Dia 04
11) Entre todos os filmes da mostra competitiva do Festival de Berlim 2023 exibidos até agora, The Survival of Kindness tem a sequência de abertura mais marcante: preenchendo a tela com uma maquete que exibe uma cena de massacre, com figuras caídas no chão e outras sendo perseguidas, a câmera se afasta lentamente até revelar indivíduos com horrendas máscaras de gás posicionados ao lado da mesa e conversando através de grunhidos incompreensíveis – até que um deles pega uma faca e parte um imenso pedaço do suposto diorama, que descobrimos então se tratar de um bolo. Ao enfocar este simples ato, o cineasta holandês Rolf de Heer estabelece as bases alegóricas de seu novo trabalho, criando uma narrativa que só amplia seu impacto à medida que somos apresentados à protagonista, Mulher Negra (é assim que é identificada pelos créditos), que é abandonada no meio do deserto presa em uma pequena jaula.
Situando sua câmera no interior da gaiola ao lado da personagem, de Heer e o diretor de fotografia Maxx Corkindale imediatamente posicionam o espectador na mesma situação da mulher, reforçando uma identificação que já era inevitável em função de sua situação de indiscutível vulnerabilidade. Com isso, experimentamos sua angústia enquanto tenta se libertar, sofrendo os efeitos dos dias de intenso calor e das noites dominadas pelo frio até encontrar uma solução graças à sua notável resiliência.
Este, claro, é apenas o primeiro passo de uma longa jornada que atravessará desertos, florestas e montanhas enquanto a heroína busca manter sua liberdade recém-conquistada em um mundo pós-apocalíptico no qual uma pandemia parece ter poupado apenas a população negra – uma sorte que é revertida graças às tendências colonialistas e escravagistas dos caucasianos, que logo se armam, formam milícias e submetem as minorias ao trabalho forçado.
Praticamente livre de diálogos (as poucas falas além dos grunhidos surgem em uma língua jamais traduzida por legendas), o filme é ancorado pela performance admirável da estreante Mwajemi Hussein, que consegue o feito de ilustrar a personalidade vivaz da Mulher Negra sem depender de nada além de suas expressões faciais e corporais, evocando até mesmo o senso de humor da personagem através de suas reações – e ao visitar um museu povoado por bonecos representando figuras de autoridade, ela observa aqueles ultrapassados agentes do poder estabelecido com um olhar que combina desprezo e satisfação por sabê-los extintos (ao menos, naquele antigo modelo de sociedade). Ao mesmo tempo, é curioso notar como ela não consegue se libertar totalmente da hierarquia sócioeconômica abusiva que conhecia, o que a leva a fazer um aceno de cabeça automático, demonstrando respeito, ao tomar o chapéu de um manequim vestido como uma senhora abastada.
Mas a característica mais marcante da protagonista – e que reflete o título do filme – é sua humanidade: mesmo brutalizada, faminta, exausta, amedrontada e perseguida, ela demonstra compaixão diante de tragédias alheias, encontrando tempo para enterrar um cadáver semidecomposto do qual removeu um par de sapatos e para completar o trabalho de um velho aborígene que preparou as covas de todos os seus pares antes de falecer deitado em uma sepultura aberta. Além disso, ao se mostrar capaz de ainda sorrir ou de experimentar paz diante de um lago tranquilo enquanto ouve o canto dos pássaros, ela sugere que a mera sobrevivência não se justifica por si só; é preciso sobreviver por algo.
Não é possível ignorar, claro, que por se passar em solo australiano e ser dirigido por de Heer, que estabeleceu uma parceria memorável com o ator aborígene David Gulpilil (morto no fim de 2021 em função de um câncer de pulmão), The Survival of Kindness conta com um subtexto histórico e político carregado; ao mesmo tempo, a lógica colonialista é infelizmente tão recorrente na trajetória da humanidade (ganhando apenas novos contornos no capitalismo contemporâneo) que é possível projetar, no longa, realidades de praticamente qualquer canto do planeta.
Não sendo acaso, portanto, que seu título surja em várias línguas no início da narrativa – mas se isto representa um sinal de otimismo por parte do cineasta ou apenas um desejo pouco provável, é difícil dizer.
12) Manodrome aspira ser Taxi Driver, mas é incoerente a ponto de mal conseguir ser “Tax”; pretende tocar em temas desenvolvidos com perfeição por Clube da Luta, mas o único toque que realiza é o masturbatório. Em teoria, este filme escrito e dirigido por John Tregove se propõe a analisar a cultura incel e as raízes da radicalização de tantos homens, mas é difícil querer discursar sobre algo quando não se sabe nem mesmo pronunciar a palavra “raiz”.
Já expondo sua ambição de figurar na mesma conversa que o clássico de Martin Scorsese (algo que, pelo visto, conseguiu – mesmo que não pelas razões desejadas), o filme abre a narrativa com a imagem de Ralphie (Jesse Eisenberg), um motorista de aplicativo, observando pelo espelho retrovisor uma passageira que amamenta um bebê (uma ponta de Riley Keough, que inexplicavelmente produz esta bomba). Prestes a se tornar pai, o sujeito divide um apartamento minúsculo com a namorada Sal (Odessa Young) e passa a maior parte do tempo trabalhando em seu carro ou malhando em uma academia local. É então que um amigo o apresenta ao grupo de apoio que dá título ao longa, é formado só por homens e liderado pelo Pai Dan (Adrien Brody), que logo pode ser ouvido fazendo discursos sobre como os machos precisam “retomar seu poder” e “fugir da ginosfera”.
“Estou celibatário há dez anos; nas últimas semanas, voluntariamente”, diz um integrante do grupo, revelando um dos motivos para se integrar tão bem à turma de inúteis – e a esta altura, com Manodrome ainda em seu primeiro ato, há a esperança de que o roteiro vá de fato explorar as causas das frustrações de tantos homens que, na maioria brancos, se enxergam à margem da sociedade e sem quaisquer perspectivas reais na vida, substituindo as ambições que provavelmente jamais realizaram por discursos raivosos nos quais culpam a sociedade em geral e as mulheres em particular por seu fracasso, ajudando a enriquecer picaretas sem escrúpulos como Jordan Peterson ao ser convencidos por estes de que a solução reside na misoginia.
Porque isto é mais fácil do que se esforçarem para ser homens melhores.
Eternamente infantilizados pela própria incapacidade de enxergar o mundo com qualquer complexidade, estes incels querem acima de tudo encontrar uma figura paterna que possam admirar, que os assegure de que são tão especiais quanto acreditam ser e que apenas criaturas frias, superficiais e interesseiras (leia-se: mulheres) seriam capazes de negar o reconhecimento que lhes é devido, recompensando-os com sexo e devoção. É este vácuo paternal que acaba sendo preenchido por elementos como Peterson, embora o personagem que deveria representá-lo, Pai Dan, seja construído de forma tão absurda pelo roteiro que qualquer paralelo se torna impossível (duvido muito que o professor canadense abriria sua casa para abrigar seus pupilos).
Do mesmo modo, em vez de se aprofundar nos aspectos psicológicos, emocionais e intelectuais do protagonista, Manodrome opta por resumi-lo a uma série de traços unidimensionais associados a homens que adotam misoginia e homofobia como atestados de sua macheza, desde a obsessão com o próprio corpo (com direito a múltiplas fotos diante do espelho enquanto contraem os músculos) até a necessidade constante de notar e manifestar repulsa por todos os gestos de afeto homossexuais ao seu redor, o que frequentemente é sinal da repressão dos próprios desejos. Não satisfeito, o filme ainda retrata o personagem como ladrão, sugere que tem alucinações e inclui um trauma com seu pai, basicamente jogando todas as tintas na tela para ver se alguma imagem surge dali (e a performance caricatural e repleta de tiques de Jesse Eisenberg não ajuda).
Todas as falhas de Manodrome, portanto, só acentuam como Taxi Driver estava adiante de seu tempo, já que 47 anos depois segue como um dos estudos mais acertados sobre a psicologia incel (décadas antes de o conceito ser cunhado). Além disso, Scorsese e De Niro comprovavam também como um protagonista moralmente repugnante não precisa resultar em uma narrativa idem – ao contrário: em mãos hábeis, pode ser ainda mais interessante.
Como o próprio Eisenberg comprovou em A Rede Social.
22 de Fevereiro de 2023
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