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O Livro dos Prazeres: uma jornada de libertação Brasil em Cena

“Se algum dia alguém filmar algum livro meu, que seja Antonioni.” A frase de Clarice Lispector desde o início colocou o sarrafo no alto para Marcela Lordy, diretora e co-roteirista de “O Livro dos Prazeres”, seu primeiro longa-metragem, que estreou no dia 22 de setembro no Brasil e é uma adaptação da obra, escrita em 1969. O filme narra a jornada de amadurecimento e descobertas da jovem professora Lóri (Simone Sopladore), que mora sozinha no Rio de Janeiro e conhece o professor Ulisses (Javier Drolas), com quem desenvolve uma relação intensa e, ao mesmo tempo, redefinidora.

“O filme tem quatro títulos – Uma aprendizagem ou O Livro dos Prazeres ou A origem da Primavera ou A morte necessária em pleno dia. Foi mera coincidência a estreia cair bem no dia em que a Primavera começa no Hemisfério Sul, mas em se tratando de Clarice, parece que nada nunca é por acaso”, comenta Marcela.

“Nós vivemos praticamente quatro anos de retaliação. Captamos o último recurso para o filme exatamente em dezembro de 2019 e, em janeiro, tomou posse o... (hesitação) o... delinquente (risos). Então, a esperança é que venha realmente uma renovação, a força da renovação”.

Acompanhe a entrevista exclusiva que Marcela concedeu para o Cinema em Cena.

A diretora Marcela Lordy (Foto: Gabriela Bernd)

Cinema em Cena – Como nasceu a ideia para o filme?

Marcela Lordy – Eu sempre gostei de Clarice Lispector, li desde criança, porque ela também tem uma literatura infantil vasta. Os livros dela sempre me chamaram a atenção, talvez inconscientemente por terem protagonistas femininas. Sou de São Paulo, estudei no Gracinha (Escola Nossa Senhora das Graças), tive aula com o professor Carlos Faraco que me passou essa paixão por literatura. Quando eu li “O livro dos prazeres”, fiquei muito tocada pela maneira como ele falava do amor. Eu tinha terminado um relacionamento de dez anos e achava que as pessoas tinham perdido a capacidade de se comunicar nessa era de amores líquidos, na qual não se assumem os afetos. Achei que o livro tinha várias mensagens importantes e nasceu a ideia de adaptar para o cinema, mas eu fui um pouco ingênua, porque eu não imaginava quão inadaptável era esse livro. Ele começa com uma vírgula e termina com dois pontos! E eu resolvi adaptar esse livro logo para o meu primeiro longa-metragem de ficção! Fui aprendendo, foram vários tratamentos até chegar ao roteiro final. Foi um processo muito bacana, porque simbolicamente a Lóri é uma sereia que encontra a sua voz e eu, à medida que ia escrevendo, também ia encontrando a minha voz como diretora, como autora. Foi um período de muito aprendizado e experimentação. Eu sempre gostei muito de artes visuais e a Clarice também tinha essa pegada, sempre sinestética, então o livro era um prato cheio para a imaginação.

Cinema em Cena – De que forma a pandemia impactou o trabalho?

Marcela Lordy – Entre o início e a conclusão do filme, foram dez anos. Começou comigo, depois chamei a Simone (Spoladore), ela adorou e topou na hora. Chamei a produtora Debora Osborn, da bigBonsai, que também comprou imediatamente. Ela que trouxe a ideia de coprodução com a Argentina, aí ganhamos Ibermedia, e só então começamos a ter visibilidade no Brasil. O filme ficou pronto junto com o início da pandemia, e aí comprometeu totalmente o lançamento, porque os festivais que aconteceram foram online, mas com muito menos filmes. Ainda assim, participamos de alguns festivais no exterior, mas decidimos adiar o lançamento no Brasil e calhou de ele estrear exatamente no dia em que começa a Primavera aqui, 22 de setembro.

Cinema em Cena – De que maneira a prosa de Clarice Lispector mantém sua atualidade? A Lóri da Clarice, de 50 anos atrás, tinha menos ou mais dilemas que a sua?

A Lóri traduz uma angústia de querer ser livre e independente em uma sociedade patriarcal, com uma enorme dificuldade de espaço. Cinquenta anos depois, a gente ainda vive isso, por incrível que pareça, então é super contemporâneo. Clarice escreveu esse livro um ano depois do AI-5, em 1969, e agora nós também estamos vivendo um momento de autoritarismo. Lóri descobre a sua voz, seu papel na sociedade, ela se sente empoderada. Os dilemas da Lóri de 1969 são muito parecidos com os de hoje. A mulher continua buscando espaço político e sendo interrompida, literalmente. Vivemos em um país com alto índice de feminicídios, onde o machismo e a misoginia ainda estão muito presentes. Lóri começa melancólica, mas vai se descobrindo e se fortalecendo. É quando ela encontra seu eixo que descobre que o amor é possível. Eu acho que isso é atemporal, faz parte do universo feminino, da gente encontrar nossa profundidade, acreditar na nossa força. Lóri busca aprender com o personagem de Ulisses, que é professor, mas entende que é ele quem tem a aprender com ela, pela sua inteligência, sensibilidade e profundidade. A sociedade ainda leva a mulher a duvidar dessas suas próprias capacidades, e aí vem a Síndrome de Impostora. Esse livro estimula essa força, talvez por isso as adolescentes até hoje gostem tanto dele. E eu acho que o filme assume um papel importante, de projetar mulheres fortes, inteiras, dizendo para as meninas e mulheres de hoje que, sim, elas podem.

Cinema em Cena – O filme traz diversas cenas de sexo, inclusive porque esse aspecto faz parte do processo de autoconhecimento da Lóri. Como você concebeu essas cenas?

Marcela Lordy – O amor, sob a visão dessa jornada, só é possível quando é mútuo, quando o gozo é mútuo, e o filme traz o sexo sob uma perspectiva feminina. As cenas foram filmadas com essa perspectiva. Nossa sexualidade sempre foi muito retratada pelo olhar masculino, tanto na literatura quanto no cinema, e eu acho que o filme abre portas e camadas para entender a ótica da mulher nesse sentido. As histórias com protagonistas femininas quase sempre trazem mulheres que sofrem, que são vítimas,  e nós estamos cansadas disso. Não queremos ver mulheres dominadas, mas vencedoras, poderosas, literalmente gozando na cara do espectador.

Cinema em Cena – No material de divulgação, você comenta sobre Clarice “colocar a mulher no centro da narrativa”. A sua Lóri também é quase sempre enquadrada dessa forma, no centro do quadro. Do ponto de vista da narrativa cinematográfica, o que isso significa?

Marcela Lordy – Lóri conduz o filme, ela engole a história e conduz a narrativa. É um filme de tantas camadas que eu mesma fui descobrir fazendo. Nós tivemos uma consultoria muito importante, com a montadora chilena Soledad Salfate, responsável inclusive pela montagem de “Uma mulher fantástica” (filme chileno ganhador do Oscar de Filme em Língua Estrangeira de 2018) , que nos disse: “não é um filme sobre um casal, é um filme sobre uma mulher independente!”. Nesse momento, eu entendi finalmente o que eu queria dizer com o filme e que ele deveria ser um filme de personagem, com Lóri ocupando todos os espaços.

Cinema em Cena – Como foi o processo de construção dessa personagem principal?  

Marcela Lordy – Foi muita elaboração e pesquisa, por muitos anos. Nós sempre tivemos a preocupação de que a Lóri engajasse o público desde o começo, e isso era um desafio, porque ela começa muito melancólica e fechada em si mesma. Fizemos muitos tratamentos e laboratórios para compor essa mulher de forma que ela continuasse traduzindo essa melancolia e, ao mesmo tempo, fosse cativante ao público. Foram anos de construção, na verdade.

Cinema em Cena – O filme se passa no Rio de Janeiro, transmitindo uma forte sensação de calor, um calor sufocante e, com o tempo, o ambiente parece adquirir uma leveza, traduzida até nas cores. Como essas formas se relacionam com a história e com a personagem?

Marcela Lordy – É um calor interno, em um Rio de Janeiro chuvoso, fora do estereótipo. Tudo é linguagem, na fotografia, no cenário, no figurino. No começo, tudo é fechado, claustrofóbico. À medida em que ela vai se conhecendo, as paisagens vão se abrindo, as roupas dela ganhando tons fortes, estampas grandes. O filme vai realmente ganhando dimensões de uma pessoa que está aberta para o mundo.

Cinema em Cena – Existe algum ou alguns filmes que tenham sido referência para você contar essa história?

Marcela Lordy – Eu sempre gostei muito do humor e dos personagens da Miranda July (“Eu, você e todos nós”), uma diretora que também é artista plástica e faz um cinema com uma linguagem fora do convencional. Eu gosto do cinema avant-garde, de Meliès, essa coisa de play-reverse, efeitos mecânicos, que inclusive estão presentes já na abertura do filme. Gosto também de coisas como Frances Ha, esses personagens excêntricos, que parecem não caber muito em padrões. A própria Clarice falava sobre as próprias pernas (“uma é maior que a outra, eu nunca me encaixo”). Tudo o que parece estranho, inadequado. Gosto de Paul Thomas Anderson, de Lars von Trier. Ao mesmo tempo, eu tenho uma coisa meio Bergman, de cortar os pulsos (risos), então acaba ficando uma mistura dessas coisas.

Cinema em Cena – Sobre os homens da história: todos coadjuvantes, e todos exalando fragilidade. O homem não melhorou muito nos últimos 50 anos?

Marcela Lordy – Eu acho que são homens se reinventando. O professor de Educação Física, por exemplo, desconstrói um estereótipo e é o homem mais sensível do filme. Ele entende a Lóri. O irmão, que é um agroboy tóxico, ao mesmo tempo tem atitudes carinhosas com ela e tem também um lado sensível. Ulisses é um personagem delicado e foi super criticado na época do lançamento do livro, por comportamentos machistas. O Javier Drolas, que é uma pessoa super doce, ajudou a descontruir esse homem. Ele tem paciência com a evolução da Lóri, e isso faz parte da própria desconstrução desse machismo presente nele.

Cinema em Cena – Os personagens centrais do filme trazem uma fluidez sexual. Como isso conversa com a obra da Clarice?

Marcela Lordy – No livro, Lóri e Ulisses demoram um ano para transar pela primeira vez, e isso não seria coerente com os dias de hoje. Optei por adaptar de uma forma que esse encontro fosse tão intenso a ponto de assustá-los, e então provocar esse distanciamento, no qual ocorre a grande transformação dela. A cena da masturbação da Lóri, diante dos espelhos, foi uma construção muito bacana. O filme foi todo feito em locação, grande parte dele nesse apartamento onde a Lóri está morando. Na hora de filmar essa cena, eu percorri o imóvel, pensando onde fazer. Chamei a Simone e perguntei a opinião dela. Eu já tinha pensado naquele canto, onde tem um jogo de espelhos, e ela comprou na hora. O Mauro (Pinheiro Jr, diretor de fotografia) achou o conceito muito estetizado, argumentou contra, chamando a atenção para o fato de que o começo do filme já usava um conceito parecido, baseado em espelhos. Mas eu rebati: peraí, porque ele, um homem, tem que dizer onde é melhor a personagem fazer isso? (risos) Minha intuição dizia que esse caminho seria bom, ele se deu por vencido e ainda me falou: então, tá bom, fala onde você quer a câmera, em que altura etc. Mas, à medida que a gente foi filmando, ele foi gostando também, e no fim a cena é uma das mais emblemáticas, comentadas e virou até cartaz do filme.

Masturbação em frente ao espelho: mulheres no comando

Cinema em Cena – Como você está enxergando o cinema brasileiro neste momento, com o desmonte progressivo das leis de incentivo e outros mecanismos, e principalmente, como será o futuro?

Marcela Lordy – Eu acho que a reconstrução vai levar muitos anos, e que a gente precisa fazer políticas públicas, e fazer disso lei, porque senão ficamos muito sujeitos a políticas partidárias, que mudam a cada governo. Acho que agora vamos tirar esse maluco do poder, e vamos precisar rever tudo o que foi feito, e principalmente reconstruir o cinema, e a cultura de forma geral. O cinema também é a imagem do Brasil para o mundo. Cultura tem que estar na cesta básica como educação. Cultura faz com que as pessoas se vejam, se identifiquem, evoluam e esse governo quer pessoas burras. O Brasil é muito grande e muito diverso, e isso está refletido no nosso cinema. Tem filme para paulistano, classe média, mas tem também filme mineiro sobre uma família suburbana, como é “Marte Um”, tem cinema pernambucano, baiano, tem uma criatividade imensa. O cinema nos leva a dialogar, a nos abrir para outras culturas, e todas as culturas precisam estar representadas no cinema que um país diverso como o nosso pode produzir.

Sobre o autor:

Alessandra Alves é jornalista com múltiplos interesses. Além do amor pelo cinema, pela música e pela literatura, também atua no jornalismo esportivo e na comunicação corporativa. Paulistana, corintiana, feminista e inimiga de fascistas, assina a coluna "Brasil em Cena", de entrevistas e reportagens sobre o cinema brasileiro contemporâneo.
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