Dia 04
11) Logo nos primeiros minutos do francês A Noite do 12 (La nuit du 12), novo trabalho do alemão Dominik Moll, um personagem utiliza a expressão “mistério eterno” ao se referir a uma trivialidade na dinâmica de seus colegas de trabalho, todos detetives da divisão de homicídios. Estas palavras não são utilizada por acaso pelo roteiro co-escrito pelo diretor ao lado de Gilles Marchand (inspirados em livro de Pauline Guéna), já que a história, baseada em um incidente real, lidará justamente com um caso ocorrido em um pequeno vilarejo nos arredores de Grenoble, quando uma jovem foi incendiada viva por um desconhecido cuja identidade jamais foi descoberta pelos investigadores – algo que atormentará o líder da divisão, Yohan (Bastien Bouillon), que acabara de assumir após a aposentadoria do chefe anterior e que recebeu, como sua primeira tarefa no comando, o chamado para aquele que se tornaria um peso contínuo em sua trajetória.
Remetendo a obras inesquecíveis do gênero, como o sul-coreano Memórias de um Assassino e Zodíaco, o filme é construído a partir dos detalhes cotidianos da investigação e que representam desafios adicionais aos detetives além da investigação em si, como a obrigação de transmitir a notícia da morte da vítima aos pais desta, as complicações aborrecidas de lidar com o orçamento do departamento, as tarefas burocráticas que consomem horas de trabalho (como digitar todos os depoimentos) e mesmo empecilhos bobos como o conserto de uma impressora.
De modo similar, Moll exibe grande interesse pela relação entre os membros da equipe e a intimidade que surge entre pessoas que testemunham atrocidades com regularidade, compartilhando o cansaço e a desilusão quanto à natureza humana a cada novo cadáver descoberto – e, assim, ouvimos seus desabafos sobre problemas familiares, frustrações profissionais e sonhos não realizados, concentrando-nos particularmente nas reações de Yohan, que, encarregado de coordenar as ações do grupo e de manter uma rotina saudável entre todos, se vê com frequência sem palavras diante de situações delicadas, demonstrando dificuldades para expressar não apenas os próprios sentimentos, mas para lidar com os dos demais. Aliás, isto é o que mais se aproxima de um arco narrativo definido em A Noite do 12, que amarra sua estrutura através de imagens recorrentes do personagem correndo em um velódromo com sua bicicleta até finalmente decidir transferir o exercício para um espaço aberto que lhe traga mais liberdade e imprevisibilidade. Não é algo exatamente original ou dramático, mas ao menos confere alguma coesão ao projeto, já que a investigação em si (e o próprio caso) é apresentada desde o princípio como um beco sem saída, um dos milhares de crimes sem solução que ocorrem todos os anos.
Há, também, uma contemporaneidade importante na discussão social que a investigação provoca por lidar com a violência contra a mulher, algo endêmico em todo o planeta e que aqui encontra eco na revolta de uma amiga da vítima ao ouvir pela enésima vez uma pergunta sobre os relacionamentos sexuais que esta mantinha, quando expressa o que deveria ser óbvio para os investigadores: que aquilo é irrelevante e que, em essência, a jovem morreu por ser mulher em um mundo no qual a masculinidade é expressada através de violência, brutalidade e ignorância, sendo normalizada precisamente por esse tipo de questionamento que coloca sobre a vítima o peso da responsabilidade sobre o próprio destino trágico. “Todos os homens mataram Clara”, afirma sua amiga em uma hipérbole que também tem muito de verdade simbólica – e o fato de muitos sentirem o impulso de responder com um tolo “nem todos os homens” é parte do problema por não compreender como isto é algo que ignora a questão central. De todo modo, não deixa de ser frustrante que posicionamentos tão básicos sigam representando pontos positivos em narrativas do gênero em vez de puro clichê, o que comprova o atraso da própria humanidade neste aspecto.
Hábil ao evocar a frustração dos detetives com certas linhas de investigação nas quais o roteiro investe vários minutos apenas para culminarem em mais um desapontamento, A Noite do 12 jamais atinge a mesma força dos longas mencionados no início do texto, mas é um exercício digno de um cineasta capaz de muito mais.
12) Elvis – a crítica pode ser lida aqui.
13) Irmão e Irmã (Frère et soeur) tem início com a morte de uma criança. Jamais a conhecemos ou descobrimos as circunstâncias da tragédia, que só acontece para que seu pai, Louis Vuillard (Melvil Poupaud), possa demonstrar todo o seu ressentimento quando a irmã Alice (Marion Cotillard) aparece para prestar condolências – quando então descobrimos que ela jamais chegou a conhecer o sobrinho por ter cortado relações com o irmão há muito tempo. O que poderia ter ocorrido entre estas duas pessoas, tão próximas na juventude (como revelam flashbacks espalhados ao longo da projeção), para que tenham chegado a um ponto em que nem o nascimento – ou a morte – de um filho/sobrinho conseguisse aproximá-los?
Esta é uma pergunta que o diretor Arnaud Desplechin (trabalhando a partir de roteiro escrito ao lado de Julie Peyr) não tem interesse algum em responder; ao contrário, ele parece desconsiderá=la a ponto de atirar pistas contraditórias na narrativa, como se ele mesmo não fizesse ideia do motivo. O único fato indiscutível é que Louis e Alice desenvolveram uma aversão tão grande um pelo outro que o restante da família se esforça para mantê-los afastados, normalmente notificando o sujeito sobre a chegada da irmã em qualquer lugar para que ele possa evitá-la. Em certos instantes, o responsável pela misteriosa ação que os afastou parece ser Louis, que exibe remorso e escreve cartas suplicantes à irmã; em outros, é esta quem diz “não poder desfazer” o que fez enquanto afirma que o irmão jamais a perdoará. Para complicar a situação, ele publicou um livro bem-sucedido sobre sua relação com a irmã, uma atriz de renome, que por sua vez o processou a ponto de arruiná-lo financeiramente.
Aos poucos, no entanto, o que se torna patente é que a razão real para este ódio é a oportunidade que oferece a Desplechin para criar cenas carregadas de melodrama embaladas por uma trilha instrumental dramática e que surgem de tempos em tempos, intercalando seus gritos e choros convulsivos entre passagens nas quais os personagens falam de modo baixo e melancólico. O pior é que ouvimos esta gritaria a troco de nada, já que não apenas desconhecemos os motivos para que ocorram como ainda não nutrimos simpatia por nenhum dos envolvidos, que são indivíduos tão arrogantes e egocêntricos que não parecem se importar com o sofrimento e a tensão que sua rixa causa nos pais idosos até que estes se encontrem à beira da morte (em função de um acidente que Desplechin constrói de maneira desnecessariamente complicada).
Sem conseguir sequer controlar o tom da narrativa – algo surpreendente partindo de um diretor experiente – Irmão e Irmã chega a incluir uma cena que, atirada de repente na tela, promove um encontro súbito entre os dois personagens-título que tenta soar engraçada depois de tudo que testemunhamos, resultando apenas em artificialidade e desconforto (não para os irmãos, mas para o espectador embaraçado diante da tolice que vê).
Trazendo ainda uma subtrama envolvendo uma imigrante romena apaixonada pelas performances de Alice, este é o tipo de filme que inclui um diálogo como “sua raiva vai passar como palavras na areia” com a convicção de estar dizendo algo muito profundo em vez de perceber que, como todo o resto, se trata de uma bobagem pavorosa.
Embora admire bastante Reis e Rainha e Um Conto de Natal, estou começando a acreditar que a mediocridade Os Fantasmas de Ismael é mais representativa da obra de Arnaud Desplechin do que aqueles longas. Ou talvez ele deva apenas evitar novas parcerias com Marion Cotillard.
22 de Maio de 2022