Dia 06
17) Já se passaram alguns dias desde que assisti a Propriedade, escrito e dirigido pelo pernambucano Daniel Bandeira, e venho pensando sobre questões específicas por ele despertadas e que me mantêm incerto sobre como sentir. Isto, por si só, já seria o suficiente para admirar o filme; não é todo dia que uma obra produz este efeito – e o fato de Propriedade ser também um ótimo exercício de gênero que funcionaria mesmo sem seus subtextos temáticos é um atestado da eficiência de seu realizador.
Abrindo a projeção com uma cena da violência cotidiana dos grandes centros urbanos brasileiros, o longa nos introduz ao trauma que levou a artista Teresa (Malu Galli) a se isolar em seu luxuoso apartamento à beira-mar. Pressionada pelo marido a acompanhá-lo em uma viagem até a fazenda da família, ela cede contrariada e temerosa mesmo com a garantia feita por Roberto (Tavinho Teixeira) de que o novo carro da família, moderno e blindado, representa segurança absoluta. O que eles não sabem, porém, é que os trabalhadores da fazenda, que vinham sendo explorados há anos, lidaram compreensivelmente mal com a notícia de que a propriedade seria convertida em hotel e seus empregos seriam extintos (sem qualquer compensação) para que os antigos patrões pudessem lucrar um pouco mais – e minutos depois de chegarem ao local, Roberto é ferido e Teresa busca refúgio no único espaço protegido que conhece: o carro.
Tenso, claustrofóbico e dinâmico, o filme conta com um roteiro inteligente que encontra justificativas plausíveis para situações extremas, começando pela explicação simples, mas engenhosa, para o fato de Teresa não conseguir ligar o carro. Aliás, um dos prazeres em Propriedade é testemunhar as estratégias de ataque e defesa das duas partes, já que, de modo geral, todos agem com inteligência, impedindo que o espectador antecipe o resultado de cada plano concebido pelos personagens. Da mesma forma, Propriedade faz um ótimo trabalho ao estabelecer as personalidades de cada um dos trabalhadores e suas motivações particulares, evitando que se tornem apenas um grupo uniforme que simbolize isso ou aquilo, destacando-se, por exemplo, Antônia (Zuleika Ferreira), que descobre em si uma capacidade de liderança insuspeita; Dimas (Samuel Santos), cuja insatisfação como trabalhador se une às suas dores como tio de um rapaz vitimado pela brutalidade contínua do capataz da fazenda; e João da Cruz (Edilson Silva), que resiste à violência escancarada, mas é pragmático o bastante para perceber quando certos caminhos já não permitem retorno. Para completar, é claro que a narrativa jamais teria a mesma força caso não contasse com a performance intensa de Malu Galli, que evoca o horror crescente da protagonista e a força que começa a descobrir em si para tentar sobreviver.
Dito isso, o horror em questão não surge do nada e tampouco tem origem sobrenatural; ao contrário, suas raízes são antigas e bem estabelecidas, sendo representadas pela autêntica Casa Grande que, plantada no meio da fazenda, funciona como uma ferida histórica que se mantém aberta, lembrando a todos os funcionários como todo aquele poder econômico foi e segue sendo construído às custas da exploração do labor alheio – e o fato de os patrões reterem os documentos dos trabalhadores e de os manterem endividados é uma variação pouco sutil de uma forma de escravidão que permite aos empregadores uma (auto)negação plausível para o abuso que cometem.
Não é à toa que, repetindo uma expressão que as classes médias urbanas viriam a abraçar por décadas ao se referirem às empregadas domésticas que mantinham em serviço quase 24 horas por dia e sete dias por semana, Roberto – opa, perdão: doutor Roberto – tenta demover os trabalhadores rebeldes argumentando que “nossas famílias são amigas há tanto tempo”. Uma “amizade”, evidentemente, centrada na exploração de uma pela outra e que condena a menos afortunada a ver suas crianças brincando com carrinhos feitos de pedaços de tijolo enquanto a abastada pode trocar o carro de verdade (e blindá-lo) todos os anos.
E aqui cabe dizer que não há dúvidas a respeito de como Propriedade e seu diretor se sentem em relação a todas estas questões (detalhes como o “doutor Roberto” comprovam inclusive o julgamento por parte da obra); há razões em abundância para que compreendamos a posição na qual os funcionários da fazenda são colocados. No entanto, em função da estrutura narrativa adotada, que inicia a projeção colocando o espectador ao lado de Teresa em um momento traumático e nos mantém com ela no carro posteriormente durante boa parte da ação, é quase impossível evitar que a vulnerabilidade da mulher e o terror que experimenta resultem em um peso maior conferido à sua experiência – e durante quase todo o filme me vi lutando contra este e me esforçando para encontrar desculpas para os atos mais extremos do grupo de trabalhadores.
Talvez a pergunta de Bandeira seja: “mas deveríamos desculpá-las?”. Afinal, a violência cometida em particular por Dimas e seu sobrinho é inquestionável. Além disso, Teresa, ao contrário de Roberto, não é responsável pelos abusos trabalhistas (um eufemismo) cometidos pelo marido, certo? Mas é beneficiária. Se pode ser dar ao luxo de deixar de trabalhar para lidar com seus problemas psicológicos sem sair de sua casa confortável, isto se deve à fortuna que o marido amealhou graças ao suor alheio – e manter os olhos fechados para a origem desta é no mínimo conveniente.
O que – voltemos ao ponto – não é desculpa para o que ela sofre. E, no entanto (percebem como o filme me colocou em parafuso?), o tipo de violência visto em Propriedade, protagonizado por trabalhadores contra seus patrões exploradores, é incomum (o que é até surpreendente, convenhamos), ao passo que aquele sofrido por estas pessoas é bem comum e real – como comprovam os mais de 200 nordestinos que eram mantidos em condição análoga à escravidão em vinícolas do Rio Grande Sul e que foram libertados recentemente pela Polícia Federal.
Mas eu gostaria que Teresa superass...
... e lá vou eu de novo.
Propriedade é um filme notável.
18) Um dos melhores títulos da edição 2023 do Festival de Berlim, o mexicano Tótem é um filme que extrai sua força de sua capacidade de enxergar o humor e a dor no cotidiano de uma família. Escrito e dirigido por Lila Avilés, o longa observa de forma sensível as relações entre mães e filhas, tias e sobrinhas, o avô mal humorado e os netos sapecas e entre um jovem em estado terminal de câncer e a enfermeira que suas irmãs contrataram para acompanhá-lo em seus últimos meses de vida, ambientando toda a sua ação em um único dia: aquele em que o (provavelmente último) aniversário do rapaz será celebrado e que coincide com o de sua única filha, cujo olhar ancora a narrativa.
Interpretada pela pequena Naíma Sentíes, Sol abre a projeção dividindo risos com a mãe, com quem prepara uma apresentação para a festa dedicada ao pai, mas esta sua alegria logo cederá lugar à melancolia ao chegar à casa que este divide com as tias e o avô da menina – não porque se trate de um ambiente desprovido de afeto (ao contrário), mas sim em função da ansiedade de não poder ver o pai adoentado, que se mantém no quarto a maior parte do tempo. Enquanto ela encontra maneiras de preencher o dia até o horário da festa, as adultas correm para acertar os últimos preparativos, que envolvem a decoração de um bolo, retoques na tinta do cabelo e a visita de uma benzedeira.
Mantendo a câmera sempre próxima dos personagens e dividindo com estes os espaços reduzidos da casa (cozinha, banheiro, etc), o diretor de fotografia Diego Tenorio cria um vínculo profundo entre o espectador e aquelas pessoas ao permitir que as acompanhemos em conversas íntimas e ações prosaicas, explorando pequenos instantes que comovem por sua autenticidade: em certo momento, por exemplo, a priminha de Sol, que tem dois ou três anos de idade, vê a mãe gemer de dor ao queimar o dedo no forno e, assustada, reage do modo mais significativo que conhece, declarando repetidamente seu amor por esta. Trata-se de um detalhe que dura poucos segundos, mas revela mais sobre o amor daquela família do que conseguiriam páginas e páginas de diálogos. (Aliás, comparar as relações presentes em Tótem e aquelas vistas no díptico Mal Viver-Viver Mal, do português João Canijo, é ilustrativo do imenso poder do Cinema para conjurar realidades e dinâmicas distintas.)
Encontrando espaço para desenvolver cada membro daquela família em apenas 95 minutos de narrativa, o filme não se preocupa em investir numa trama convencional por saber que há drama e comédia suficientes nas situações do dia a dia, sejam estas referentes às dificuldades para lidar financeiramente com os cuidados paliativos necessários para minimizar a dor de Tona (Mateo Garcia), seja ao trazer os adultos conversando sobre estes problemas na língua-do-pê para evitarem que as crianças compreendam o que é dito.
E se os universos de Star Wars e da Marvel podem gerar tantos spin-offs, manifesto desde já meu desejo de assistir a um projeto protagonizado pela fantástica benzedeira Lúdica que, vivida por Marisela Villarruel numa sequência que quase rouba o filme, verifica toda a casa da família para se livrar de espíritos malignos e, no processo, talvez vender alguns tupperwares.
Embora ignorado na entrega dos Ursos ao final do evento, Tótem é mais do que uma surpresa; é um cartão de visitas brilhante da cineasta Lila Avilés (depois do também eficiente A Camareira, de 2018), que, sou capaz de apostar, logo estará de volta em outros festivais e competições com obras igualmente sensíveis.
19) E já que mencionei a arbitrariedade das premiações – mesmo aquelas que, definidas por um júri imerso na lógica de um festival, tendem a ser mais coesas -, é preciso apontar como exemplo o Urso de Prata de Melhor Roteiro conferido ao alemão Music, escrito e dirigido por Angela Schanelec e que exibe aspirações bressonianas em seu estilo, mas sem jamais alcançar os resultados de um filme como O Dinheiro, por exemplo.
Tratando seus atores como manequins que importam mais como elementos gráficos do que como intérpretes (algo reforçado pelos diálogos esparsos, cheios de pausas e ditos de modo robótico), a cineasta conta uma história elíptica que, ambientada na Grécia, inspira-se tangencialmente em “Édipo Rei” ao acompanhar o jovem Jon (Aliocha Schneider), que, abandonado ainda bebê, causa acidentalmente uma morte quando adulto e, na prisão, conhece a futura esposa, Iro (Agathe Bonitzer), uma das carcereiras do lugar. Os anos se passam, o casal ganha um filho e, um dia, a mulher descobre o motivo que levou o marido à cadeia, reagindo de forma extrema ao se dar conta de que…
… estou trapaceando. Embora os incidentes principais da narrativa sejam claros, a relação temporal entre estes é algo que em nenhum momento da projeção me ocorreu – e foi somente lendo a sinopse oficial do longa que pude amarrá-los e extrair signific…
… estou mentindo. Mesmo depois de ler a sinopse, falhei miseravelmente em encaixar o que esta descrevia no filme que vi – e até a influência da tragédia de Sófocles é algo que se torna compreensível apenas com algum esforço.
Isto, contudo, não é necessariamente um problema: a beleza da Arte é que não precisa fazer sentido para ter força, sendo capaz de despertar reflexões e sentimentos intensos através de imagens que, abstratas ou não, dizem algo com suas cores, composições, contrastes e, no caso do Cinema, de sua relação com aquelas que as precedem e sucedem. Mas mesmo neste aspecto Music representa uma experiência frustrante, já que, com seus longos planos estáticos e abertos, produz quadros que merecem aplausos por sua elegância estética e nada mais.
De forma similar – e moldada pela composição dos planos -, a montagem investe numa cadência cuja lentidão soa mais como autoindulgência do que qualquer outra coisa. Normalmente, é importante entregar-se ao ritmo de um filme em vez de exigir que este se adeque às nossas expectativas; um esforço que com frequência destranca experiências que podem ser memoráveis. Aqui, no entanto, a impressão é a de que a cineasta está mais interessada em testar os limites do espectador em vez de expandi-los, o que soa (e detesto usar esta palavra ao discutir as motivações de um realizador, mas não consigo encontrar outra para Music) presunçoso.
Apesar disso, eu até compreenderia um reconhecimento pelas ambições narrativas de Schanelec como diretora, mas o prêmio por seu roteiro soa tão sem sentido quanto o filme em si.
20) Em uma discussão sobre os prêmios distribuídos no Festival de Berlim, é inevitável falar sobre o Urso de Prata de Atuação conferido à pequena atriz espanhola Sofía Otero, que, aos nove anos de idade, se tornou a pessoa mais jovem a vencer nesta categoria por 20.000 Espécies de Abelhas – e uma das mais jovens em qualquer outro evento desta relevância (Victoire Thivisol recebeu o prêmio de atriz em Veneza em 1996, por Ponette, quando tinha apenas cinco anos). Aliás, é irônico que, diminuta a ponto de ter dificuldade de carregar o troféu na cerimônia de premiação, Otero pareça carregar o filme inteiro nas costas sem muito esforço.
Iniciando o filme com uma expressão cerrada que se manterá durante boa parte da projeção, a menina interpreta uma criança em profunda crise de identidade de gênero: designada como menino no nascimento e batizada de Aitor, ela passou a se identificar como Lucía e a vestir roupas femininas – uma decisão que seus pais Gorka (Martxelo Rubio) e Ane (Patricia López Arnaiz) parecem aceitar sem muitos questionamentos. Ou melhor: a ignorar, já que tampouco conversam com a filha sobre a questão. Isto, porém, se torna inevitável quando Ane viaja para sua cidade natal com os três filhos a fim de participar de um batizado na família – uma festa na qual Lucía tem a intenção de ir usando um vestido. Ao mesmo tempo, a mulher lida com uma crise em seu casamento e com a ansiedade provocada pelo prazo para entregar uma escultura que garantirá sua contratação como professor em uma escola de arte.
Escrito pela também diretora Estibaliz Urresola Solaguren, 20.000 Espécies de Abelhas não demora a estabelecer um paralelo entre as crises vividas por mãe e filha, apontando a demagogia por parte dos adultos que, lidando com dores e traumas antigos, não parecem notar como estão propagando o ciclo ao criar novos machucados na criança. Sim, de certa forma é um “avanço” que se mostrem dispostos a respeitar a identidade da filha até certo ponto em vez de rejeitá-la (o que, infelizmente, é o mais comum), mas o problema é a existência deste “ponto”, que leva Ane, por exemplo, a apresentar e a chamar a menina por seu nome de batismo diante dos parentes.
O mais grave desta dinâmica, claro, é que falta idade a Lucía (e, consequentemente, maturidade) para compreender a natureza exata de sua angústia: se é capaz de diagnosticar sua dissociação do gênero que lhe foi atribuído ao nascer, mais difícil é entender por que é a única pessoa que conhece a enfrentar este autoquestionamento tão presente em sua mente. Sem ter alguém que lhe explique com sensibilidade o conceito de transexualidade, o que resta a Lucía é o sentimento de não saber quem é – e quando surge (mais uma) discussão sobre seu nome, sua resposta é sintoma significativo desta angústia: “Não me chamem de nada”.
Como é fácil perceber, trata-se de uma protagonista repleta de complexidades e dores profundas; que Otero tenha conseguido evocar todas elas apenas aos sete anos (idade que tinha quando o longa foi rodado) é quase inacreditável. É impressionante, por exemplo, observar como a postura de Lucía se altera aos poucos ao fazer novas amizades durante sua estadia na cidade ou ao conversar com sua tia-avó Lourdes (Ane Gabarain), única pessoa da família a se dispor a conversar de verdade sobre suas ansiedades e que, apicultora, demonstra ter aprendido o suficiente com a diversidade das abelhas para compreender como os humanos não deveriam ser reduzidos a esta ou aquela identidade imutável.
Investigando também a relação problemática entre Ane e sua mãe Lita (Itziar Lazkano), o filme compreende como décadas de cicatrizes mal cuidadas tendem a complicar qualquer discussão familiar, que pode até ter início por um motivo específico, atual, mas logo resulta em escavações do passado que trazem de volta ressentimentos que há muito não eram discutidos. Em contrapartida, a franqueza e a naturalidade infantil comovem pela falta de subterfúgios – e há doçura no modo com que o longa compreende que as brigas entre Lucía e o irmão são provocações infantis naturais e que não impedem que este ofereça seu apoio à irmã ao vê-la sofrendo.
Se por um lado eu desejava ver a congolesa Mwajemi Hussein celebrada por sua performance em The Survival of Kindness, por outro não consigo ver com desgosto a premiação de Sofía Otero por um trabalho que, bastante superior ao filme que o abriga (e que não sabe muito bem como lidar com as questões que se propõe a discutir), eleva o material e cria uma personagem que só precisa ser aceita para pode agir como a criança que é de verdade.
24 de Fevereiro de 2023