou de fazer parte da história em 1888 – O Filme. Lamentavelmente, duvido muito que a questão seja eliminada nas próximas continuações, já que seria preciso mudar toda a equipe de roteiristas no comando para que isto ocorra. (Os contratos destes se encerrarão com a conclusão de 2022, então há esperança.)
Mas o SARS-CoV-2 não foi o único vilão de 2020, já que, como apontei no início, os obstáculos no caminho das heroínas têm se tornado cada vez maiores: enquanto na Rússia o presidente (Vladimir Putin, assustador sem jamais mudar a expressão do rosto) garantiu sua permanência no poder até – potencialmente – 2036, nos Estados Unidos o estúpido Jabba Laranja (Donald Trump, perfeito para o papel) pareceu determinado a recriar o desfecho de Fúria Sanguinária ao surgir, em seus momentos finais, como o Cody Jarrett de James Cagney gritando “Made it, Ma! Top of the world!” antes de explodir e abandonar a história de uma maneira patética em vez de digna.
O que nos traz ao personagem mais repugnante, medíocre e desprezível de 2020 (e também do antecessor, 2019), o miliciano Jair Bolsonaro. Surgindo ainda mais ridículo que nos capítulos anteriores, Bolsonaro se tornou, ao longo da narrativa, uma verdadeira caricatura – e os responsáveis pela maquiagem do personagem merecem o Oscar mesmo que exagerem ao criar uma figura de pele flácida e cinzenta, dentes manchados, sobrancelhas arqueadas e um olhar cujo vazio (provavelmente resultado de lentes ou efeitos digitais) denota a total ausência de um cérebro funcionante. Orgulhando-se de fazer o que pode para provocar a destruição econômica ou a morte do maior número de brasileiros, o miliciano deixou o Pantanal e a Amazônia queimarem, homenageou militares torturadores e assassinos, interferiu na Polícia Federal para tentar proteger um dos filhos (que também empregou a Abin em seus propósitos), permitiu que outro fosse beneficiado com trabalhos gratuitos de uma empresa que tinha concessão com o governo, fez declarações homofóbicas, racistas e misóginas (o que já se tornou um clichê do personagem) e atacou jornalistas. E, ainda assim, nada disso se compara a algo tão inacreditável que chega a ser espantoso que os roteiristas de 2020 não tenham tido vergonha de incluir na trama: os esforços feitos pelo presidente para aumentar o impacto que seu parceiro de vilania, SARS-CoV-2, teria sobre o país, discursando contra distanciamento social e uso de máscaras, insistindo em fabricar, divulgar e distribuir um medicamento que não só não funciona como traz sérios efeitos colaterais e – o que beira a sátira – se negando a negociar as vacinas que o restante do planeta celebrava e se preparava para oferecer às pessoas. Aliás, o nojo despertado por Bolsonaro foi tão grande que ofuscou em parte até os feitos igualmente desprezíveis de coadjuvantes como Paulo Guedes e Sérgio Moro (que, de vilão nos capítulos anteriores, agora se tornou um quase figurante cuja verdadeira natureza se tornou patente até para o público que insistia em vê-lo como uma espécie de Snape – alguém que se associa a vilões com propósitos nobres -, mas que acabou se revelando um patético Lucius Malfoy. Quem sabe Azkaban é o destino de todos?).
Mas a falta de confiança dos criadores de 2020 nas tragédias mencionadas acima – e que dominam a trama – acabou sendo traída pelo fato de o roteiro sentir a necessidade de atirar outros incidentes e subtramas de modo aleatório ao longo da narrativa, como uma explosão monstruosa no Líbano, a confirmação por parte do Pentágono de que OVNIs foram capturados em vídeo e até mesmo... vespas assassinas. Se durasse mais um pouco, não duvido que 2020 acabaria abraçando outra franquia e, num crossover mais do que apropriado, atiraria sharknados sobre o público.
Seja como for, é preciso reconhecer que, talvez por estarem cientes de que os espectadores simplesmente não retornariam para conferir 2021 – O Filme caso não tivessem alguma motivação positiva ou esperança de um desfecho feliz (quem iria querer ver Joias Brutas 2?), os Safdie (acho) atiraram, aqui e ali, pontinhos de alegria (como Democracia em Vertigem no Oscar) e sugestões de que as coisas poderão se tornar mais promissoras nos próximos capítulos – o que explicaria o destaque conquistado por um ótimo personagem que chegou ao fim de 2020 com uma participação ainda mais forte do que havia tido até agora: Guilherme Boulos. Espero que este seja bem aproveitado em 2021 e, especialmente, em 2022, no qual pode assumir protagonismo absoluto. (Principalmente se contar com o apoio de um outro personagem absolutamente carismático cuja trajetória dramática é inspiradora, que vem comprovando as injustiças sofridas graças às ações maquiavélicas de seus inimigos e que divide com Boulos a barba e a origem em movimentos sociais, mas cujo nome me escapa no momento; tem algo a ver com Bob Esponja, creio.)
Trágico, desolador, angustiante, sufocante, irritante e certamente o pior capítulo desde que comecei a acompanhar a franquia, 2020 – O Filme ao menos teve a decência de trazer um momento de inspiração e afeto em seus momentos finais: o documentário AmarElo – É Tudo Pra Ontem.
Taí algo que beneficiaria muito as continuações: menos Bolsonaro e mais Emicida.
17 de Dezembro de 2020
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