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O Cinema de Guy Gilles Cinema em Streaming

A Nouvelle Vague (ou “nova onda francesa”) é um dos períodos mais conhecidos, admirados e importantes da história do cinema. Todo cinéfilo de carteirinha conhece bem, mas aqui vai um brevíssimo resumo do que rolou na França: jovens e apaixonados críticos, que nos anos 50 mudaram a forma de pensar e escrever sobre cinema (principalmente nas páginas da Cahiers du Cinéma), pegaram em câmeras nos anos 60 e mudaram também a forma de se fazer o cinema; os mais famosos entre eles, Jean-Luc Godard e François Truffaut; mas igualmente admirados no meio, também Éric Rohmer, Claude Chabrol, Jacques Rivette; e ainda nomes que não vieram da crítica, mas influentes que surgiram na mesma época e identificados nesta onda, como Alain Resnais, Agnès Varda, Jacques Demy; e outros tantos nomes menos conhecidos, todos em comum compartilhavam um modo mais livre de filmar, produções mais baratas, longe de estúdios, filmando as ruas e cidades no seu movimento cotidiano, transgredindo e experimentando com a linguagem, incorporando a paixão pelo cinema (em especial de gênero, e o americano) nas obras.

A carreira da maioria destes cineastas seguiu as décadas seguintes, com importância, brilhantismo, repercussão e influência. E mesmo os que tiveram dificuldades diversas e a história não foi tão generosa (para ficar apenas em dois, Luc Moullet e Jacques Rozier, por exemplo), ainda assim têm suas obras estudadas, admiradas e registradas quando se fala deste “ciclo” que foi do fim da década de 50 a meados da década seguinte. E, no entanto, por que o nome de Guy Gilles nunca é citado quando se pesquisa esse período fértil do cinema francês?

 

Foi a pergunta que me fiz e que ainda não tenho resposta desde que descobri a existência do cineasta quando seus três primeiros longas entraram no catálogo da MUBI.

Guy Gilles nasceu na Argélia e se mudou para a França aos 20 anos, em 1958, e já realizando seus primeiros curtas. Mesma época, portanto, que os primeiros filmes da Nouvelle Vague começaram a despontar, inclusive tendo dois de seus trabalhos produzidos por Pierre Braunberger, produtor de obras de Godard e Truffaut. Mas não conseguiu financiamento para seu primeiro longa-metragem e L’Amour à la Mer (1964) não só levou 3 anos para ficar pronto, como sequer foi lançado. Melhor sorte teve seus filmes posteriores, Au Pan Coupé (1968) e Le Clair de Terre (1970), embora com recepção morna, aparentemente não deixando marcas ou impressões fortes.

Assistir a estes três filmes hoje torna esse apagamento de Gilles um tanto espantoso: não só sobrevivem ao tempo, como compartilham muitas das características que marcaram as obras da Nouvelle Vague, seja o frescor com que registra jovens personagens perambulando pelas ruas parisienses, o forte uso das cores e do preto & branco, mas também de uma relação muito forte entre montagem e memória, com narrativas que jogam com o tempo, com elipses e um uso consistente de closes em rostos e objetos.

Por outro lado, é possível especular o que fez do jovem cineasta um “outsider” deste período, já que parece ter chegado tarde demais – apesar de não ser por sua culpa, L’Amour à La Mer é finalizado quando a onda já deixou de ser nova e o primeiro lançamento de um longa seu chega quando toda a efervescência da época consistia em filmes abertamente políticos que tentavam dar conta das questões mais urgentes. As três obras de Gilles, no entanto, são podres de românticas, com personagens que adoecem e/ou morrem de amor, relacionamentos são impossíveis e tudo isso marcado por uma forte nostalgia, seja pelo passado ou por um futuro que não se viveu (nem viverá). É de se supor que possam ter sido tomados como datados.

Com o privilégio de vê-los 50 anos depois, minha impressão é que o “político” na obra de Guy Gilles existe na inadequação do protagonista (sempre Patrick Jouané, espécie de ator-fetiche do cineasta, outra característica presente em diretores da Nouvelle Vague) em se fixar num lugar, numa cidade. Há um desejo de descobrir o mundo (L’Amour à la Mer) ou de ir atrás de uma vida melhor, mas não se sabe qual (Au Pan Coupé) ao mesmo tempo que voltar às suas raízes talvez seja o segredo dessa busca (Le Clair de Terre), e que parece muito pessoal, ele próprio um argelino que deixa sua terra natal ainda colonizada para realizar o que ama (um cinéfilo, como os demais cineastas da geração), com todas as dificuldades, na terra do colonizador. Guy Gilles, além de um estrangeiro, também era homossexual, algo já relatado como um possível obstáculo, mesmo na aparente liberdade desta nova indústria francesa – lendo uma sinopse de seu filme seguinte, Absences Répétées (1972), o protagonista vivido por Jouané lida entre outras coisas com sua sexualidade.

Entre um longa e outro, pouco conhecidos e difíceis de achar, Guy Gilles trabalhou bastante na TV, principalmente na realização de documentários. Morreu em 1996. L’Amour à la Mer (Love at Sea), Au Pan Coupé (Wall Engravings) e Le Clair de Terre (Earth Light) estão em cópias restauradas e disponíveis na MUBI Brasil.

 

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Sobre o autor:

Gosta de cinema pra valer desde os 14 anos, já teve videolocadora e agora vê uns filmes nos streamings que mataram seu negócio. Twitter: @helioflores
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