Quando o Pablo me convidou pra assumir essa coluna, eu estava há algumas semanas postando no meu twitter pessoal dicas de filmes nos streamings em forma de thread, pelo simples prazer da postagem: toda sexta-feira eu entrava em algumas das plataformas mais conhecidas e, no calor do momento, selecionava quatro filmes (pois cada tweet permite quatro imagens) de cada, tentando diversificar a seleção ao máximo, em gênero, nacionalidade, época, etc., e dando preferência a filmes menos conhecidos ou pelo menos evitando os maiores sucessos; e, claro, obras que vi e gostei, embora fosse inevitável indicar outras coisas, em especial pela limitação do catálogo de alguns streamings, que ou não vi mas tinha ouvido falar ou vi e não gostei mas acreditava ser uma boa dica.
A ideia aqui será a de seguir o que fazia lá no twitter, com uma seleção de dicas mais ou menos nestes critérios. Obviamente não na mesma quantidade - afinal, eu fazia uma thread semanal com 14 streamings, ou seja, 56 filmes indicados, e com o cuidado de nunca repetir títulos nas 14 semanas que isso durou. Mas enquanto lá era apenas deixar os nomes de filmes, aqui escreverei algo a respeito da escolha, não necessariamente muito elaborado (não tenho intenção nem pretensão de fazer crítica de cinema) mas com alguma ideia do porquê indico determinado filme.
Apesar do plano ser de postagens diárias, não significa que serão 7 dicas por semana: gosto de pensar num espaço com certa liberdade, podendo recomendar dois ou mais filmes num post; escrever um parágrafo ou mais; ou simplesmente listar a disponibilidade nos streamings brasileiros de obras ligadas ao filme do dia. O formato da coluna estará em permanente construção (aberto a sugestões, inclusive), em especial porque inicialmente confesso que será penoso pra mim, manter uma regularidade na escrita, mas é um desafio que me permiti, a prática tornará mais fácil com o tempo e tudo isto se pretende ser minimamente divertido. Ah, e também porque o Pablo implorou muito pra que eu aceitasse o convite.
Por fim, um critério importante é diversificar o máximo com os catálogos dos diversos streamings disponíveis, pagos ou gratuitos. Tenho certeza que nem sei da existência de alguns, então fiquem à vontade para sugerir. Nenhuma plataforma patrocina isso aqui, a ideia é realmente destacar obras que acabam se perdendo nos serviços, numa época em que muito se assiste mas sempre mais do mesmo.
Falstaff – O Toque da Meia-Noite (1965)
A escolha pra inaugurar essa coluna pode até ser por motivos práticos (foi o filme que optei rever pra ser o primeiro visto de 2022), mas cai perfeitamente numa das principais propostas do espaço: a recomendação de grandes filmes que talvez não tenham a atenção que mereçam.
Orson Welles pode ser um dos nomes mais conhecidos e importantes do cinema, mas sua incrível trajetória é eclipsada pelo seu primeiro trabalho, Cidadão Kane, de longe o mais famoso “melhor filme de todos os tempos”. E, apesar de que alguns de seus outros filmes costumam ser muito lembrados pela cinefilia (A Marca da Maldade como a obra-prima que rivaliza com a primeira; Soberba como a possível obra-prima mutilada pelo estúdio; Verdades e Mentiras como a obra-prima predileta de uma nova geração de cinéfilos), Falstaff - O Toque da Meia-Noite parece empalidecer, como se fosse um filme menor.
Mas muito longe disso. Terceira adaptação que o cineasta faz de Shakespeare (Welles, um fã ardoroso do bardo, convém lembrar, era um homem do teatro e do rádio, antes do cinema), Falstaff é a mais ousada e ambiciosa porque trata-se, na verdade, de um apanhado de peças em que o personagem-título aparece e que aqui se torna protagonista. Welles já tinha tentado levar ao teatro pouco antes de começar a filmar Cidadão Kane, mas foi um fracasso de público, especialmente pela duração: com o título de “Five Kings”, a adaptação era em torno dos textos de Henry IV, parte 1 e parte 2, Henry V, Henry VI e Richard III e sequer foi apresentada por completo. O filme é uma muito bem resumida intriga que foca na relação entre Falstaff, personagem fanfarrão e de alívio cômico nas peças, e seu amigo Hal, futuro Rei Henry V, cujo pai só consegue ver um jovem irresponsável que passa os dias bebendo e se divertindo, e não um sucessor de seu trono.
Para aqueles que conhecem toda a importância de Cidadão Kane para a linguagem do cinema, Falstaff pode surpreender e chocar os desavisados, em especial ainda no seu início, com movimentação de câmera e cortes rápidos que nos deixam um tanto desorientados. Mas o estilo inconfundível do diretor logo se faz presente, em que muito é dito e representado pela forma em que cada sequência é encenada e iluminada. A diferença com que Welles filma os dois principais espaços, a taverna/hospedaria em que Falstaff e Hal se divertem e o castelo com as intrigas palacianas do Rei, é o núcleo do filme, com temas caros ao diretor; mas é preciso chamar a atenção para uma sequência de batalha a céu aberto entre dois exércitos, onde o ritmo da montagem, do som e da trilha sonora confirma o gênio do cineasta: todo o caos e violência de uma guerra revelados não por cenas explícitas, mas pelo brilhante uso da técnica cinematográfica.
O filme ainda conta com o que há de melhor em toda adaptação de Shakespeare: o texto do dramaturgo, monólogos e diálogos afiados, cômicos ou trágicos, recitados por grandes atores, particularmente peloo próprio Orson Welles como protagonista, que sempre soube maximizar sua presença em cena. Talvez mais do que resgatar um grande filme deste mestre do cinema, é reforçar também que ele era tão genial na frente das câmeras quanto atrás delas.
Falstaff - O Toque da Meia-Noite está disponível no Belas Artes a La Carte, onde estão disponíveis também seus filmes Cidadão Kane, Soberba e Otelo.
Outros streamings do Brasil com filmes dirigidos por Orson Welles:
Cidadão Kane (Citizen Kane, 1941): HBO Max; Looke (aluguel), Google Play (aluguel e compra), Microsoft (aluguel e compra), Apple (compra)
Soberba (The Magnificent Ambersons, 1942): NetMovies, Looke
O Estranho (The Stranger, 1946): Telecine, Looke, NetMovies, Pluto TV
A Dama de Shanghai (The Lady From Shanghai, 1947): Pluto TV
Macbeth - Reinado de Sangue (Macbeth, 1948): Pluto TV
Grilhões do Passado (Mr. Arkadin, 1955): Looke
O Processo (The Trial, 1962): Telecine, Looke, NetMovies
O Outro Lado do Vento (The Other Side of the Wind, 2018): Netflix
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