Dia 08
23) Em novembro de 2015, Paris foi tomada pelo caos quando vários ataques terroristas ocorreram quase simultaneamente pela cidade, resultando em 130 mortos e centenas de feridos. Embora vários destes ataques tenham sido realizados por homens-bomba, a Força Nacional francesa não demorou a descobrir que alguns indivíduos envolvidos no planejamento e na execução dos atentados se encontravam na capital, o que deu início a uma caçada em larga escala para apreendê-los. É esta investigação que Novembro, dirigido por Cédric Jimenez e roteirizado por este ao lado de Olivier Demangel, narra em detalhes.
E é importante frisar a palavra “detalhes”: adotando o estilo de um procedural (filmes ou séries que se concentram no processo investigativo em si, em vez de focarem no puro suspense ou na ação), o longa traz Jean Dujardin como o líder de uma equipe dedicada cujos integrantes são definidos por seu trabalho. Aqui e ali, há uma tentativa preguiçosa de adicionar elementos pessoais na trajetória dos personagens, mas isto geralmente acaba falhando em atingir seu objetivo, servindo apenas para ocupar tempo de projeção. Para compensar um pouco esta falha, Jimenez escala atores com rostos facilmente reconhecíveis em boa parte dos papeis, talvez com a esperança de que nossa familiaridade com estes ajude a despertar interesse pelas figuras que interpretam, mas aqui tampouco é possível apontar uma vitória criativa, já que o que acaba ocorrendo é que o espectador passa a fazer uma brincadeira pessoal de “eu conheço essa pessoa!”, causando mais distração do que qualquer outra coisa.
Não que possamos ignorar a força de uma produção que conta com figuras como Sandrine Kiberlain, Anaïs Demoustier, Lyna Khoudri, Jérémie Renier e o também cineasta Cédric Kahn, mas o fato é que Novembro jamais consegue trazer uma dimensão emocional, pessoal, à narrativa. Com isso, a eficácia da obra passa a depender quase exclusivamente do interesse gerado pela investigação – e, como crédito ao diretor, esta é recriada em todos os seus elementos mais entediantes, envolvendo entrevistas com vítimas, pesquisas em redes sociais, análise de imagens, discussões, telefonema feitos e recebidos e por aí afora. É como se houvesse sempre algo acontecendo na tela, mas raramente gerando tensão – com exceção do confronto final.
O que me traz a outro problema grave do filme, que é estar disposto a justificar praticamente todas as ações da polícia – e as tentativas pontuais de evitar a islamofobia, por exemplo, são tão burocráticas que soam apenas como se os realizadores estivessem só querendo uma blindagem contra acusações de intolerância.
E nem mesmo as melhores sequências do longa conseguem equilibrar isto.
24) Considerando como tantos reclamam hoje em dia sobre o “politicamente correto” ou sobre como é preciso “coragem” para fazer piadas homofóbicas, transfóbicas e misóginas, o longa paquistanês Joyland é um tapa na cara deste discurso. “Coragem” não é humilhar minorias; é fazer um filme delicado co-estrelado por uma atriz trans no Paquistão.
Dirigido pelo estreante Saim Sadiq, o roteiro (co-assinado por Maggie Briggs) gira em torno de Haider (Ali Junejo), um sujeito que, desempregado e dividindo a casa com o pai, a esposa, o irmão, a cunhada e as filhas do casal, passa humilhações diárias por não fazer jus ao conceito de masculinidade mantido por um pai conservador em uma sociedade ainda mais intolerante. Auxiliado por um amigo, Haider acaba por conseguir um lugar como dançarino em um show estrelado por Biba (Alina Khan), uma artista trans que se sente desvalorizada pelo dono do pequeno teatro no qual se apresenta e no qual é forçada a subir no palco apenas durante os intervalos das demais atrações. Fascinado pela dançarina, o protagonista mente para a família sobre a natureza de seu emprego enquanto passa cada vez mais tempo fora de casa – uma mudança que é percebida por sua compreensiva esposa Mumtaz (Rasti Farooq), que, feliz com a própria independência por ter um emprego, começa a ser pressionada pelo sogro não só para pedir demissão como para engravidar – duas decisões que, para sua imensa decepção, Haider apoia por pura covardia.
A partir disso, Joyland se divide entre a dinâmica estabelecida por Haider e Biba e aquela existente entre o rapaz e sua família – em particular, com Mumtaz. Neste aspecto, Sadiq é inteligente ao criar um relacionamento cúmplice entre o casal: Mumtaz sabe que o marido tem desejos que não expressa e busca apoiá-lo mais como amiga do que como esposa. Ao mesmo tempo, suas próprias necessidades (sociais, sexuais) são frequentemente ignoradas pelo companheiro, que, mesmo contando com nossa simpatia, tem uma faceta de egoísmo difícil de ser perdoada. Para piorar, sua incapacidade de confrontar o pai e o irmão – e a si próprio – acaba por ferir não só Mumtaz, mas também Biba, que se vê fragilizada pela primeira vez em muito tempo, o que a angustia por saber como lutou para criar um escudo contra todas as macro e microagressões sofridas todos os dias apenas por ser quem é.
Esta rede de relacionamentos complexos criada por Joyland acaba por comentar, assim, a própria estrutura da sociedade paquistanesa, com suas expectativas e tabus, desejos reprimidos e imposições de gênero. E levando em conta se tratar do primeiro longa de Saim Sadiq, há grande promessa em sua carreira.
25) Quando o cineasta ucraniano radicado em Berlim Sergey Loznitsa começou a produzir seu documentário A História Natural da Destruição, a guerra aberta da Rússia contra seu país ainda se mantinha na condição de ameaça recorrente, não de realidade. Infelizmente, não é difícil imaginar como as imagens aterrorizantes colecionadas e exibidas em seu filme, embora originadas há cerca de 80 anos, provavelmente não são muito diferentes do que a Ucrânia testemunha hoje em seu solo.
Este é um lamento que independe (ou deveria) de ideologias ou nacionalismos: não importa se Putin é um autocrata sanguinário ou se Zelensky é, segundo alguns, um ególatra disposto a sacrificar seu povo para ganhar palco no mundo; o horror causado pelas bombas e tropas russas na população civil da Ucrânia não é mais “desculpável” do que o Holocausto ou os inúmeros genocídios cometidos ao longo da História por este ou aquele psicopata. Ora, boa parte deste documentário se dedica a nos mostrar a violência indizível sofrida pelos civis alemães durante a Segunda Guerra mesmo que seu país fosse o responsável por lançar a Europa e o mundo no caos. Não é culpa do encanador do bairro ou da professora do jardim de infância que Adolf Hitler tenha assassinado milhões de pessoas.
Ou talvez seja em parte, já que sua ascensão se deu por voto popular. Independentemente disso, contudo, é razoável imaginar que a maioria de seus eleitores teria pensado duas vezes caso pudesse antever o que ele far… (suspiro) Acho que estou sendo otimista como de hábito.
O fato é que a política não é a preocupação de A História Natural da Destruição; a brutalidade da guerra é. Montado totalmente a partir de imagens de arquivo, numa pesquisa que por si só merece aplausos, o filme não inclui narrações ou diálogos – a não ser trechos ocasionais de discursos -, optando por confiar na força do que retrata ao atirar sobre o público a dimensão da tragédia humana causada pelos bombardeios durante a guerra – em particular na Alemanha. Testemunhar as ruínas, notar os cadáveres e confrontar o desespero alheio é, de certo modo, o propósito apresentado por Loznitsa, como se este desafiasse nossa humanidade ao testar nossa capacidade de empatia para com aqueles que moravam no berço do nazismo. Não com nazistas, repito, mas com os civis que embora não detivessem poder algum eram os principais alvos das bombas aliadas.
Mas esta é a natureza da guerra, creio. E num conflito amplificado pela tecnologia e que não precisava mais ser disputado apenas nas trincheiras, entre soldados uniformizados e armados, o campo de batalha se expandiu para embarcar todos os territórios envolvidos, usando a morte de inocentes como forma de pressionar o inimigo (e de novo: isto há 80 anos; o que o avanço da indústria bélica consegue causar hoje é exponencialmente mais pavoroso).
É possível, claro, questionar o propósito de um filme como este; haveria alguma exploração da feiura da guerra? O propósito humanitário do documentário (baseado em um livro de W.G. Sebald) justifica o uso e a divulgação destes registros? Em última análise, ele traz algo que já não saibamos.
Talvez não. Mas não há como negar a diferença entre lermos relatos de batalha e vermos os corpos semidestruídos de bebês em seus berços. Se esta diferença é o bastante para mudar mentes que ainda acreditam na necessidade da guerra, seja por qual motivo for, é algo mais difícil de responder.
26 de Maio de 2022