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Festival de Cannes 2022 - Dia #03 Festivais e Mostras

Dia 03

7) Quando o tunisiano Harka tem início, a voz da jovem narradora relembra uma ocasião em que subitamente água parece ter brotado do chão em sua inóspita região, formando um lago de águas cristalinas. Em vez de questionarem a origem do fenômeno, os habitantes dos vilarejos próximos apenas encararam a ocorrência como um milagre e passaram a nadar ali – até que, algum tempo depois, as águas escureceram e descobriu-se que o tal lago havia sido formado por água poluída que escapara de uma mina. E em vez de questionarem a responsabilidade dos donos do empreendimento, os habitantes locais apenas deixaram de se banhar no local.

Em boa parte, é deste senso de resignação que o filme do estreante Lofty Nathan trata e de como a sensação de impotência diante de um sistema designado para oprimir é algo que, mesmo que precisemos combater, é compreensível e até esperado.

Roteirizado pelo próprio Nathan, o longa gira em torno de Ali (Adam Bessa), um jovem que vende gasolina contrabandeada nas ruas de sua cidade e mora numa construção abandonada por donos que, como muitos outros, deixaram o país em busca de melhores condições no exterior. No entanto, quando o pai do rapaz morre e seu irmão mais velho aceita um emprego de garçom no litoral, Ali se vê forçado a cuidar das duas irmãs mais jovens, aceitando a perigosa tarefa de ir buscar o combustível ilegal em um ponto remoto e tentando encontrar qualquer emprego que possa ajudá-lo a cuidar da família. É então que é informado de que o pai deixou uma dívida com um banco e que a casa em que as irmãs moram será tomada caso o valor não seja pago dentro de alguns dias.

Vindo no rastro da Primavera Árabe, que encheu o país de esperança por um futuro melhor, o universo do protagonista de Harka é de desapontamento e frustração – e no qual aqueles que já têm muito pouco são as vítimas mais frequentes de uma desigualdade econômica endêmica desenhada para se manter assim. Deste modo, quando vemos através dos olhos de Ali os turistas gastando pequenas fortunas para visitar o litoral que ele mesmo desconhecia e investindo em uma refeição o equivalente a meses de seu trabalho, é difícil não compreender sua indignação crescente – algo que o diretor ilustra ao permitir que vejamos as tentativas de Ali de se controlar e que é simbolizado pela imagem recorrente de chamas (e que irá adquirir um significado novo e mais triste no desfecho da narrativa).

Com uma abordagem de realismo que se torna ainda mais admirável quando constatamos que Adam Bessa, mesmo se mostrando à vontade em meio aos rostos comuns escalados pelo cineasta, é um ator profissional, Harka é um filme poderoso e impactante que faz com muito mais talento o que Armageddon Time, outro longa exibido em Cannes em 2022, foi aplaudido por fazer de modo medíocre.

8) Claramente inspirado em A Grande Testemunha, que Robert Bresson dirigiu em 1966, EO, novo trabalho do polonês Jerzy Skolimowski, é um filme surpreendente que demonstra como o veterano cineasta de 84 anos segue buscando novos caminhos neste ato final de sua longa carreira. Contando uma historinha simples que oscila entre o naturalismo e tons mais fabulescos, a obra acompanha o burrinho do título enquanto conhecemos vários personagens que cruzam seu caminho com repercussões que vão da indiferença à pura crueldade, passando ocasionalmente por um afeto que funciona como um suspiro de alívio.

Inicialmente atuando em um circo até ser libertado por ativistas pelos direitos animais – que prontamente o esquecem, deixando-o sozinho para tentar reencontrar a única humana que o tratava com carinho, EO é menos um protagonista do que a projeção de um: jamais antropomorfizado pelo filme, o animal encara tudo à sua volta com indiferença (ou, para ser mais preciso, com a aparência de indiferença), já que os únicos indícios ocasionais que temos de sua vida interior e seus sentimentos são zurros pontuais e um plano-detalhe que revela uma lágrima escorrendo. No restante da projeção, contudo, o que vemos é um burrinho adorável que testemunha, à distância ou como vítima, atos que pintam a humanidade com cores de horror.

Por outro lado, sempre que a narrativa se concentra no personagem-título ao percorrer todo tipo de paisagem, a sugestão oferecida pela fotografia de Michael Dymek e pela trilha de Pavel Mykietyn é de harmonia – uma paz que é quebrada por humanos e seus conflitos intermináveis (o que inclui uma passagem que, envolvendo uma ponta de Isabelle Huppert, parece ter saído de outro filme).

Sensível em sua declaração de amor aos animais (o que, desconfio, foi a principal motivação do cineasta, e não uma necessidade premente de dizer algo sobre a humanidade), EO por vezes soa como uma versão de Babe dirigida por Terrence Malick – uma descrição que, admito, jamais imaginei que escreveria.

9) Em 2016, numa instituição que abrigava pessoas com deficiência intelectual no Japão, um sociopata matou 19 pacientes do lugar e feriu outras dezenas mais, alegando ter agido por revoltar-se ao ver o Estado sendo obrigado a arcar com os custos de mantê-las, custando recursos que poderiam ser empregados para a parcela “produtiva” da população. É um pensamento repulsivo, obviamente, que não só ignora os conceitos mais básicos de humanidade como ainda demonstra uma crença de que viver em Sociedade é um privilégio, não um direito.

Foi partindo desta tragédia que a longa-metragista estreante Chie Hayakawa expandiu o conceito de seu curta Plano 75 para criar esta nova obra, que tem início com um incidente similar, mas tendo idosos como alvo. Contando com uma parcela considerável de cidadãos acima dos 65 anos, o Japão de fato vem discutindo há um bom tempo as melhores maneiras de lidar com este envelhecimento de sua população – algo que Hayakawa usa para criar a premissa de seu roteiro, no qual imagina um plano implementado pelo governo que permitiria que pessoas acima dos 75 anos de idade optassem pela eutanásia viabilizada pelo Estado e que ofereceria uma pequena compensação financeira para aqueles que se candidatassem ao programa.

Com uma narrativa dividida entre três personagens, Plan 75 nos apresenta a MIchi, uma idosa interpretada por Chieko Baishô que, sem ter família, se mantém trabalhando como camareira em um hotel até que um acidente ocorrido com uma outra funcionária idosa leva o estabelecimento a demitir todos que possam trazer algum inconveniente em função da idade – e agora, sem dinheiro e sem algo que a faça se sentir “útil” (um conceito problemático por natureza), ela considera a possibilidade de se inscrever no programa de eutanásia. Enquanto isso, seguimos também Hiromu, um jovem que atua como recrutador do programa (Hayato Isomura), que parece não ver problema algum com a iniciativa até que um tio decide participar desta. Para finalizar, há a imigrante filipina Maria (Stefanie Arianne), enfermeira atenciosa que aceita trabalhar para a empresa por trás do plano 75 por precisar de dinheiro para pagar uma cirurgia que salvará a vida de sua filha.

Há, como é fácil perceber, uma infinidade de possibilidades temáticas e narrativas na premissa concebida por Hayakawa e que vão desde a discussão de um problema real e complexo (o papel essencial do Estado em oferecer apoio à população mais vulnerável e as consequências econômicas disso) até exercícios de imaginação – e mesmo filosóficos – sobre os aspectos morais e éticos de se depositar nos ombros daqueles idosos a responsabilidade de encerrar a própria vida em prol de um hipotético “bem maior”. E é aqui que o longa desaponta um pouco, já que ao se concentrar em personagens específicos (e que nem sempre podem se tornar símbolos dos grupos aos quais pertencem) acaba por dificultar o mergulho em questões mais universais.

Ainda assim, é digno de nota o esforço da cineasta estreante em conferir verossimilhança ao conceito, que jamais soa como algo saído de uma distopia futurística, levando o espectador a aceitar a possibilidade de que o que o filme nos apresenta (ou alguma versão muito parecida) é de fato possível em nossa realidade. O que não só é um elogio ao projeto, mas uma constatação trágica sobre o mundo contemporâneo.

10) Um dos aspectos que mais aprecio em festivais grandes como o de Cannes é a possibilidade de assistir a várias produções de origens e culturas diferentes em um curto espaço de tempo, o que cria uma experiência intensa que expande os horizontes de qualquer espectador para a riqueza que a humanidade tem a oferecer. Além disso, é fascinante analisar como cineastas com raízes diversas exploram gêneros com convenções bem definidas, subvertendo-as e adaptando-as às necessidades de suas próprias histórias – como podemos ver em Boy from Heaven, dirigido por Tarik Saleh e que constrói uma narrativa de espionagem e suspense na prestigiada universidade de Al-Azhar, no Cairo.

Escrito pelo próprio Saleh, o roteiro acompanha o jovem Adam (Tawfeek Barhom), filho de um pescador de um pequeno vilarejo que, dedicado aos estudos do Corão, é selecionado para estudar na instituição. Logo em seus primeiros dias no Cairo, porém, o Grande Imam de Al-Azhar (o título religioso mais importante do Egito e que rivaliza, em poder, com o próprio presidente do país) morre inesperadamente, dando início ao processo de eleição de um substituto – um processo que o Serviço Secreto e os militares tentam influenciar para que o vencedor seja alguém alinhado com seus interesses políticos. Com isso, um dos prazeres da obra é acompanhar como um simples aluno como Adam aos poucos se torna uma peça central nas estratégias dos poderosos para alcançar este objetivo, o que envolve também a intermediação do veterano agente Ibrahim (o ótimo Fares Fares).

À medida que a situação se complica, Boy from Heaven busca construir tensão ao registrar a vulnerabilidade do protagonista e sua impotência diante das figuras infinitamente mais influentes que o encaram como uma peça descartável em um jogo que ele não consegue compreender – ou que talvez compreenda melhor do que esperamos, já que o rapaz se mostra mais hábil do que julgávamos inicialmente ao realizar suas próprias manobras, o que também se apresenta como uma faceta envolvente do filme.

Igualmente instigante é reparar como o cineasta emprega elementos específicos daquele meio para enriquecer a narrativa: em certo instante, por exemplo, uma competição de recitação do Corão acaba assumindo importância como pano de fundo de determinada ação, ao passo que os próprios ritos islâmicos são incorporados à trama. Do mesmo modo, Saleh não ignora a diversidade política (e os interesses divergentes) relacionada aos elementos religiosos, o que é representado pela presença de membros da Irmandade Muçulmana na universidade – e o filme é inteligente ao sugerir a discordância central de Adam em relação a estes através de uma pequena variação no tom de seu uniforme.

Perdendo-se em seu ato final, que sacrifica a plausibilidade ao tentar amarrar todas as subtramas de modo satisfatório, Boy from Heaven é uma curiosidade como exercício de gênero inserido em uma cultura diferente daquela que costumamos associar a ele, mas, especificidades regionais à parte, não acrescenta o suficiente para se destacar, o que é uma pena.

21 de Maio de 2022

Sobre o autor:

Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.
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