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Quem tem medo? Documentário expõe artistas censurados pela extrema direita no Brasil Brasil em Cena

“QUEM TEM MEDO”, dirigido por Dellani Lima, Henrique Zanoni e Ricardo Alves Jr, foi exibido no 27º Festival É Tudo Verdade e agora chega aos cinemas, com distribuição da Embaúba Filmes, no dia 4 de agosto. O documentário, filmado desde 2017, acompanha diverso(a)s artistas e performers que foram censurado(a)s e como esse processo ganhou ainda mais força com a eleição de Jair Bolsonaro. "Os regimes nazifascistas, tal como o atual brasileiro, são antes de tudo regimes estéticos", comenta Henrique Zanoni. "Toda a estratégia da extrema direita nazifascista brasileira (mas também mundial) gira em torno da criação de 'pânicos morais' para a mobilização do medo", complementa. Zanoni, Dellani e Ricardo falaram ao Cinema em Cena*. 

Cinema em Cena – De onde surgiu a ideia de “Quem tem medo”? Como foi o processo, desde a concepção até o lançamento, passando pela pandemia?

Dellani Lima – Em 2017, comecei a registrar o processo de criação do espetáculo “Res Publica 2023”, do grupo A Motosserra Perfumada para a realização de um curta-metragem. Pouco depois, a peça é censurada por Roberto Alvim, que na época era diretor do Centro de Artes Cênicas da Funarte, em São Paulo. Indignado com a situação, decidi produzir um documentário que denunciasse os atos de censura às artes que começaram a eclodir por todo o país, registrando os espetáculos, performances, atos contra a censura, artistas e pensadores, acumulando mais de 60 horas de material bruto. Percebi que era um material importante e gostaria de trabalhar em interlocução com outros artistas, então convidei Henrique Zanoni e Ricardo Alves Jr. para dirigir, roteirizar e montar o filme a seis mãos. Além de termos uma relação afetiva há muito tempo, somos também artistas que transitam no cinema e no teatro. Tudo foi filmado no calor dos acontecimentos, alguns espetáculos ainda estavam em cartaz e outros tiveram reapresentações em São Paulo. O material bruto inclusive tem mais obras, artistas e pensadores, mas decidimos fazer um recorte pontual, que trouxesse uma cronologia dessa ascensão da extrema direita no país até a eleição de Bolsonaro. As últimas gravações foram finalizadas um pouco antes da pandemia. Cada um de nós teve acesso ao material bruto e ficamos alguns meses analisando todas as imagens gravadas. Decidimos também pesquisar imagens de arquivo acessíveis sobre o tema. Quando houve todo o visionamento do material, sentamos algumas semanas, nas quais roteirizamos e montamos o filme. Durante esse processo de montagem, contamos também com nossa produtora, a Multiverso Filmes, em especial a participação do Daniel Pech, que além de um grande produtor, colaborou no nosso processo criativo. Com a versão final em mãos, desejamos muito que o filme tivesse seu lançamento antes das eleições, dada a importância temática abordada para o momento. Tivemos a grande alegria de ter como distribuidora a Embaúba Filmes, que vem se destacando com seu trabalho maravilhoso focado no cinema independente e autoral.

Cinema em Cena – Como foi feita a captação de recursos para a produção?

Dellani Lima – Realizamos todas as filmagens de forma totalmente independente. Usamos os recursos e equipamentos que tínhamos em mãos. Com a entrada da Multiverso Filmes é que elaboramos um projeto para um edital de finalização (SPCine), no qual recebemos um pequeno recurso para a pós-produção.

Cinema em Cena – O documentário foca sobretudo em produções de teatro. Por que vocês fizeram essa escolha?

Dellani Lima – Muitas obras foram censuradas, de diversas linguagens da arte, principalmente temáticas relacionadas ao gênero e à comunidade LGBTQ+. Escolhemos o teatro e a performance porque focamos em obras relacionadas ao corpo, que foi o principal alvo dos ataques e da censura da extrema direita.

Cinema em Cena – Na opinião de vocês, o que levou a essa ascensão do pensamento autoritário no Brasil?

Henrique Zanoni – O historiador Luiz Antonio Simas diz que o Brasil é um projeto que deu certo. Deu certo porque foi pensado para ser um lugar racista, desigual, preconceituoso, violento. Sob essa perspectiva, o plano foi bastante bem-sucedido. Ou seja, o pensamento autoritário sempre esteve presente em nossa sociedade e suas causas são múltiplas e complexas. Ciclicamente, esse autoritarismo retorna para nos assombrar. Para nos limitarmos ao período pós-ditadura, e levantando apenas um dos diversos elementos, o que percebemos é que houve uma expansão – bastante tímida, diga-se de passagem – do “espaço democrático”. Essa inclusão do “Outro”, essa pequena dosagem de “diferença”, impactou a percepção social e os afetos produzidos. Os privilégios, que eram tidos como “direitos naturais”, passaram a ser questionados; e os direitos passaram a ser reivindicados, ainda que sob um ataque constante de tentar classificá-los como privilégios (cotas, bolsas de estudo, bolsa família etc). Assim, o ressentimento gerou uma agressivização das relações. “Se eu perdi o lugar que tinha, então chega dessa ‘coisa’ de democracia, vamos colocar um tirano para recuperar a velha ordem”. Como Adorno dizia, o fascismo é a ferida aberta de uma democracia que não faz jus ao nome. Ou seja, enquanto não formos capazes de construir uma cultura e uma prática efetivamente democrática, o fascismo retornará.

Cinema em Cena – Por que os artistas se tornaram um dos alvos preferenciais desse discurso de ódio?

Henrique Zanoni - O título de nosso filme traz um início de resposta: “Quem Tem Medo?”. O principal afeto político de nosso tempo é o medo. Ainda que seja algo vago, o medo é extremamente eficiente. E toda a estratégia da extrema direita nazifascista brasileira (mas também mundial) gira em torno da criação de “pânicos morais” para a mobilização do medo (a ideologia de gênero, a conspiração comunista, mamadeira de piroca, a “vachina” que transmite HIV etc.). Portanto, os artistas são classificados como os “degenerados”, aqueles que ameaçam a ordem (são pedófilos, parasitas da mamata, golden shower etc.).

Ricardo Alves Jr. – Como mostramos no filme, cria-se uma CPI, presidida pelo senador Magno Malta, dos “maus-tratos infantis”. E quem é convocado? O curador da exposição Queer Museu. Quem é chamado de pedófilo? O performer Wagner Schwartz. Ou seja, essa associação das artes com a pedofilia busca, de maneira pensada e articulada, promover um processo de “desfusão”, onde se separa o bem do mal, os amigos e os inimigos, os cidadãos de bem e os “mamateiros-pedófilos”. E a solução só pode ser uma: a eliminação do “polo negativo”, uma “guerra de purificação” onde qualquer arbitrariedade é válida nesse jogo de vida ou morte. Assim, essa espetacularização do pânico gerada, supostamente, pelos artistas, possibilita uma aglutinação e uma canalização do medo em uma cultura do ódio: vamos odiar juntos para nos purificar! E com muito medo, eu quero armas, quero policiais políticos, quero o exército, quero a força. E se, inicialmente, esse foco se deu nos artistas, com a ascensão do nazifascismo bolsonarista, esse processo de pânico moral e cultura do medo se espraiou para toda a sociedade (professores, jornalistas, cientistas etc.).

Cinema em Cena – Na opinião de vocês, essa visão preconceituosa contra a arte é predominante na sociedade brasileira? Em outras palavras: a sociedade vê como um problema a censura ao fazer artístico?

Henrique Zanoni – A “sociedade brasileira” é algo bastante complexo. Não temos como “quantificar” se o preconceito e a censura às artes é algo predominante ou não. O que talvez possamos pensar se situa no âmbito das diversas iniciativas de resistência a esses ataques. Pela amplitude e variedade de “áreas” afetadas, o que podemos apreender é que, se por um lado existe uma forte tendência autoritária enraizada na nossa cultura, por outro a resistência sempre fez parte de nossas lutas. De maneira geral, o que percebemos como resposta à ascensão do nazi fascismo brasileiro contemporâneo, amplificado pela pandemia e sua gestão genocida, foi um sentimento de força na coletividade. A força do ataque perpetrado pelo Estado não será enfrentada de maneira individual, são forças muito desproporcionais. Mas, a mobilização da coletividade pode fazer face a essa violência. Podemos citar alguns exemplos: o Mobile (Movimento Brasileiro Integrado pela Liberdade de Expressão Artística), que é uma rede de entidades e coletivos que atuam na defesa e promoção da liberdade de expressão artística e cultural no Brasil. Esse coletivo vem compilando os casos de censura e dando visibilidade para a sociedade (para se ter uma noção, de 2016 a 2018, foram 16 casos compilados; de 2019 até fevereiro de 2022, foram mais de 200). O Monart (Movimento Nacional de Artistas Trans), capitaneado pela atriz Renata Carvalho, que promove a inserção de artistas trans no universo artístico; ou a recente campanha da “Carta às Brasileiras e aos Brasileiros em Defesa do Estado Democrático de Direito”, que já coletou mais de 700 mil assinaturas. Ou até mesmo a produção de nosso documentário, que foi feito praticamente sem recursos, mas que foi abraçado pela produtora Multiverso e agora pela distribuidora Embaúba, o que viabilizou e amplificou sua circulação. Enfim, o ponto central aqui é que para fazermos frente aos ataques, teremos que nos juntar para resistir.

Ricardo Alves Jr. – A última imagem do documentário é um letreiro com o ano 2023 e uma atriz chama uma cachorra vestida com um uniforme nazista ("a cadela do fascismo"). Logo em seguida, entra a música (aliás, censurada) "O Real Resiste", de Arnaldo Antunes. Assim, essa encruzilhada em que nos encontramos como país está ali escancarada no filme: ou resistimos como coletividade ou o ímpeto golpista de ares nazifascista do presidente, o exército e suas milícias se imporão. Portanto, a dois meses da eleição, o filme de alguma maneira questiona o espectador: depois de 700 mil mortes, no governo mais corrupto e inepto que já existiu, que implementou a lógica miliciana e do crime organizado como "modelo de gestão", que exala morte por todos os seus poros, o que nos resta fazer? Resistir. Nas ruas, nas criações, nas urnas. Como sociedade, como coletividade, podemos dar fim a esse período tenebroso de nossa história, ainda que seus efeitos deletérios sejam sentidos por longos anos.

Cinema em Cena – Como a sociedade precisa lidar com a ameaça da censura para evitar que ela seja normalizada por uma parcela representativa da população?

Ricardo Alves Jr. – O que percebemos foi que a censura, em suas mais diferentes formas, se espraiou para todos os setores ligados de alguma maneira ao executivo federal. O que antes se "limitava" ao universo artístico, atinge indiscriminadamente toda a sociedade. A gestão pelo medo, pelo assédio, pela ameaça, pela coerção, pela perseguição, faz parte do modus operandi do governo Bolsonaro (e de seus apoiadores nos âmbitos estaduais e municipais). Inúmeras normativas de censura foram implementadas em diversos órgãos (como exemplo, mas não limitado a eles), basta citarmos a proibição dos funcionários do IPEA de darem suas opiniões sem aprovação de seus chefes, a utilização de "posicionamento ideológico" em redes sociais como critério de promoção, ou até mesmo o caso trágico do assassinato de Bruno Pereira e Dom Philips (que foi precedido por diversos dossiês ilegais perpetrados pelo presidente da Funai - um policial federal). Enfim, exemplos não faltam do "modelo de gestão" criminoso que esse governo implementou.

Henrique Zanoni – No curto prazo, nós precisamos tirar esse governo para que as instituições possam minimamente voltar a funcionar. Já existem diversos mecanismos de proteção à livre expressão e à manifestação artística, mas, como em várias áreas, os crimes estão sendo cometidos à luz do dia e não há nenhuma consequência. A lista de exemplos é praticamente interminável, mas citemos alguns: o criminoso Sérgio Camargo e toda a destruição da Fundação Palmares; o presidente da república demitindo um funcionário de Iphan porque contrariou os interesses de Luciano Hang e suas lojas; o ex-Secretária de Cultura Mario Frias que fazia reuniões armado e ameaçava servidores; o poder dado a André Porciúncula, um policial militar, para vetar diretamente projetos; o cancelamento de editais por questões “temáticas”; os diversos dossiês ilegais produzidos para perseguir “esquerdistas”; centros culturais públicos usando “posicionamento político” como critério de seleção; a utilização de “Deus” para barrar apoio a festival de música... Enfim, a lista é interminável. O que é preciso deixar claro é que todas essas ações são ilegais e criminosas. Portanto, precisamos tirar esse governo e não cair no erro novamente de uma “justiça de transição”. Esses criminosos devem pagar pelos seus crimes.

Cinema em Cena – Junto com a censura, veio o desmonte das estruturas oficiais de fomento e financiamento de cultura. Diante disso, qual é a perspectiva da cultura brasileira para os próximos anos?

Henrique Zanoni - Ainda é algo bastante nebuloso e incerto. A destruição (institucional, legal, financeira etc.) foi muito ampla e profunda – aliás, como prometido pelo então candidato Bolsonaro, de que iria destruir o máximo de coisas que pudesse. Além disso, “desmontar” todo o “imaginário social” mentiroso criado sobre o sentido e a importância da cultura para o país é algo que também demora. (Isso sem contar os impactos, ainda não “elaborados”, de como a pandemia, as novas tecnologias, a concentração econômica etc., vão afetar todo o setor cultural). Mas, em linhas gerais, com a derrota desse governo, mesmo com toda a restrição orçamentária que enfrentaremos – que, diga-se de passagem, é mais um crime cometido à luz do dia sem consequência alguma – a expectativa é que paulatinamente voltemos a ter uma política cultural para o país (achamos muito difícil que isso ocorra antes de 2024). Isso significa planejamento, participação e controle da sociedade, investimento, descentralização, formação etc.. Em outras palavras, precisamos voltar a ter Governo, acabar com essa gestão miliciana, militar e parasitária que carcomeu toda a estrutura social brasileira.

Cinema em Cena – Afinal, na opinião de vocês, do que essa gente tem medo?

Henrique Zanoni - Os regimes nazifascistas, tal como o atual brasileiro, são antes de tudo regimes estéticos. Existe toda uma política estética que cria afetos que circulam na sociedade. Para exemplificar: a estética da “arminha”. Ela não é construída sem propósito, pelo contrário, ela é o tempo todo pensada e reforçada. Se o significado do aniversário é a comemoração, a celebração da vida, dos amigos, o que faz Eduardo Bolsonaro em seu aniversário? Coloca um revólver em cima do bolo. É a arma que dá significado à festa, é o desejo de morte que está ali expresso. E essa lógica do medo afeta até os bolsonaristas. Veja o caso do mais perigoso miliciano do país, Adriano da Nóbrega. Mesmo condecorado pela família Bolsonaro, mesmo tendo sua família trabalhando nos gabinetes, quando ele é assassinado numa queima de arquivo, a família mostra a foto do corpo fuzilado. O que os Bolsonaros, dentro de uma clara lógica mafiosa, querem dizer “para fora”? “É isso que posso fazer com você, olha o que eu fiz com ele que era meu amigo e perigoso”. Então, toda a sociedade está com medo.

Ricardo Alves Jr. - No nosso documentário, o ator Zé Neto Barbosa, na peça “Mulher Monstro”, foi agredido por bolsonaristas com uma pedrada no meio de uma apresentação. E nós, como sociedade, não fizemos nada. Agora, não são mais pedras. Como vimos no trágico caso de assassinato/terrorismo político na festa de Marcelo Arruda, se você comemorar seu aniversário com algum tema que desagrade a milícia bolsonarista, você pode ser assassinado. Existe, claro, também um medo de conviver com a diferença. Como diz Wagner Schwartz, essas pessoas querem viver somente com o que elas veem como igual a elas, tudo que é diferente deve ser eliminado. O problema, como também diz Wagner, é que esse medo que antes era “virtual” agora chegou ao “real”.

Henrique Zanoni - Um último ponto também diz respeito às relações entre neoliberalismo e conservadorismo. Toda a lógica socioeconômica que nos engole atua no sentido de privatização de todos os âmbitos de nossas vidas (desemprego, velhice, educação, coaching, auto-ajuda, o empreendedorismo de si etc). E quando “dependemos” apenas dessas métricas algorítmicas centradas no “eu”, o resultado é uma amplificação do medo e da insegurança. E isso, por sua vez, gera uma demanda, um desejo, por algum tipo de ordem e segurança. Que, não à toa, é “vendido” pela lógica da “arminha” e do Führer, do mito. Assim, acreditamos que, ainda que de maneira específica ao universo artístico, o documentário convoca os espectadores a se questionarem sobre esse afeto político dominante: o medo. E repensar e reestruturar nossos modos de nos relacionar e de viver passará necessariamente por enfrentarmos as questões que geram esse medo disseminado na sociedade.

*As opiniões aqui apresentadas não refletem necesariamente a opinião do portal Cinema em Cena.

Sobre o autor:

Alessandra Alves é jornalista com múltiplos interesses. Além do amor pelo cinema, pela música e pela literatura, também atua no jornalismo esportivo e na comunicação corporativa. Paulistana, corintiana, feminista e inimiga de fascistas, assina a coluna "Brasil em Cena", de entrevistas e reportagens sobre o cinema brasileiro contemporâneo.
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