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Festival de Berlim 2023 - Dia #07 Festivais e Mostras

Dia 07

21) De um ponto de vista de ambientação, Limbo não poderia estar mais distante do noir: rodado numa região do sul da Austrália dominada por paisagens amplas e rochosas, o filme de Ivan Sen poderia facilmente ser sufocado pelas locações e perder, assim, seus esforços referenciais àquele gênero – e se isto não ocorre, parte do mérito se deve à decisão de rodar o longa em preto-e-branco e outra parte à composição de Simon Baker como um detetive de passado duvidoso que enxerga tudo com cinismo e distanciamento (o que não o impede de fazer seu trabalho).

Escrito, produzido, fotografado, montado e dirigido por Sen (que também compôs a trilha), Limbo é uma obra que obviamente reflete as preocupações temáticas de seu autor, cujas origens aborígenes ditam sua visão dos nativos presentes no filme como indivíduos cuja força é essencial para resistir a um sistema todo voltado para anulá-los como cidadãos e seres humanos. Este descaso se mostrou presente, por exemplo, quando a jovem Charlotte desapareceu há 20 anos, resultando numa investigação policial desinteressada que perdeu o foco assim que todos os suspeitos aborígenes foram descartados – e é para revisar este caso que o detetive Travis Hurley (Baker) vai ao lugarejo, sendo recebido com hostilidade pelo irmão da vítima, Charlie (Rob Collins), e com ceticismo pela irmã da garota, Emma (Natasha Wanganeen).

Surgindo em cena como uma cópia visual do Heisenberg interpretado por Bryan Cranston em Breaking Bad, Baker, um ator que sempre oferece performances interessantes, compõe Travis como um homem exausto não só por seu vício em heroína, mas pela vida. Solitário e introspectivo (ou talvez esta aparente introspecção seja apenas uma compreensível falta de interesse na humanidade), o sujeito tenta fazer seu trabalho da melhor maneira possível considerando-se as circunstâncias, mas não a ponto de insistir para que testemunhas relutantes abram a boca – de certo modo, a recusa destas em compartilhar qualquer informação representa até uma desculpa aceitável para que ele considere o caso encerrado de vez e vá embora.

Esta hostilidade dos locais é um reflexo, diga-se de passagem, do próprio espaço que ocupam, com construções cavadas nas rochas (a Igreja e o hotel de Travis são literalmente criados dentro das pedras) e a aridez do terreno que se espalha por centenas de quilômetros ao seu redor, isolando-os do resto da civilização e criando um microcosmos de conflitos raciais, desconfiança mútua e pobreza compartilhada. Com isso, o filme de Sen funciona ao mesmo tempo como estudo de personagem e como retrato de uma sociedade criada a partir da opressão, da desigualdade e da insistência em encarar os aborígenes como sub-humanos – e que estas duas preocupações se complementem tão bem é uma proeza notável do cineasta e de seu elenco mesmo que a narrativa peque pelo ritmo irregular e por um desfecho pouco satisfatório.

22) Danny  e Michael Philippou são dois irmãos que, criadores de um canal popular no YouTube, marcam sua estreia como diretores de longas-metragens neste terror Talk to Me, que demonstra uma inventividade e uma energia admiráveis que os estabelecem como boas promessas do gênero.

Escrito pelo primeiro em parceria com Bill Hinzman, o roteiro traz um conceito simples, mas inteligente ao refletir a obsessão contemporânea com redes sociais e vídeo virais, concentrando-se em um série de registros no YouTube que, apresentados como os típicos desafios tão comuns em TikToks e afins, envolvem grupos de jovens reunidos em torno de um artefato estranho: uma mão embalsamada. Enquanto alguém é amarrado em uma cadeira, os demais observam enquanto esta pessoa aperta a mão mumificada e diz as palavras presentes no título do projeto, o que imediatamente a leva a enxergar espíritos e a ser possuída por um deles – um elo que deve ser quebrado em poucos segundos para evitar consequências graves e duradouras. E é claro que logo este limite de tempo é desrespeitado, trazendo caos e destruição para o grupo composto por Mia (Sophie Wilde), Jade (Alexandra Jensen), Riley (Joe Bird), Hayley (Zoe Terakes) e Daniel (Otis Dhanji).

Iniciando com um plano claramente inspirado em Boogie Nights, Talk to Me é um exercício competente que explora as convenções do gênero sem permitir que estas soem previsíveis, equilibrando-se bem entre o horror gráfico e o puro suspense, alongando-se em planos que investigam cantos escuros e atirando na tela outros que, mesmo breves, chocam com o que revelam. Sim, os personagens se resumem aos tipos habituais, mas o bom elenco traz certo frescor às suas interações e motivações – com exceção da experiente Miranda Otto, que fica presa ao papel ingrato da mãe que ignora os acontecimentos sobrenaturais até que seja tarde demais.

Extraindo humor de sua premissa absurda sem que isto prejudique seus aspectos mais sombrios, o longa representa uma daquelas experiências que merecem ser compartilhadas em uma sala de cinema. De preferência, numa sessão da meia-noite.

24) Embora eu não tenha apreciado Undine, penúltimo filme do alemão Christian Petzold, seus três longas anteriores (Em Trânsito, Fênix e Barbara) haviam deixado uma impressão bastante positiva que, felizmente, foi recuperada neste seu mais recente trabalho, Afire – e este “tropeço” em 2020 de certo modo reflete a dor e os riscos do processo criativo de um artista, o que talvez não seja totalmente coincidência.

Centrado no escritor Leon (Thomas Schubert), que se encontra no processo de finalização de seu segundo livro enquanto se prepara para uma reunião com seu editor Helmut (Matthias Brandt), o roteiro do próprio Petzold se passa em uma casa localizada numa floresta próxima ao Mar Báltico na qual o sujeito busca se concentrar em uma viagem ao lado do amigo Felix (Langston Uibel). O que a dupla não sabia é que o imóvel havia sido alugado pela mãe deste último à jovem Nadja (Paula Beer), que trabalha vendendo sorvetes na cidade próxima e passa as noites transando – com imenso barulho – com o salva-vidas Devid (Enno Trebs), o que perturba o sono do protagonista que, além disso, se vê atraído pela natureza espontânea e vivaz da garota.

O contraste entre as personalidades de Leon e Nadja, aliás, é resumido perfeitamente pelos figurinos, que contrapõe o vermelho intenso dos vestidos da moça às cores sóbrias e sem vida do escritor, que chega a ir de preto à praia. Incomodado com tudo ao seu redor, o protagonista é encarnado por Schubert como um homem incapaz de relaxar e apreciar o que quer que seja que fuja de sua programação autocentrada, exibindo um egocentrismo que mal se disfarça como responsabilidade profissional. Impaciente e arrogante – duas características que, percebemos aos poucos, servem como escudo para sua insegurança -, Leon é um homem cujo bloqueio criativo é resultado não das interrupções frequentes das pessoas com quem convive, mas de sua resistência às experiências que a vida poderia lhe oferecer.

E o que Afire aponta acertadamente é que escrever é uma tarefa impossível quando o escritor nada tem a dizer.

25) Não costumo discutir questões pessoais, extra-filme, da equipe e do elenco das obras sobre as quais escrevo, mas sinto que devo fazer uma exceção no caso do chinês Green Night, escrito e dirigido por Han Shuai: nos últimos anos, a estrela Fan Bingbing – e não há como descrevê-la de modo mais apropriado do que “estrela”, já que se tornou um dos nomes mais famosos de seu continente – enfrentou problemas sérios com o governo de seu país ao ser acusada de sonegação de impostos, o que a manteve afastada das telas por quatro anos. O que torna esta informação relevante no contexto deste filme é o fato de a atriz ter escolhido, como um de seus primeiros projetos pós-escândalo, uma história que foge da persona inocente que mantinha até então, como se subitamente houvesse desistido de ser Anne Hathaway e abraçado a versão Angelina Jolie.

Infelizmente, o longa que serve de veículo para esta transformação é desastroso.

Aqui, Bingbing interpreta uma imigrante chinesa que trabalha como segurança em um aeroporto de Seul, na Coreia do Sul, depois de ter se mudado para o país para se casar com um sujeito que se revela abusivo. Tentando escapar do marido e precisando de dinheiro, ela se envolve com uma jovem (Lee Joo-young) que transporta drogas e se encontra numa situação perigosa depois de ter decidido vender o produto por conta própria e fugir de seus empregadores. A partir daí, acompanhamos a dupla enquanto é perseguida por traficantes, pelo marido da protagonista e por todo tipo de elemento ameaçador imaginável.

No papel, a ideia de uma obra sobre sororidade, imigrantes, fanáticos religiosos (como o tal ex-marido) e o submundo de Seul parece promissora; na prática, contudo, o roteiro difuso e a direção previsível sabotam a narrativa, que vai perdendo o ímpeto à medida que a projeção avança e se tornando entediante e repetitiva.

E pior: que parece trair qualquer objetivo mais nobre e se entrega à mais barata das explorações. Fan Bingbing, pelo jeito, continua a ser punida por seus tropeços.

25 de Fevereiro de 2023

Sobre o autor:

Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.
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