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Marte Um: entrevista com o diretor do representante do Brasil no Oscar Brasil em Cena

"Marte Um", segundo longa do diretor Gabriel Martins, será o representante do Brasil no Oscar 2023. O filme traz o cotidiano de uma família periférica, nos últimos meses de 2018, pouco depois das eleições presidenciais. O garoto Deivid (Cícero Lucas), o caçula da família Martins, sonha em ser astrofísico, e participar de uma missão que em 2030 irá colonizar o planeta vermelho. Morando na periferia de um grande centro urbano, não há muitas chances para isso, mas mesmo assim, ele não desiste. Passa horas assistindo vídeos e palestras sobre astronomia na internet. O filme foi produzido graças a um fundo público de 2016 voltado para diretores negros e narrativas de temática negra com o intuito de levar às telas cineastas de grupos minoritários.

Cinema em Cena conversou com Gabriel na semana do lançamento do filme no circuito nacional. Nessa conversa, ela fala como surgiu a ideia do filme, como a pandemia impactou a produção, de que forma ele concebeu aspectos como a fotografia e a trilha sonora do filme e o que representa o protagonismo de uma família de pessoas pretas na história. "A sociedade, por muito tempo, olhou e olha pessoas negras, pessoas pobres, pessoas periféricas, como corpos a serviço de algo maior. Tem algo de uma herança escravocrata nossa: corpos a serviço de entretenimento, corpos a serviço de um time de futebol", comenta Gabriel.

Qual foi o ponto de partida para a criação de “Marte Um”? Qual era a sua intenção ao criar essa história, nesse universo em particular?

Marte Um é um filme no qual eu comecei a pensar após a Copa de 2014, entendendo uma crise de identidade que o Brasil passava. Não só pela Copa, mas pela movimentação política, pelo golpe na Dilma Rousseff, pelas eleições daquele ano, muitas diferenças entre a sociedade emergindo, questões identitárias, de sexo, de gênero, de raça. Eu queria falar sobre um menino que sonha algo mais longe, em um mundo dividido por essas coisas, no qual o destino dele fosse algo previamente pensado, que ele só pudesse ser uma coisa, correspondendo a uma fé muito grande, que era ser um jogador de futebol. E, querendo ou não, também seria um filme sobre o pai e esse filho, dentro desse mundo, que era o Brasil daquele momento, que me inspirava a falar sobre essas várias coisas.

De que forma a pandemia impactou a produção do filme? Como vocês superaram esses desafios?

A pandemia fez com que tudo ficasse mais demorado, essencialmente para finalizar o filme. A gente filmou em 2018, montou em 2019, mas durante a pandemia nós seguramos o processo de finalização, que teve de ser feito à distância. Também não sabíamos quando o filme poderia ser lançado, então seguramos, até para entender o que o cinema seria depois da pandemia, quando as salas abririam, quando festivais voltariam.

Cícero Lucas, o Deivinho, e a luz "lunar"

Conhecendo sua obra anterior, desde os curtas até “No coração do mundo”, eu noto um crescimento no apuro técnico de fundamentos como a fotografia, a montagem, a mise-en-scène nessa obra. Você concorda com essa visão?

Eu acho que, a cada filme, a Filmes de Plástico está entendendo melhor como usar os recursos, que não são gigantes, a seu favor. Os nossos filmes são muito ambiciosos e a gente vai estudando e melhorando mesmo, tecnicamente, a cada filme. Decupagem, a importância do som, de uma boa finalização, de uma boa mixagem, de um processo de foley. A gente foi também conquistando, a cada filme, mais conhecimento. O conhecimento vem com a possibilidade, por exemplo, de pagar por serviços de finalização, câmeras melhores, equipamentos melhores. Então, com o tempo, a gente foi tendo mais recursos e também estudando mais. Melhorando a nossa própria percepção do que que os nossos filmes precisam para ter um apuro técnico melhor. Então, basicamente isso é resultado de a gente estudar muito, a cada filme.

Camila Damião (Eunice) e Cícero Lucas (Deivinho)

Particularmente sobre a trilha sonora, ela soa muito diferente dos filmes anteriores, que pareciam incorporar uma sonoridade mais regional/brasileira. Esta parece mais “universal” e até, em algum sentido, mais hollywoodiana. Você concorda com essa percepção? Isso foi construído para envolver espectadores de qualquer parte do mundo?

Eu não acho que necessariamente a trilha foi construída com essa intenção. Eu acho um tanto difícil prever exatamente qual será o efeito no final, de recepção do filme. Sem dúvida alguma, eu me inspiro no trabalho de compositores como Nichollas Brittel, John Williams, que são compositores muito fortes, que conseguem fazer um trabalho muito bonito em condições clássico-narrativas, em filmes que têm temas. Marte Um tem temas específicos para os personagens. Eu adorava isso, e ainda gosto. Eu nunca sentia que, em algum momento, o filme tivesse que se esconder disso, tivesse que ter alguma limitação, porque eu acho que a trilha dá um suporte emocional para as cenas, eu acho que ela adensa as cenas. E e eu concordo que talvez ela tenha realmente um aspecto mais universal, mas eu não fiz isso pensando necessariamente nos espectadores apenas, mas pensando em como eu acho que as cenas precisavam dessa trilha. Se esse filme tivesse uma trilha mais experimental ou algo do tipo, eu acho que ela não faria muito sentido com o que o filme diz. Eu acho que tem até um certo contraste desse lugar lúdico, que nós não estamos muito acostumados com isso no cinema brasileiro, mas eu acho que o sonhar é algo universal. Então, a trilha é parte dessa ideia.

Rejane Faria (Tércia): retomando a autonomia pelo corpo

Entrando um pouco na história. Ao não querer ser um jogador de futebol, e ao se indignar depois de ser alvo de uma pegadinha estúpida de um programa de TV, filho e mãe estão dizendo para a sociedade “não, eu não quero mais ser o responsável pelo seu entretenimento”? No caso do Deivinho, inclusive, “tenho outros planos e me dou ao direito de sonhar com eles”?

Eu acho que tem sim essa quebra de paradigma com a maneira como talvez não só a televisão, mas a sociedade, por muito tempo, olhou e olha pessoas negras, pessoas pobres, pessoas periféricas, como corpos a serviço de algo maior. Tem algo de uma herança escravocrata nossa: corpos a serviço de entretenimento, corpos a serviço de um time de futebol, de um empresário. E eu acho que esses personagens talvez recobram essa autonomia sobre os corpos, com o que eles fazem no filme. Sinto que essa afronta dos personagens diz respeito, sim, a uma retomada dessa autonomia.

Carlos Francisco (Wellington): trabalhadores, sempre punidos

Há um personagem da história que é claramente “militante” contra valores da burguesia, e esse mesmo personagem depois adquire um papel literalmente marginal na história. Qual foi a intenção dessa construção?

Eu acho que essa trajetória do personagem do Russão tem menos uma intenção de direcionar algum resultado sobre certo tipo de opinião ou de ação, mas construir também uma amplitude, que é a da complexidade dos personagens desse filme. O Russão é um personagem militante e talvez, em muitos dos argumentos, ele tenha razão. Só que, ao mesmo tempo, ele leva uma certa ideia a cabo que, no fim das contas, por mais que o personagem Wellington acabe sendo punido, ela não é o único motivo para a punição. Wellington é punido pela reação injusta que revela as fragilidades de uma estrutura maior. A gente sabe que, em situações como aquela, todos os trabalhadores são punidos de alguma forma. O fato de que esse personagem até possa ter razão não quer dizer que ele não possa fazer algo moralmente complexo, inclusive prejudicar uma pessoa que ele admira e gosta.

A luminosidade com que o filme envolve os personagens faz com que a pele adquira um tom azulado opaco, e é impossível não lembrar do tom negro lustroso que as peles adquiriam em “Cidade de Deus”. Atingir esse tom (que lembra “Moonlight”) foi uma preocupação específica?

Sem dúvida alguma, a fotografia usa características que possam elogiar essa pele do elenco. Isso é, por exemplo usar essa especularidade noturna, essa luz que é azulada e tem algo de lunar. Novamente, aqui, planetas, satélites, o que é uma ideia central do filme. Mas também tem a ver com o fato de que os atores que interpretam Eunice e Deivinho têm a pele muito escura, e ela reage de forma muito bonita à especularidade. É algo que uma pele branca não tem, por exemplo. Então, eu acho que esse tipo de luz, que também traz algo de lúdico, era algo que o elenco possibilitava. Isso é algo que está no “Moonlight”, que estava no “Cidade de Deus”, então acho que essa ideia dessa especularidade era algo que a gente pensou, por um ideal de beleza mesmo. Não é algo especificamente narrativo, mas é algo que sem dúvida alguma a gente pensa em extrair o máximo de beleza de cada plano. Dentro de um filme que está pensando em uma expansão de pensamento. Isso também é inclusive uma reivindicação, sobre a beleza da pele negra, que muitas vezes não foi pensada assim, dentro da história da cinematografia. A gente, pensando como cinema, sempre teve condições de fazer coisas muito bonitas nesse sentido, mas eu acho que hoje em dia a gente está pensando mais nisso.

Gabriel Martins: ampliando horizontes, tal como Deivinho

Ainda na questão de raça e etnia: “Marte Um” é um filme sobre uma família de pessoas pretas, que têm amigos pretos, mas ninguém ali está “fazendo papel de preto”, como o cinema e a TV brasileiros tantas vezes retrataram (pessoas escravizadas em novelas de época, criados e serviçais em qualquer tempo etc.) O que essa realidade significa para você, em termos artísticos?

Eu acho que a presença dessa família preta para mim significa, de zero ao mundo, que as histórias desses personagens podem ser universais. Não que a gente colocando um personagem escravo necessariamente não consiga tocar os corações de pessoas do mundo todo. Mas eu acho que quando a gente recorre a um lugar comum de narrativas pretas, como nesses exemplos citados, a gente está despotencializando um caminho de comunicação que é muito mais amplo, que pensa inclusive uma fórmula pela qual esses personagens possam ser mais complexos, que a gente não precise torná-los virtuosos dentro do filme, como se a gente precisasse salvar os personagens. Basicamente é um filme não sendo condescendente com seus personagens, um filme contando as histórias deles nas quais, no percurso, eles vão errar, vão aprender, vão se modificar, vão ver outras perspectivas, vão ser teimosos. Em Marte Um, todos os personagens passam por algum momento no qual eles são injustos, não conseguem olhar o outro lado, até que enfim conseguem se acertar. Eu acho que isso é muito universal. O fato de ser uma família preta diz respeito a um desejo meu, de ver esses personagens representados porque eu sou um cara preto, a minha família é assim, então tem uma coisa muito pessoal. Eu vou contar a história de pessoas que se parecem, que tem uma cor parecida com a de quem eu cresci vendo. Mas, no fim das contas, essa história não precisa necessariamente falar sobre racismo diretamente só porque é um filme de uma pessoa negra, mas ampliar os horizontes, assim como Deivinho que ampliar os horizontes dele. Acho que esse gesto do filme, com o personagem, é o gesto que eu faço também, como realizador.

O que o acesso a um filme como Marte Um representa para uma audiência formada por pessoas pretas?

Eu acho que tem algo acontecendo, sim, no Brasil, que diz respeito a muitos acontecimentos diferentes, a maneira como o governo Lula abriu muitas portas para pessoas pretas e periféricas na universidade, de acesso ao conhecimento e de acesso a meios de produção. Eu sou fruto disso por ações afirmativas no cinema. Marte Um é fruto de uma ação afirmativa, de um edital voltado para artistas pretos. Então, tem coisas que vão acontecendo porque existiu uma ação para isso, não só por serem resultado de uma geração ou algo do tipo. Talvez hoje seja mais fácil para uma pessoa preta, ainda com dificuldades, acessar cultura e se mostrar, se colocar no mundo, do que era antes. Hoje, acho que também o público preto está se olhando mais, está consumindo mais a sua própria arte. Eu acho que toda essa movimentação faz com que a sociedade no geral aos poucos tenha um pouco mais de empatia com essas questões. Tenha entendido um pouco mais que essas reivindicações das pessoas pretas, ao longo do tempo, são reivindicações reais, não injustas, ou “vitimismo” ou “mimimi”, como o atual presidente insiste em dizer. São questões que as pessoas vivem literalmente na pele. Eu sinto que parte desse sucesso, desse momento, é resultado de um conjunto de fatores e que, sem dúvida alguma, eu me vejo nesse processo cultural.

De que forma o desmonte do setor cultural, pelo atual governo, está afetando a produção de cinema, na sua opinião? E quais são as perspectivas do setor nos próximos tempos?

Eu acho que o desmonte afeta um aspecto muito básico, que é o acesso ao dinheiro, tornando-se ou muito burocrático ou inexistente, em muitos sentidos. Quando se quebra um processo, como o governo Temer e depois Bolsonaro fizeram com os mecanismos de financiamento facilitados pelo estado, afeta-se um grupo muito representativo de pessoas. O cinema brasileiro é muito grande, tem gente em todos os estados escrevendo roteiros e tentando filmar. A quebra desse processo levou profissionais que estavam prestes a realizar projetos à necessidade de engavetá-los, porque muitas vezes o setor privado simplesmente não tem interesse em financiá-los. Outra questão é que esse mercado privado está basicamente no Rio e em São Paulo, olhando muito pouco para fora, em termos de envolver pessoas de outros estados nos meios de produção, no centro da narrativa. Então, foi se deixando todo esse ambiente cinematográfico mais rarefeito. Festivais acabaram, pontos de encontro acabaram. Basicamente, o que a gente viu foi a eliminação de uma potência que estava sendo construída, que aumentava cada vez mais os eventos de cinema, que possibilitava acesso a dinheiro para poder desenvolver roteiro, para montar, para distribuir. Quando se tira isso, o cinema começa a sofrer um baque criativo, deixa de ser uma opção profissional para muita gente e se torna cada vez mais difícil realizar essa arte. O choque é basicamente financeiro. A gente antes estava caminhando para um lugar bem interessante e vivo e, de repente, ele foi cortado na raiz. Quando você corta uma planta pela raiz, é muito difícil ela crescer.

 

Sobre o autor:

Alessandra Alves é jornalista com múltiplos interesses. Além do amor pelo cinema, pela música e pela literatura, também atua no jornalismo esportivo e na comunicação corporativa. Paulistana, corintiana, feminista e inimiga de fascistas, assina a coluna "Brasil em Cena", de entrevistas e reportagens sobre o cinema brasileiro contemporâneo.
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