Nanni Moretti é um dos cineastas mais conhecidos e prestigiados da Itália e, no entanto, sempre foi um tanto difícil, pelo menos no Brasil, de ter contato com parte de sua filmografia. Moretti faz filmes desde os anos 70, de boa recepção por público (ao menos na Itália) e crítica (ao menos na Europa), mas é comum por aqui ver muito mais referências a sua obra a partir de Caro Diário (1993) que, junto com o filme seguinte, Aprile (1998), são os mais diretamente autobiográficos, em que atua(?) no papel dele mesmo. Em 2001 o seu O Quarto do Filho ganha a Palma de Ouro e fica mais do que estabelecido no cenário internacional como um dos autores a serem respeitados pela cinefilia. A esta altura seus filmes parecem ter um refinamento nos dramas familiares que é de fácil comunicação com o público, sempre conseguindo arrancar as lágrimas ou as risadas que almeja.
Mas desde o início da carreira, Moretti se mostra um cineasta de primeira grandeza. Seus três primeiros longas, que chegaram recentemente no Brasil, são evidências de alguém muito perspicaz e seguro no tipo de cinema que deseja realizar e as questões que lhe são importantes. Está lá já no primeiro filme (feito com apenas 23 anos com uma câmera Super8), Eu Sou Autossuficiente (1976), o diretor também como protagonista, no papel de Michele Apicella, que também será o personagem principal não só dos outros dois filmes, Ecce Bombo (1978) e Sonhos de Ouro (1981), mas de Bianca (1983) e Palombella Rossa (1989), estes infelizmente ainda inéditos por aqui.
O jovem Michele não é exatamente o mesmo nesses três filmes: pai divorciado no primeiro, solteiro com relação conturbada com mãe, pai e irmã no segundo, e filho único que mora com a mãe no terceiro. Mas a persona é a mesma: irritante, irritável, irritado, entediado, frustrado, crítico, neurótico e intenso, Michele juntamente com seus amigos são a representação da juventude italiana que se pretende engajada política e artisticamente, mas que vivem a ressaca do pós Maio de 68 e dos diversos acontecimentos que os precederam. Um dos personagens, em Ecce Bombo, chega a lamentar ter chegado tarde demais na existência.
A desesperança e falta de algum sentido na vida estão mais presentes neste filme, enquanto em Eu Sou Autossuficiente as dificuldades são em torno do próprio sentido e realização da arte, com o grupo de amigos tentando montar uma “peça experimental” e onde há uma cena, ainda no início, em que Michele verbaliza o projeto de cinema de Moretti: “no cinema, os atores são a burguesia, a imagem é o proletariado, e a trilha sonora é a pequena burguesia, flutuando entre uma e outro; a imagem, como proletariado, deve tomar o poder no filme após uma longa luta”. Também já no seu primeiro longa, Moretti não poupa farpas ao cinema italiano, em especial o comunista feito no período, com algumas cenas hilárias do personagem incrédulo com a realização e sucesso de certos filmes – a vítima favorita sendo a cineasta Lina Wertmüller e seu Pasqualino Sete Belezas, que um ano depois a faria ser a primeira mulher indicada ao Oscar de Direção.
E quando falo em cenas hilárias, não me refiro a poucas. Apesar dos temas, tudo é feito na chave do humor, e Moretti se mostra desde sempre um grande diretor de gags visuais, roteirista de diálogos inspiradíssimos e atuação cômica difícil de alcançar o tom: Michele é explosivo e grosseiro, e muitas vezes a graça vem daí, de sua não conformidade com o mundo (nunca veremos um sorriso dele, não por acaso há um pôster de Buster Keaton em seu quarto no Ecce Bombo), mas também de reações inesperadas e absurdas. Sonhos de Ouro traz o personagem já como um famoso cineasta e todo o filme é o ápice do que Moretti desenvolve nos anteriores, no sentido de comentar e ser crítico com o atual estado das coisas, sem perder a crítica a si próprio, criando uma relação de identificação e cumplicidade com o espectador difícil de ser definida – em certo momento deste filme, Michele e a mãe começam a brigar numa troca de diálogo engraçadíssima até que deixa de ser quando ele a agride e ela cai no chão; numa mesma cena, somos levados do humor à tristeza e não é incomum ficar na dúvida se deveríamos rir de algo, se estamos rindo do personagem, ou pelo incômodo causado.
Os dois primeiros filmes de Moretti parecem feitos por um realizador ainda tateando a forma que melhor lhe cabe: obviamente os recursos em mãos geram limitações, mas o que parece ser um apanhado de boas cenas sem muita coesão em Eu Sou Autossuficiente, já ganha uma maior complexidade em Ecce Bombo, em que as elipses e a desconexão aparente da montagem podem deixar o espectador confuso, mas está em comum acordo com a desorientação dos próprios personagens; mas é Sonhos de Ouro que me passou a impressão de que o diretor está em pleno controle do que quer e suas capacidades.
Eu Sou Autossuficiente, Ecce Bombo e Sonhos de Ouro estão disponíveis no Reserva Imovision.
Criminosamente, apenas estes outros filmes de Nanni Moretti estão disponíveis nos streamings do Brasil:
Habemus Papam (idem, 2011) – aluguel/compra na Apple TV
Minha Mãe (Mia Madre, 2015) – Amazon Prime, Looke (apenas dublado), aluguel no Google Play, aluguel/compra na Apple TV
Santiago, Itália (idem, 2018) – Belas Artes à La Carte
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