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Festival de Berlim 2023 - Dia #01 Festivais e Mostras

Dia 01

1) A glamourização da canalhice corporativa é um fenômeno estranho, mas popular. Para cada bilionário que atingiu este status através de práticas de mercado desleais, nepotismo e exploração de trabalho escravo há milhares de fãs obcecados com cada pérola de imensa sabedoria tuitada por Elon Musk ou em mitificar Steve Jobs, que era infinitamente melhor como (auto)marqueteiro do que como inventor – um trabalho que ele deixava para Steve Wozniak e seus engenheiros, optando apenas por assumir a fama pelos produtos em si.

Por mais que pareça acreditar ser uma visão crítica deste universo, BlackBerry é esse fandom em formato de filme.

Dirigido por Matt Johnson a partir do roteiro que assinou ao lado de Matthew Miller (ambos adaptando o livro de Jacquie McNish e Sean Silcoff), o longa se propõe a contar a história do nascimento do smartphone e do primeiro aparelho de sucesso a vender este conceito, justamente o produto do título (e nunca é bom quando o título de uma obra é uma marca registrada). Iniciando a narrativa no longínquo ano de 1996, o filme nos apresenta à dupla formada por Mike Lazaridis (Jay Baruchel) e seu amigo de infância Doug Fregin (o diretor Matt Johnson), que se preparam para uma reunião de negócios com um executivo de uma empresa de tecnologia de médio porte, o explosivo Jim Balsillie (Glenn Howerton). Depois de alguns desencontros, os três acabam se tornando sócios e atraem o interesse de uma das principais companhias telefônicas dos Estados Unidos, transformando o BlackBerry num êxito colossal que chegaria a dominar quase metade do mercado até ser demolido pelo iPhone da Apple.

Tentando desesperadamente fazer graça a partir do contraste entre as personalidades dos três personagens principais, o roteiro se esforça para se estabelecer como uma espécie de versão de Silicon Valley caso esta série hilária tivesse a direção de Adam McKay – mas o máximo que consegue é soar (em seus melhores momentos) como uma esquete interminável do Saturday Night Live, começando das caracterizações físicas dos personagens até chegar ao senso de humor frequentemente ultrapassado que ainda acha que, em 2023, apenas apresentar alguém como nerd ou retratar estes indivíduos mencionando Star Wars ou assistindo a Caçadores da Arca Perdida enquanto recitam os diálogos é uma piada divertidíssima. Com isso, somos forçados a ouvir duzentas referências gratuitas à cultura pop, já que Johnson faz questão de quase pausar a projeção para que observemos uma carteira de velcro com estampa das Tartarugas Ninjas aqui ou vejamos que a primeira mensagem enviada pelo smartphone foi uma citação direta do que Graham Bell disse ao demonstrar o telefone pela primeira vez (um fato que o roteiro julga o espectador burro demais para conhecer, já que traz um personagem explicando a brincadeira histórica).

Há também, claro, uma dose considerável de xenofobia em BlackBerry, que parece julgar o ódio de Lazaridis pela China uma característica admirável (eles até tentam disfarçar isto ao restringir os diálogos à qualidade dos produtos fabricados naquele país, mas o desprezo no tom do protagonista é inquestionável, sendo validado por uma fala do amigo sobre como o selo chinês é “a marca da besta”). Do mesmo modo, Johnson erra de forma grosseira não só como diretor, mas como ator, transformando Doug em uma figura insuportável cuja irresponsabilidade é explorada sem sucesso como fonte de humor. E o que é pior: o cineasta claramente enxerga no sujeito algum tipo de modelo ao apresentar sua decepção com o profissionalismo alheio como algo louvável que se contrapõe à mentalidade predadora exibida por Jim Balsillie.

O problema é que, além de não existirem apenas estes dois extremos, o longa não é capaz nem de condenar com veemência os abusos éticos cometidos por este último, já que sua postura combativa e agressiva é apresentada como o ingrediente que faltava para o sucesso da empreitada – numa romantização reprovável da cultura de abuso no ambiente de trabalho. Ao mesmo tempo, BlackBerry tenta encontrar algum componente humano ao comentar como os pobres bilionários acabam perdendo o prazer que sentiam quando fundaram a empresa, o que é se torna ainda mais trágico quando consideramos que aparentemente ninguém ali tem qualquer traço de existência fora do escritório, já que nenhuma menção é feita às vidas pessoais dos personagens.

Um pouco mais interessante é perceber o impacto da nova tecnologia sobre o cotidiano da sociedade e observar como gestos como digitar com os polegares, que se tornariam tão naturais quanto outros usados há milhares de anos, na realidade não eram tão intuitivos quanto poderíamos supor. (Ou talvez sejam e o roteiro tenha inventado a cena com o executivo interpretado por Saul Rubinek.) Lamentavelmente, até neste aspecto Matt Johnson insiste em martelar o espectador ao usar de forma desnecessária algumas sequências nas quais simula vídeos registrados nos anos 90 numa esperança de que isso traga mais autenticidade ao seu filme (não traz). Na maior parte da projeção, contudo, BlackBerry se resume a repetir um ciclo que envolve os funcionários da empresa procrastinando enquanto assistem a um filme ou jogam videogames na rede interna até serem confrontados por algum executivo (Balsillie ou o COO vivido por Michael Ironside), entrando na linha por poucas cenas até voltarem aos hábitos antigos.

Escalando comediantes nos principais papeis, Johnson demonstra seguir à risca a cartilha criada por Adam McKay em A Grande Aposta ao copiar também sua câmera na mão, seus zooms súbitos e até mesmo planos nos quais algum personagem sai de foco, falhando em notar que, ao contrário da recessão provocada por uma das maiores fraudes especulativas da história do capitalismo, a trajetória do BlackBerry não é das mais curiosas, sendo sua decadência apenas um exemplo de um criador que, depois de inovar, prendeu-se à sua invenção a ponto de parar no tempo.

No final das contas, o que o filme traz é um bando de executivos babacas mentindo uns para os outros e arriscando o sustento de milhares de funcionários por se julgarem acima da lei. E que, pecado maior, são profundamente entediantes.

2) Os corredores longos e com luzes frias transmitem uma impressão errada sobre o lugar, que oferece calor humano, solidariedade e, às mais felizardas, esperança no interior de seus consultórios. Rodado em uma imensa clínica ginecológica de Paris, Nosso Corpo é um documentário que conta com sua parcela de dores e lágrimas, mas em essência é uma obra que celebra a empatia e ressalta como a Medicina deveria ser uma profissão dominada por indivíduos mais preocupados com o Outro do que com interesses corporativos e particulares.

Dirigido e fotografado por Claire Simon (que também opera a câmera na maior parte do tempo; algo fundamental para preservar a integridade emocional das pacientes), o filme tem um foco definido: acompanhar consultas e, em alguns casos, procedimentos cirúrgicos ocorridos na clínica, indo de mulheres em busca de um aborto (oferecido pelo sistema público de saúde do país) a outras determinadas a engravidar, passando por pacientes afetadas por casos graves de endometriose e câncer de mama – passagens pesadas que são equilibradas por um parto cercado de extrema gentileza. Evitando qualquer tipo de editorialização através de narrações desnecessárias (que ocorrem apenas nas duas pontas da projeção e por razões compreensíveis), Simon nos apresenta não só às mulheres que buscam ajuda no local, mas aos médicos que as recebem, resultando em interações moldadas pelo motivo da consulta e também pelas personalidades dos envolvidos. (Há um profissional, por exemplo, que exibe a divertida mania de escrever e desenhar tudo que explica, seja isto necessário ou não.)

Além disso, como o documentário cobre de partos a tratamentos paliativos para pacientes terminais, toda a dimensão da experiência humana acaba sendo refletida em algum momento, sendo fascinante estudar os contrastes entre as reações das personagens, que podem expressar pavor diante de tudo ou uma resignação tocante. Em todos os casos, porém, algo se mantém constante: a humanidade naquelas conversas, que abandonam moralismos baratos ou elementos religiosos irrelevantes às questões de saúde e se concentram na tentativa de ajudar.

Em dois instantes, por exemplo, vemos o mesmo médico atendendo mulheres trans em fases distintas de sua transição: uma jovem de 17 anos que deseja iniciar seu tratamento hormonal e uma mulher de meia-idade que está atingindo a idade na qual deverá interrompê-lo para evitar riscos à saúde – e nas duas consultas há debates sobre questões médicas e, igualmente importante, inseguranças pessoais que precisam ser dirimidas. (A propósito: o tratamento também é bancado pelo sistema público de saúde francês.) No caso da adolescente, aliás, um dos contratempos reside na resistência de seu pai para aceitar a identidade da filha, o que a impede de seguir condutas que exigem a autorização de ambos genitores (a mãe da garota, por outro lado, a acompanha na consulta e demonstra apoiá-la).

A presença ou ausência de acompanhantes, vale apontar, é igualmente reveladora: se aqui vemos uma adolescente em busca de aborto depois que o namorado se negou a assumir a criança ou mesmo a ajudá-la a encerrar a gravidez, ali testemunhamos o afeto de um casal que se submete a um tratamento fertilizante; se aqui uma jovem chora ao admitir que as dores durante o sexo a fazem sentir culpa em relação ao marido com o qual se casou há poucos meses, acolá é uma mulher que passou por um parto complicadíssimo e excruciante que desabafa e é consolada pela própria diretora.

No entanto, Simon não fecha os olhos para os problemas da clínica (e do sistema hospitalar como um todo) ou idealiza a profissão, incluindo, em certo ponto, os protestos feitos diante do estabelecimento por pacientes determinadas a denunciar abusos (sexuais ou psicológicos) sofridos nas mãos de médicos enquanto ali se encontravam internadas.

Dito isso, o elemento mais admirável de Nosso Corpo reside na honestidade de sua diretora, que, ao ser diagnosticada com câncer de mama durante as filmagens, não hesita em se expor – física e mentalmente – da mesma maneira com que suas “personagens” o haviam feito. De um ponto de vista puramente narrativo, aliás, o triste diagnóstico traz nova dimensão ao projeto ao torná-lo ainda mais pessoal, sendo revelador, por exemplo, como Simon inclui um longo plano de uma parede (algo que não havia feito até então) logo depois de sua conversa com o oncologista, simbolizando assim seu estado de espírito com economia.

Culminando em uma longa conversa entre uma médica e uma antiga paciente cujas possibilidades de tratamento já se esgotaram, Nosso Corpo cria, ao longo de suas quase duas horas e cinquenta minutos, uma tapeçaria do que temos de mais bonito, de mais frágil, de mais desesperador e, não menos importante, de mais inspirador.

3) Há alguns filmes disputando espaço dentro de Someday We´ll Tell Each Other Everything, da alemã Emily Atef: há um retrato sobre os choques experimentados pelos cidadãos da antiga Alemanha Oriental (especialmente aqueles que residiam nas pequenas cidades) durante o processo de reunificação; há um estudo de personagem sobre uma jovem inquieta que não sabe o que fazer com esta inquietação; e há um romance envolvendo a garota de 19 anos de idade e um homem de 40. Destes, o melhor é o primeiro – e também o que ganha menos atenção, o que é uma pena.

Adaptado de um livro de Daniela Krien, o roteiro co-escrito por esta e pela diretora se passa no verão de 1990 e nos apresenta a Maria (Marlene Burow), que mora com o namorado Johannes (Cedric Eich) no sótão da casa da família do rapaz. Sem se interessar pelos estudos, a jovem prefere passar o tempo lendo à beira do rio e, certo dia, depois de quase ser atacada pelos cães do fazendeiro vizinho Henner (Felix Kramer), uma atração súbita se manifesta entre os dois, dando origem a encontros sexuais de natureza violenta que despertam a excitação da garota, que expressa o desejo de assumir a relação com o sujeito – que, mesmo apaixonado, resiste à ideia por acreditar não ter nada a oferecer à amada.

A ideia do romance sabotado pelas inseguranças de um homem pintado como um alcoólatra cheio de ódio por si mesmo e que insiste que a parceira irá apenas se desapontar e abandoná-lo é certamente o elemento mais aborrecido de Someday We´ll Tell Each Other Everything (o título vem de “Os Irmãos Karamazov”, de Dostoiévski, que Maria lê durante boa parte do filme) – principalmente por concordarmos com o diagnóstico de Henner, cujo sofrimento é visto como algo romântico pela narrativa quando, na realidade, é apenas enfadonho e sinal de tremenda imaturidade. Um pouco mais instigante é a dinâmica sexual estabelecida entre o casal, que na maior parte das vezes tem início de maneira lenta e delicada até ser subitamente substituída por uma postura que soa mais como raiva do que tesão – algo que, como já dito, desperta algo em Maria.

Mas o quê? Este talvez seja o maior problema do longa, que jamais permite que o espectador aprenda o que quer que seja sobre a personagem além de seu amor por Henner. O que ela pretende fazer com a própria vida? Seu amor por Johannes é (ou era) genuíno? E o que a atrai em Henner além do sexo: um desejo de protegê-lo de si mesmo? A excitação do tabu? Talvez este seja um problema da adaptação em si, já que um livro pode revelar diálogos internos dos personagens que aqui se encontram ausentes, mas é decepcionante que cheguemos ao desfecho sabendo exatamente o mesmo sobre Maria que sabíamos no início.

Por outro lado, Atef adota uma abordagem bem mais eficaz ao lidar com os sentimentos conflituosos despertados pela queda do muro, que abriu o mundo para a Alemanha Oriental, mas também ampliou seus problemas econômicos depois da adoção do marco alemão. Buscando apegar-se à sua identidade cultural à medida que as novidades tecnológicas do ocidente começam a conquistar seus jovens, aquelas pessoas têm consciência de que as mudanças são inevitáveis, mas não compreendem como abraçá-las sem abandonar tudo que conhecem – e há uma passagem específica em que todos cantam uma música que Maria aprendeu num acampamento comunista de verão que resume este dilema de modo tocante.

Mas que logo dá lugar a Henner e sua autopiedade irritante.

19 de Fevereiro de 2023

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Sobre o autor:

Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.
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