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Festival de Cannes 2022 - Dia #01 Festivais e Mostras

Dia 01

1) Desde sua independência formal do Sudão em 2011, o Sudão do Sul – a mais jovem nação com independência reconhecida pelo restante do mundo – vem enfrentando crises políticas e humanitárias severas. A principal delas, claro, iniciada pela disputa de poder entre o presidente Salva Kiir e seu vice Riek Machar, que acabaram espalhando sua rivalidade por todo o país até que um conflito político se tornou base para inúmeros massacres étnicos. Assim, mesmo quando há a possibilidade de uma solução diplomática, os combates entre milícias seguem alimentando o derramamento de sangue que já custou as vidas de mais de 400 mil pessoas.

É neste contexto que o documentário For the Sake of Peace, co-dirigido por Christophe Castagne e Thomas Sametin, passa a acompanhar duas figuras admiráveis: a jovem Nandege Magdalena Lokoro e o estoico Gatjang Dagor. Enquanto a primeira, mesmo com todas as dificuldades já oriundas do fato de ser mãe solteira, se tornou parte da iniciativa de uma ONG (mais sobre isso em instantes) para fazer um treinamento de mediação de conflitos, o segundo vive em um campo de refugiados da ONU depois de ter todas as suas posses tomada por guerrilheiros e agora dedica seus dias a treinar os jovens que também residem naquele local e formaram vários times de futebol, em cujas partidas ele também atua como árbitro.

Contribuindo cada um à sua maneira para que o Sudão do Sul possa sonhar com um futuro pacífico, Nandege e Gatjang são exemplos de resiliência cujas trajetórias dão centro ao filme, que salta de um a outro enquanto enfrentam dificuldades impostas por suas áreas de atuação e suas dificuldades particulares: ansiosa ao receber sua primeira grande missão profissional, por exemplo, Nandege se desloca por centenas de quilômetros nas estradas enlameadas e esburacadas do interior do país para tentar mediar um conflito entre duas tribos no vale Kidepo e cujos integrantes vêm se matando há anos em ações de vingança cujas origens já nem se lembram mais, mas que agora se concentram em roubos de gado e na necessidade de dividirem os mesmos recursos para manterem suas criações vivas.

Aqui, por sinal, o documentário nos apresenta aos líderes destas duas tribos – um dos quais, Komol, embora alegue ter matado mais de mil inimigos, agora tomou a iniciativa de solicitar a mediação por estar farto daquele estilo de vida. Buscando organizar a logística que permitirá o encontro dos dois homens ao mesmo tempo em que estabelece os termos fundamentais de um possível acordo, Nandege teme falhar em seu propósito, sentindo também o peso simbólico de ser uma mulher em uma sociedade absurdamente machista e opressiva, o que a faz ser vista com desconfiança e escárnio por boa parte dos brutamontes com os quais precisa dialogar. Assim, é divertido que os cineastas incluam, em certo momento, trechos de transmissões jornalísticas que comentam os impasses no parlamento britânico na negociação do Brexit, estabelecendo uma comparação curiosa entre a incompetência dos políticos ingleses e a persistência da jovem sul-sudanesa, que vê sua própria vida em risco caso falhe em sua missão.

Exibindo as condições miseráveis não só das tribos e vilarejos, mas do acampamento de refugiados, demonstrando como o sonho de independência de milhões acabou se tornando um pesadelo graças à ganância e o egocentrismo de uns poucos poderosos, For the Sake of Peace demonstra também como a situação daquelas pessoas pode se tornar ainda pior quando até mesmo o campo de futebol tão amado por Gatjang se vê ameaçado quando o espaço para novos refugiados se torna escasso, obrigando-o a se dividir entre o desejo de possibilitar o acolhimento de mais pessoas e o de seguir oferecendo alguma esperança de futuro para os jovens que treina.

É preciso, no entanto, discutir também a importância da ONG para a qual Nandege trabalha e que, batizada de Whitaker Initiative, foi fundada e é presidida pelo ator Forest Whitaker, que vale lembrar, venceu o Oscar por viver o ditador Idi Amin, que comandou a Uganda entre 1971 e 79 (Uganda que, por sinal, enviou tropas para apoiar o governo de Kiir contra Machar). Oferecendo recursos financeiros e humanos para a educação de muitos jovens sudaneses, a ONG do ator também investe, como já dito, no treinamento de mediadores de conflitos para tentar diminuir o caos entre civis que dificulta qualquer ação institucional maior – um propósito admirável, sem dúvida. O problema, de um ponto de vista ético, é perceber que este documentário é produzido pelo próprio Whitaker, o que não só pode colocar a objetividade da produção em cheque como também pintá-la com cores de narcisismo. Aliás, há duas aparições de Whitaker nos 15 primeiros minutos que me incomodaram muito por soarem como trapaças de montagem: em certo momento, vemos apenas a silhueta de um homem que lembra o ator enquanto a narração fala de sua iniciativa, sugerindo que aquele é Whitaker em uma reunião no Sudão do Sul; a outra o traz liderando uma sessão de relaxamento para uma turma na qual se encontra Nandege e que o mostra em primeiro plano para então cortar para os demais participantes, o que me leva a crer que ele estava sendo apenas exibido através de vídeo para os alunos apesar de o documentário sugerir algo diferente. Já no último ato, ele realmente aparece ao lado da jovem, mas numa reunião em Genebra. Com isso, todo o esforço para levar o espectador a acreditar que ele estava no Sudão do Sul soa moralmente dúbio, mesmo que, neste caso, estejamos falando de um narcisismo “do bem”. De todo modo, melhor um narcisista que tenta melhorar o mundo do que a modéstia de um passivo.

Culminando numa escolha formal inteligente ao saltar entre a disputa de pênaltis do campeonato disputado pelos refugiados do campo de Gatjang e o debate mediado por Nandege, For the Sake of Peace não é um filme particularmente eficaz ou informativo, mas como nos apresenta a duas figuras admiráveis, acaba merecendo também sua parcela de aplausos.

2) Há algum tempo, comentei no Twitter minha surpresa depois de encontrar, quase por acidente, um filme japonês chamado One Cut from the Dead, que contava a história de uma equipe de cinema enfrentando todo tipo de obstáculo ao realizar um projeto sobre zumbis em um único e ambicioso plano-sequência – incluindo ataques de zumbis reais. Ou talvez não, já que, depois dos 30 minutos iniciais rodados sem quaisquer cortes, saltamos em um flashback para o mês anterior ao da gravação a fim de descobrirmos as circunstâncias por trás da empreitada até finalmente testemunharmos os bastidores do filme que víramos no início da projeção.

Assim, com uma estrutura claramente dividida em três atos que se concentram em etapas diferentes da produção (pré, filmagem e obra finalizada), o longa era ao mesmo tempo um exercício de gênero, uma declaração de amor ao Cinema (como tendem ser os exercícios de gênero, aliás) e uma comédia repleta de piadas que surgiam da recontextualização de incidentes já vistos e cuja natureza não havíamos compreendido totalmente.

Pois esta refilmagem comandada pelo francês Michel Hazanavicius se mantém bastante próxima do longa que a inspirou, incluindo não só os principais incidentes de trama e de desenvolvimento de personagens, mas também a geografia da obra japonesa, seguindo aquelas figuras por escadas, pelo terreno em torno da locação, por cabanas e aposentos específicos. Da mesma maneira, é difícil não ficar impressionado com o feito alcançado pelos 30 minutos iniciais da projeção, rodados (aparentemente, repito) sem corte algum – e é divertido notar como até o desconforto provocado por esta sequência em alguns instantes, quando temos a impressão de que os atores esqueceram suas falas ou olharam acidentalmente para a câmera, são preservados pelo cineasta e por seu ótimo elenco.

Além disso, até as precariedades do filme-dentro-do-filme se tornam preciosismos dignos de nota em sua sugestão da natureza picareta do projeto, que é povoado por performances caricaturais, efeitos de maquiagem baratos e uma trilha sonora genérica que parece ter sido concebida para cobrir todo tipo de eventualidade possível (e as intervenções de Jean-Pascal Zadi, que vive o compositor da trilha, representam alguns dos momentos mais eficazes de Coupez!. Igualmente divertido, por sinal, é testemunhar a forma desajeitada com que planos específicos parecem se alongar sem propósito algum – seja ao retratar o grito apavorado de uma personagem ou ao se manter no lugar enquanto outros somem de campo em corridas desesperadas (e, mais uma vez, descobrir as razões por trás destas passagens é um dos prazeres da experiência). Para finalizar, a versão de Hazanavicious encontra até modos engenhosos de homenagear o original de maneira orgânica, incluindo os nomes japoneses dos personagens franceses.

É claro que para aqueles que já conhecem One Cut from the Dead, este Coupez! perde bastante de seu frescor, já que sua fidelidade àquele é ao mesmo tempo seu ponto forte e sua maior fragilidade; por outro lado, o filme evita um dos erros mais grosseiros do antecessor, que era a inclusão de imagens de bastidores reais do projeto e que enfraqueciam o impacto emocional proporcionado pelos bastidores ficcionais.

Sim, eu disse “impacto emocional” – pois minha maior surpresa ao assistir à versão japonesa foi me pegar chorando no desfecho de uma comédia sobre a produção de um filme de zumbi. O que, devo salientar, ocorreu novamente aqui. Esta força inesperada da narrativa vem de um conjunto de fatores: a paixão daqueles personagens pelo fazer cinematográfico, que resulta em um clímax brilhante em que diferenças são abandonadas (ao menos temporariamente) para que a criação coletiva possa sobreviver; e, claro, a subtrama envolvendo a frustração do protagonista, o diretor Rémi (Romain Duris), ao ver a filha se afastar por decepcionar-se com as constantes concessões feitas pelo pai em sua arte – um conflito que culmina numa imagem previsível, mas não menos tocante por isso.

Inteligente em seu uso da metalinguagem (o que inicialmente parece um olhar para fora de campo eventualmente se revela um olhar para fora de quadro, por exemplo), Coupez! ainda faz brincadeiras eficientes com a contraposição entre música diegética e não-diegética, acertando também ao incluir uma súbita mudança no estilo da fotografia quando uma pessoa diferente assume a função e se entrega à predileção por zooms e quadros mais instáveis.

Rindo também da insistência de alguns realizadores de enfiar subtextos políticos e sociais que “justifiquem” suas próprias e “inovadoras” visões de um gênero sempre prestes a se esgotar (o que nunca ocorre graças à inventividade de criadores ambiciosos de fato), Coupez! representa uma experiência que acaba por refletir o amor de seus personagens pelo que fazem e por sua convicção de que uma obra não precisa significar algo para merecer admiração.

3) Concebido originalmente como uma série de seis episódios, Esterno Notte (Noite Externa), projeto concebido, co-roteirizado e dirigido pelo cineasta Marco Bellocchio (O Traidor, A Bela que Dorme, Vincere), ganhou no 75º. Festival de Cannes uma versão adaptada especialmente para o Cinema, o que, como é fácil imaginar, resultou em um filme extenso, com 5 horas de duração, e que manteve a divisão em capítulos para conseguir contar uma história complexa a partir de pontos de vista variados que buscam compreender as motivações e ações de personagens distintos em uma das passagens mais dramáticas da História política da Itália no pós-guerra.

Iniciando sua narrativa em março de 1978, Esterno Notte situa o espectador no meio de um debate acirrado do partido Democracia Cristã, que havia vencido mais uma vez as eleições presidenciais embora vendo aumentar para impressionantes 34% a votação do Partido Comunista Italiano. Mediador por tradição e conciliador por temperamento, um dos principais líderes do DC, o ex-primeiro-ministro Aldo Moro (Fabrizio Gifuni), negocia um governo de coalizão com os comunistas, o que consegue a proeza de desagradar boa parte de seu próprio partido, além de organizações de extrema-esquerda, o governo norte-americano e até mesmo o papa Paulo VI (o magnífico Toni Servillo), amigo pessoal de Moro. Apesar de toda esta oposição, o veterano político estava prestes a anunciar um gabinete composto por todos os partidos da coalizão quando foi sequestrado por membros das Brigadas Vermelhas e, depois de 55 dias de cativeiro, assassinado por seus captores.

Concentrando cada capítulo em um personagem (ou grupo de personagens) específico, o filme inicialmente nos apresenta a Moro e seu cotidiano, acompanhando-o até o momento de sua captura, quando, então, muda o foco para seu pupilo, o Ministro do Interior (e futuro presidente do país) Francesco Cossega (Fausto Russo Alesi). Já o terceiro segmento volta o olhar para o papa Paulo VI, sendo seguido por um outro que dedica e)spaço para compreender as motivações dos membros das Brigadas Vermelhas (em especial Adriana Faranda, vivida por Daniela Marra) e, a seguir, por aquele que revela o desespero da esposa de Moro, Eleonora (Margherita Buy). Se por um lado todas estas perspectivas enriquecem a narrativa ao fazer jus à complexidade da situação, por outro acabam tornando-a repetitiva em vários momentos, o que escancara sua origem episódica que prevê o binge-watching, mas se assegura de reforçar pontos importantes da trama para aqueles que demorarem um pouco entre episódios e necessitem ter a memória refrescada.

Como é de se esperar em uma narrativa estruturada desta maneira, há também certa irregularidade entre os diversos capítulos, que variam de acordo com o interesse despertado por cada personagem. Neste aspecto, aquele que se concentra em Faranda se destaca por desenvolver uma figura forte, desafiadora (como comprova sua atitude de passar diante de um carro de polícia em cujo painel reconhecera a própria foto), mas também incerta acerca das decisões tomadas por seus superiores, sejam estas puramente estratégicas ou não. Em contrapartida, a longa sequência dedicada ao papa Paulo VI não se salva nem com a performance do sempre impecável Toni Servillo, parecendo ter sido encaixada à força em um arco geral que não precisava de fato daquela inserção (e que nenhuma diferença real faz no quadro geral, já que nem poder de decisão com relação às negociações ele tinha). E se Cossiga também é encarnado com talento por Fausto Russo Alesi, a passividade do sujeito e sua instabilidade psicológica contribuem para criar o segmento mais entediante do projeto.

Já Margherita Buy é hábil ao evocar o desespero crescente de Eleonora e sua frustração diante da inação do governo, permitindo que percebamos como a mulher vai alcançando seu ponto de ruptura a cada novo desapontamento. Dito isso, é mesmo Fabrizio Gifuni quem rouba o filme como Aldo Moro, conferindo a este uma aura de serenidade, sabedoria e humildade que leva o espectador a compreender a eficácia do sujeito como articulador e também a humanidade que o levaria a estabelecer políticas sociais que ajudaram a modificar o país em um relativamente curto espaço de tempo.

Saltando com segurança entre os momentos de tensão e aqueles mais preocupados em retratar a estratégia de cada um daqueles grupos para superar a resistência dos demais, o cineasta Marco Bellocchio ainda deixa clara sua visão sobre os militares ao incluir temas musicais que ressaltam a natureza ridícula de suas sugestões – ainda que a patetice dos fardados se torne também angustiante quando nos damos conta de que são eles que supostamente deveriam resgatar o protagonista mesmo se opondo à aproximação destes com os “comunistas”.

Porém, o interesse principal de Bellocchio é expor o desinteresse evidente dos membros do Democracia Cristã em resgatar seu líder, que havia se tornado um inconveniente não só por repartir cargos estatais com o Partido Socialista, mas também por irritar os norte-americanos com seus esforços por uma coalização com a esquerda – e Esterno Notte chega a incluir referências sutis à teoria, defendida por muitos estudiosos do período, de um envolvimento ativo da CIA para evitar o retorno de Moro são e salvo, o que incluiu plantar notícias falsas sobre sua execução e sugestões de que teria enlouquecido em cativeiro.

Ambicioso em sua escala história, Esterno Notte é uma obra irregular como filme e que talvez seja mesmo mais eficaz como série, mas, de um modo ou de outro, é um trabalho sólido de um diretor experiente que sabe exatamente o que quer dizer e tem convicção da importância de sua mensagem.

19 de Maio de 2022

Sobre o autor:

Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.
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