Dia 09
27) A humanidade dos filmes dirigidos pelos irmãos Jean-Pierre e Luc Dardenne é inquestionável. Voltando-se frequentemente para personagens à margem da sociedade, os belgas construíram uma carreira impressionante de histórias contadas com imensa empatia e que aproxima o espectador da realidade de suas criações através de uma câmera que parece estar sempre seguindo-as – em vez de apenas “retratando-as” -, como se houvéssemos ganhado acesso a um portal aberto para outras trajetórias. Sim, de um ponto de vista teórico e histórico, a aproximação estética dos Dardenne com o neo-realismo seria uma forma mais elegante e concisa de descrever esta abordagem, mas há um fator imponderável em seus filmes que vai além da discussão acadêmica e se aproxima do sublime. Mesmo quando o resultado como obra é apenas mediano.
O que é o caso de Tori & Lokita, que os irmãos apresentaram no Festival de Cannes de 2022: estrelado por dois atores amadores (o que não é novidade na filmografia dos realizadores), o longa acompanha dois imigrantes de Benin que tentam se estabelecer na Bélgica. Enquanto o pequeno Tori (Pablo Schils) já conseguiu o status de residente, Lokita (Joely Mbundu) está ainda percorrendo a burocracia rumo a esta segurança e, para aumentar suas chances de sucesso, se apresenta como irmã mais velha do garoto que, na verdade, conheceu no barco rumo à Europa. No entanto, mesmo que não sejam parentes de fato, a amizade e o afeto entre os dois são genuínos, o que é fundamental para que sobrevivam aos inúmeros abusos enfrentados num mundo cada vez mais entregue à xenofobia.
Assim, quando Lokita aceita um trabalho que lhe renderá uma quantia que precisa para ajudar a família que permaneceu em Benin, sendo obrigada a se afastar temporariamente de Tori, a ansiedade crescente da jovem se torna um fator disruptivo em seu cotidiano – o que não é aliviado pela necessidade de passar este período trancada em um galpão enquanto monitora o crescimento da plantação de maconha de seus empregadores.
Extraindo tensão a partir da situação específica vivida pela personagem e dos esforços de Tori para encontrá-la, os Dardenne deixam um pouco de lado os estudos de personagem que caracterizam tantos de seus filmes (O Filho, O Silêncio de Lorna, O Garoto da Bicicleta, O Jovem Ahmed) e investem num roteiro mais preso a incidentes e a uma trama, o que tende a enfraquecê-los (como em A Garota Desconhecida).
Por outro lado, não há obra dirigida por eles que não mereça ser assistida e não é diferente com Tori & Lokita, que ainda traz um daqueles desfechos que o espectador, querendo ou não, carrega consigo ao sair da sala de projeção.
28) Inspirado num caso real, The Silent Twins gira em torno das gêmeas June e Jennifer Gibbons, que ainda crianças tomaram a decisão de só conversarem entre si, negando-se a falar com qualquer outra pessoa – incluindo seus pais e irmãos. Com o passar dos anos, esta dinâmica pouco saudável começou a se refletir em um comportamento de agressividade mútua que também encontrou ecos em suas ações públicas, culminando numa condenação que as enviou para um hospital psiquiátrico até que fossem consideradas “sãs”; na prática, uma possível prisão perpétua.
Vividas na infância por Leah Mondesir-Simmonds e Eva-Arianna Baxter e na fase adolescente e adulta por Letitia Wright e Tamara Lawrance (que criam uma continuidade notável das personagens em períodos distintos da vida), as irmãs Gibbons são figuras naturalmente fascinantes por sua condição e história trágicas, mas também pelo mistério que representam: que fenômeno psicológico poderia explicar uma co-dependência tão absoluta? Por que a dinâmica de dominância entre elas funcionava daquele modo? Os impulsos destrutivos que demonstravam era sintoma ou causa de sua condição? Em certos momentos durante a projeção de The Silent Twins, me vi desejando que aquela história estivesse sendo apresentada em um documentário em vez de em uma ficcionalização que inevitavelmente simplificaria a complexidade psicológica do caso e, em nome de uma catarse emocional, alteraria eventos para adaptá-los às necessidades dramáticas do projeto - e não há como negar que as duas coisas ocorrem aqui.
Por outro lado, a diretora polonesa Agnieszka Smoczynska (responsável pelo ótimo A Atração) expande plasticamente o escopo do roteiro de Andrea Seigel (escrito a partir do livro da jornalista Marjorie Wallace) ao criar uma lógica visual que reflete o contraste entre a vida interior das meninas e sua experiência com o mundo externo, começando já nos créditos iniciais que envolvem stop-motion (técnica que se tornará recorrente ao retratar as histórias criadas pelas irmãs) e se mantendo durante boa parte da narrativa, contrapondo as cores quentes da imaginação das gêmeas à frieza do que vivem fora desta.
Importante também ao denunciar a decisão judicial absurda que tanto custou a June e Jennifer Gibbons, The Silent Twins não deixa de enxergar no racismo prevalente na sociedade britânica um fator fundamental na patologia das personagens-título, mas seu interesse social no que diz respeito às experiências das irmãs acaba empalidecendo diante da fascinação psicológica que estas exercem – e que ao final das contas o longa não possa oferecer respostas definitivas sobre este mistério é um desapontamento como exercício de dramatização. O que novamente me faz desejar ter descoberto esta história em um documentário.
29) Felice Lasco (Pierfrancesco Favino) é um homem de meia-idade que, depois de 40 anos vivendo no Cairo, retorna a Nápoles para visitar a mãe idosa. Chocado ao ver as condições em que esta se encontra depois de ter sido obviamente enganada para se livrar do apartamento no qual morava, o sujeito vê o que deveria ser uma breve viagem se transformando em uma longa estada, envolvendo-se aos poucos com os esforços do pároco local, Luigi (Francesco Di Leva), para livrar a vizinhança da influência violenta do líder criminoso Oreste Spasiano (Tommaso Ragno) – que, na juventude, era como um irmão para o protagonista.
Escrito por Mario Martone e Ippolita Di Majo a partir do livro de Ermanno Rea, Nostalgia é um estudo sobre um homem que se tornou um estrangeiro em sua própria terra, que se afastou por tanto tempo (e tão completamente) daquilo que começou a defini-lo como indivíduo que agora, décadas depois, enfrenta dificuldades para compreender que a realidade da sua juventude ficou no passado e que suas expectativas presentes são um mero resultado de – sim – nostalgia. Fotografado com uma razão de aspecto oscilante que corresponde aos dias de hoje (2.35:1) e à adolescência de Felice (1.33:1), quando o passado também surge em tons consideravelmente mais quentes que refletem um saudosismo que se tornou quase fantasia, o filme é hábil ao retratara melancolia do personagem e ao criar uma aura quase mística em torno de Oreste, cuja fama é a de um autêntico Keyser Söze italiano. O lamentável é que, dispostas as peças da narrativa, Martone não consegue fazer muito a não ser se repetir por quase duas horas enquanto Felice insiste em percorrer os mesmos caminhos e cometer os mesmos erros.
Com isso, o sentimento que passa a dominar a obra é mesmo de nostalgia e mais de impaciência. Ao menos, por parte do espectador.
30) A sensação de calor sufocante é o que fica ao fim de Stars at Noon, novo trabalho da veterana cineasta francesa Claire Denis. Ambientado na Nicarágua em meio à pandemia de COVID (curiosamente, este é apenas o segundo filme do Festival de Cannes 2022 no qual máscaras faziam parte do cotidiano dos personagens), o filme é povoado por personagens cobertos de suor e tomados pela tensão – uma atmosfera que, apesar de bem construída, não é o suficiente para criar uma narrativa das mais eficazes.
Confuso ao manter os pontos principais do livro de Denis Johnson (situado na Nicarágua sandinista dos anos 80), mas transportá-los para os dias contemporâneos, o longa soa anacrônico tanto como produção de época quanto atual, sugerindo uma indefinição por parte do roteiro escrito a seis mãos (pela cineasta, por Andrew Litvack e Léa Mysius) que contamina não só a trama, mas o desenvolvimento e a dinâmica dos personagens.
O que é uma pena, já que Margaret Qualley oferece uma performance corajosa, crua e intrigante como a protagonista Trish: uma norte-americana que viajou para Manágua com o objetivo de realizar reportagens políticas e acabou tendo seu passaporte apreendido, permanecendo presa no país por não ter dinheiro ou os documentos necessários. Prostituindo-se para conseguir se manter de algum modo, ela é a definição de sobrevivente, fazendo tudo que julga necessário para alcançar o objetivo de fugir – e, assim, é também um equívoco que ela se coloque numa posição subalterna, de “mocinha apaixonada”, ao se envolver com um britânico misterioso (Joe Alwyn).
Sem parecer saber o que fazer com a ótima personagem que criou, Stars at Noon se preocupa mais com sua atmosfera do que com qualquer outra coisa, sendo lamentável que o calor enfrentado por sua (anti?)heroína resulte num trabalho tão frio em seus resultados dramáticos.
27 de Maio de 2022