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Festival de Cannes 2022 - Dia #02 Festivais e Mostras

Dia 02

4) Em certo momento do italiano As Oito Montanhas, exibido como parte da mostra competitiva do 75º. Festival de Cannes, o jovem Bruno (Alessandro Borghi), que, embora nunca tendo a oportunidade de estudar, expandiu o próprio universo através do gosto por livros, comenta que está se sentindo muito triste e – quase tangencialmente, como se não houvesse relação com o que acabara de dizer – complementa: “Quando as palavras são pobres, os pensamentos são pobres”. Ao ampliar seu vocabulário e sua compreensão do mundo, parece sugerir o rapaz, sua habilidade de compreender a si mesmo e as sutilezas de suas emoções e pensamentos ampliou-se proporcionalmente, permitindo que se conhecesse com mais profundidade e trazendo, com isso, a melancólica percepção de todas as injustiças e desigualdades que o manterão sempre preso a um cotidiano de trabalhos intensos que jamais o tornarão financeiramente independente. Paradoxalmente, ainda que Pietro tenha tido acesso a boas escolas desde a infância – ganhando desde cedo o vocabulário que faltara ao amigo -, estas pouco tinham a expressar, já que seu vazio interior, sua falta de propósito e sua insatisfação indefinida com o pai o mantiveram numa paralisia emocional por boa parte de sua vida.

Enquanto Bruno buscava as palavras que lhe permitissem expressar sua rica vida interior, Pietro perseguia os pensamentos que pudesse externar com o vocabulário que já possuía.

Filho de classe média que passava os verões num vilarejo remoto, Pietro encontrou em Bruno, ainda na infância, uma liberdade que não tinha em seu cotidiano de criança de apartamento – mas também viu no novo amigo uma similaridade curiosa: se Bruno era a única criança restante em seu vilarejo, Pietro era a única de sua família, o que os tornava igualmente solitários mesmo que por contextos distintos. Por outro lado, se o garoto da cidade grande aos poucos constatou que o próprio pai parecia ser uma nova pessoa durante aqueles verões, quando deixava de ser o workaholic habitual para se transformar em um homem fascinado por percorrer trilhas em altas montanhas, seu companheiro da pequena vila, praticamente abandonado pelo próprio pai, encontrou no do amigo uma figura que poderia aconselhá-lo e guiá-lo, o que estabelecia um conflito particular, já que este “pai de verão” de Bruno parecia ter encontrado em Pietro, e não no próprio Bruno, também um filho sazonal – especialmente depois de o protagonista se afastar deliberadamente de sua família.

Escrito e dirigido por Felix van Groeningen e Charlotte Vandermeersch a partir do livro de Paolo Cognetti, As Oito Montanhas acompanha a relação entre os dois amigos por cerca de 30 anos, desde os verões fotografados por Ruben Impens em cores quentes de tempos felizes e durante os quais as duas crianças – como todas, por sinal – só conheciam a corrida como ritmo de locomoção até a idade adulta e suas demandas e preocupações financeiras, quando o tempo para a descoberta de nossos Grandes Propósitos individuais se acelera em sua contagem regressiva, garantindo que cada decisão equivocada assuma a natureza de desastre quase absoluto. Enquanto isso, as belíssimas locações no Nepal e principalmente no Vale de Aosta, no noroeste da Itália, contrapõem a majestade da Natureza à vulnerabilidade emocional dos personagens, que, de certo modo, passam a usar suas relações com a geografia como um símbolo de suas aspirações e sonhos – o que é reforçado por uma questão filosófica discutida pelos personagens centrais em determinado instante e que sintetiza suas abordagens distintas ao lidar com o mundo.

Vividos por Luca Marinelli e Alessandro Borghi com intensidade e sensibilidade, Pietro e Bruno se tornam, ao longo da projeção, figuras multifacetadas e tocantes cuja amizade é daquele tipo raro que permite longos silêncios sem gerar desconforto; ao contrário, que parecem funcionar como um caloroso abraço de compreensão mútua. Além disso, se boa parte dos filmes que giram em torno da relação entre dois homens passou a incluir subtextos homoeróticos nos últimos anos (em especial desde O Segredo de Brokeback Mountain), este As Oito Montanhas retrata uma amizade masculina que permite conversas íntimas e o compartilhamento de sentimentos sem que recaiam sempre na objetificação feminina ou em brincadeiras homofóbicas feitas para reforçar a “macheza” dos amigos. (E é um triste sinal da imaturidade emocional masculina que sempre que vemos dois homens adultos se abrindo em uma narrativa ficcional passemos a esperar automaticamente que venham a demonstrar também desejo um pelo outro.)

Contando com uma trilha sonora composta por canções que contribuem com eficácia para a atmosfera melancólica (e por vezes nostálgica) da narrativa, o filme também merece cŕeditos pelo uso inteligente e simbólico dos movimentos de câmera (como aquele que segue suavemente, sem cortes, o protagonista enquanto sobe uma trilha cheia de pedras) e dos quadros estáticos formando motifs específicos (como aquele que, preenchendo metade da tela com o pisca-alerta traseiro de um carro, se torna associado à morte e ao luto).

Este filme é uma preciosidade.

5) O cineasta russo Kirill Serebrennikov dirigiu, nos últimos anos, dois de meus filmes favoritos exibidos inicialmente em grandes festivais: O Estudante, em 2016, e Verão, em 2018. Embora não possa dizer o mesmo sobre este A Esposa de Tchaikovsky, que integra a competição de Cannes em 2022, há elementos suficientes para demonstrar a sensibilidade particular e a inteligência do diretor, embora a verdadeira força do projeto resida na performance excepcional de Alyona Mikhailova como a personagem-título.

Buscando investigar – com claros toques de imaginação – o desastroso casamento entre o célebre compositor (vivido por Odin Lund Biron) e Antonina Miliukova que durou na prática apenas três meses, mas condenou ambos a um martírio até o fim de suas vidas, o roteiro do próprio Serebrennikov tem início com a morte de Tchaikovsky e a chegada da viúva (ou, como perceberemos, “viúva”) ao velório, quando é recebida com choque e ressentimento pelos presentes. A partir daí, voltamos no tempo até o momento em que a moça vê o músico pela primeira vez e se dedica a conquistá-lo, transcrevendo cartas de amor presentes em antologias, jurando lealdade absoluta e oferecendo sua herança como parte do processo de convencê-lo (algo que acaba selando o acordo). Porém, como o longa faz questão de sugerir através de simbolismos óbvios como a vela que se apaga durante o casamento e a aliança que custa a entrar no dedo do noivo, aquele era um matrimônio destinado ao fracasso desde sua raiz, já que, além de valorizar sua solidão para compor, Tchaikovsky oferece tantos indícios de sua homossexualidade que chamá-los de “indícios” é em si um eufemismo.

O curioso é que, ao menos de acordo com o filme, não se pode dizer sequer que a motivação do artista tenha sido manter as aparências (ainda que isto seja, sim, sugerido rapidamente em certo ponto), já que sua orientação sexual parece ser um segredo que apenas Antonina insiste em não perceber e com a qual o sujeito parece conviver com certa naturalidade, cercando-se de amigos e amantes que só o julgam quando ele insiste em se casar – e esta, sim, é fonte de imensa angústia para o personagem, que demonstra verdadeira repulsa ao ser tocado pela esposa. Aliás, o jantar de celebração do casamento é fotografado por Vladislav Opelyants quase como uma cerimônia fúnebre, não demorando também para que Antonina seja abandonada já no trem rumo à lua-de-mel, quando Serebrennikov cria uma composição de quadro ilustrativa que emprega o espelho da cabine para expor e ressaltar o vazio em torno da mulher. Neste sentido, é igualmente forte o instante em que, depois de finalmente perder a virgindade para um outro homem, a protagonista toca as teclas do piano usado por Tchaikovsky com os dedos sujos de sangue, quase como se manchando o marido com o que ele se recusou a aceitar.

De modo geral, porém, o que A Esposa de Tchaikovsky retrata é um exercício de tortura mútua e de egoísmo reciprocado quase na mesma intensidade; em última análise, Antonina e Tchaikovsky viram, um no outro, algo que lhes interessava possuir (o dinheiro dela; a presença dele) mesmo que às custas do sacrifício da(o) parceira(o) – ou talvez eles genuinamente tenham se recusado a ver o óbvio, que era o sofrimento colossal que causariam e experimentariam quando o casamento inevitavelmente fracassasse. Assim, se torna difícil ter muita pena da dupla, o que compromete a eficácia dramática do longa.

O mais problemático, contudo, é constatar como o filme revela, em suas entrelinhas, um subtexto tanto homofóbico quanto misógino: se Antonina é retratada como louca e obcecada pelo homem que a recusou, mostrando-se disposta a infernizar sua vida ao não poder tê-lo para si, praticamente todos os personagens gays da obra são concebidos como caricaturas absurdas ou vistos como criaturas mentirosas e cruéis.

Já de um ponto de vista formal, é necessário reconhecer o ótimo trabalho de recriação de época (e os figurinos em particular) e, claro, as fabulosas elipses executadas através de planos-sequência inventivos executados através de movimentos de câmera simples (mas excelentes) e de mudanças na luz, como no instante em que vemos Antonina na estação de trem se despedindo do marido e, em seguida, esperando seu retorno e – meu favorito – aquele em que testemunhamos a morte e o velório do advogado com o qual ela acaba se relacionando e que culmina com a perda de seu precioso piano.

Amarrado por um plano final que usa movimentos de dança para completar o arco da protagonista, A Esposa de Tchaikovsky talvez não evoque o peso da tragédia que retrata tão bem a ponto de sofrermos pelo casal, mas é ambicioso o suficiente para apreciarmos o exercício que resulta deste esforço.

6) Ocasionalmente, surge no Festival de Cannes um filme que provoca uma espécie de delírio coletivo e que, por uma razão ou outra, acaba por conquistar parte considerável da crítica e do júri, recebendo elogios e prêmios que pouco depois se tornam uma lembrança embaraçosa para todos os envolvidos, como ocorreu há poucos anos com a inexplicável Palma de Ouro concedida a Dheepan. Em 2022, isto parece estar ocorrendo com o novo trabalho de James Gray, o semi-autobiográfico Armageddon Time, uma obra medíocre como narrativa, juvenil como mensagem social e tremendamente classe média em sua satisfação com a própria consciência sobre os males do mundo.

Escrito pelo próprio Gray, o roteiro gira em torno do jovem Paul Graff (Michael Banks Repeta), que, entrando na adolescência, sonha em ser um artista famoso – com ênfase no “famoso” em vez de em “artista”. Claro que seus pais (Jeremy Strong e Anne Hathaway) desaprovam os planos do filho, ressaltando que este deve primeiro pensar em uma profissão que possa lhe trazer alguma segurança financeira; por outro lado, o avô do menino (Anthony Hopkins) demonstra apoio bem maior ainda que, em instantes de maior indefinição, acaba ficando ao lado dos adultos ao insistir, por exemplo, que o neto vá estudar em uma escola particular povoada por esnobes conservadores. O círculo principal em torno do protagonista inclui ainda seu melhor amigo Johnny (Jaylin Webb), um garoto negro que vive com a avó doente e que é vítima constante do racismo do professor.

Ambientado no início dos anos 80, quando a eleição de Reagan ainda era apenas uma ameaça neoliberalista, Armageddon Time é protagonizado pelo tipo de liberal de classe média norte-americano que – para lembrar Corra! – manifestaria com orgulho sua vontade de poder votar em Obama pela terceira vez, mas que na prática prefere ver as desigualdades sociais como um problema dos outros e que apoia qualquer manifestação antirracismo desde que isto não exija, digamos, sair de casa para ir a uma demonstração diante da polícia. Aliás, não é acaso que Gray inclua passagens no filme que enfocam o irmão e a sobrinha de Trump (esta última vivida por Jessica Chastain em uma participação especial), já que é o tipo de paralelo feito sob medida para provocar um sorriso de reconhecimento por parte da plateia, que pode então bater nos próprios ombros ao observar “como nada muda”.

Não ajuda muito, claro, que o jovem protagonista beire o insuportável, se apresentando como um pré-adolescente arrogante, mimado e cujo desrespeito recorrente pela mãe é tratado pelo filme como uma mera demonstração de divertida rebeldia (e há um jantar, logo no primeiro ato da projeção, cujo caos o cineasta encara como hilário quando na realidade é apenas irritante). Sim, não há como não se encantar pelo vovô Anthony Hopkins, adorável em uma composição calorosa e cheia de afeto, mas é também difícil não reconhecer qual é sua função e seu destino na trama e que não poderia ser mais esquemático, clichê e manipulativo. Enquanto isso, Anne Hathaway pode ser uma atriz talentosa e carismática (e é), mas é quase impossível enxergá-la como a cansada mãe de família que busca equilibrar as tarefas domésticas e a ambição de concorrer em uma eleição a um posto administrativo no sistema escolar de seu distrito. Para completar, o longa ainda busca apresentar Jeremy Strong como um pai violento, daqueles que surram os filhos de modo bárbaro, apenas para tentar redimi-lo como um homem que se vê pressionado pelas obrigações de sustentar uma família e que no fundo é uma figura paterna louvável (não, não é).

Mas o que mais espanta em Armageddon Time é que gaste quase duas horas para estabelecer – repetidas vezes – que vivemos numa sociedade desigual e cujo racismo estrutural frequentemente pune pessoas negras de modo rigoroso por ações que, cometidas por um branco, levariam a um tapinha na mão. Assim, testemunhamos de forma recorrente Johnny sofrendo consequências por atitudes cometidas por Paul ou ao lado deste, sendo quase possível ver James Gray balançando a cabeça atrás da câmera enquanto murmura para si mesmo como seu filme faz “denúncias” importantes. Ironicamente, o que a obra obviamente ignora é o próprio (e claro) racismo, já que o único personagem negro de destaque é também aquele que apresenta o protagonista às drogas, o convence a fugir de uma excursão para passear por Nova York e que – claro – conhece um receptador para itens roubados.

Igualmente irônico é notar como Gray inclui a já mencionada cena em que Mary Trump faz um discurso para um bando de estudantes abastados durante o qual expressa seu orgulho por não precisar de “ajuda” para ter sucesso na profissão, alcançando seu status “apenas” graças ao trabalho árduo – algo que o diretor claramente (e corretamente) vê como afirmações absurdas ao mesmo tempo em que seu próprio filme se estabelece, na superficialidade autocongratulatória de suas “denúncias”, como um exemplar perfeito de como basta que um cineasta branco construa uma narrativa minimamente crítica para que receba fartos elogios por seu bravo esforço. O que Gray – e, ao que parece, muitos outros – não percebe é que Armageddon Time é um gesto tão vazio quanto o que Paul faz ao sair no meio de um discurso de Fred Trump, enxergando como corajoso algo que é apenas muito cômodo.

Para um projeto que tanto se orgulho de “denunciar” o privilégio branco, Armageddon Time soa pouco mais do que como um trabalho feito por um adolescente para a disciplina de estudos sociais de sua escola particular que cobra mensalidade de três mil reais e se acha bastante progressista por oferecer uma bolsa de estudos a um aluno pertencente a uma minoria – aluno este que, então, poderão usar para se sentir bem consigo mesmos ao elogiá-lo por seus “esforços” quando, de fato, sentem apenas admiração pela própria atitude de dar uma oportunidade a alguém oprimido historicamente por seus antepassados.

O filme é, em suma, uma fraude. E convincente, pelo que infelizmente vi em Cannes.

20 de Maio de 2022

Sobre o autor:

Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.
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