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Festival de Berlim 2023 - Dias #09 e #10 Festivais e Mostras

Dias 09 e 10

31) Ararat é um filme agressivo sobre pessoas agressivas que não consegue encontrar uma outra forma de analisar as causas de toda esta raiva sem ser através da violência, do rancor e – pior – do tédio. Há, na base da narrativa, um oceano de ressentimentos provocados pelo sexismo e pela natureza agressiva do patriarcado, o que normalmente nos levaria a olhar a situação da jovem protagonista com empatia e compaixão, mas a abordagem do diretor e roteirista estreante Engin Kundag ao retratar a dinâmica da família da garota é tão uniforme no ódio que move a todos que o espectador acaba criando uma profunda antipatia por agressores e vítimas, anulando qualquer propósito construtivo que o filme pudesse ter.

Girando em torno de Zeynep (Merve Aksoy), que retorna à Turquia depois de provocar um acidente de carro com o objetivo de ferir o namorado – ao menos, é disso que a acusam -, o longa acompanha os efeitos de sua presença na relação entre os pais, que já revela antigas fissuras causadas por anos de abuso, mentiras e segredos (o título do projeto vem da localização da casa habitada pela família, que fica aos pés do Monte Ararat). Um dos grandes problemas do longa, aliás, reside numa equivalência preocupante entre “pecados”: se o pai, Hasan (Rasim Jafarov), é um pai e marido que não hesita em espancar as mulheres com quem divide o teto, sua esposa Fatma (Funda Rosenland) encontra uma fuga através de flertes e mesmo de um envolvimento com um amigo da família – e que Zeynep se sinta à vontade para condenar a mãe mesmo testemunhando tudo o que esta sofreu ao longo das décadas é algo que depõe contra o filme em si.

Sim, seria possível argumentar que Zeynep, mesmo pertencendo a uma nova geração e demonstrando não aceitar o status quo, ainda assim é fruto de uma sociedade machista e reflete esta visão sem perceber – mas nada em Ararat sugere este tipo de complexidade ou de autopercepção. Em vez disso, o que temos é uma protagonista cuja sexualidade é atribuída não à sua independência (ou busca pelo prazer), mas a um impulso torto de vingança por saber que é a forma mais efetiva de torturar o pai conservador. E de novo: em um filme melhor, isto poderia gerar discussões instigantes – mas Ararat não é um filme melhor.

Investindo em planos longos repletos de pausas que tornam a experiência alienante para o público em vez de comunicarem tudo o que há de quebrado entre aquelas pessoas, Kundag acaba por atingir um resultado oposto ao de sua (suposta) intenção original, criando um arco de redenção para um pai abusivo e transformando sua protagonista em uma criatura insuportável em vez de uma vítima em busca da própria força.

32) Com os pés descalços, mochila nas costas, boom preso ao corpo e câmera na mão, o cineasta guineense Thierno Souleymane Diallo percorre estradas e vilarejos de seu país numa jornada de busca histórica pelo Cinema que tanto ama. Determinado a encontrar um filme realizado em 1955 por um diretor chamado Mamadou Touré e que seria a primeira obra francófona concebida por um cineasta negro na África, Diallo enxerga o desaparecimento de todos os registros deste curta-metragem como mais um sintoma de um país – não, de um continente – condenado a esquecer a própria História.

Este diagnóstico só é reforçado pelo que encontra em sua viagem e que surge na tela de Cemetery of Cinema com uma imensa melancolia: antigos cinemas em ruínas, projetores e latas de filme enferrujados abandonados como lixo e um descaso completo da classe política para com os artistas e a Cultura da nação. Ao mesmo tempo, basta que o jovem diretor monte uma tela improvisada e projete imagens no meio de um vilarejo para que os moradores locais demonstrem um prazer inequívoco, comprovando como a questão não é desinteresse por parte da sociedade, mas desprezo por parte dos governantes.

Isto se reflete também na precariedade da formação da nova geração de realizadores: ao visitar uma escola de cinema, por exemplo, Diallo exibe para o espectador uma realidade que conhece bem, já que os alunos não conseguem citar cineastas do próprio país e não possuem qualquer equipamento para praticar o que aprendem nos quadros-negros rachados. Esta é uma sequência, por sinal, que comove ao permitir que aqueles jovens brinquem de filmar com “câmeras” feitas de madeira e depois descrevam uns para os outros (e para quem assiste a Cemetery of Cinema) o que eternizaram nesta película imaginária.

Aos poucos, a busca pelo curta perdido vai se estabelecendo como aquilo que realmente é: uma metáfora e um alerta: metáfora de um país que não se preocupa em preservar seu legado cultural e alerta de como é urgente investir na geração seguinte antes que nada de novo possa ser criado.

33) O plano inicial do italiano Last Night of Amore é de tirar o fôlego: cruzando o céu de Milão, a câmera do diretor Andrea Di Stefano não apenas estabelece o cenário no qual sua história se desenrolará como exibe promessas de inúmeras outras que poderia contar, ressaltando os contrastes entre regiões abastadas e outras humildes; entre a agitação de um local durante a noite e o abandono de outro. É uma introdução eficaz como mapa geográfico e emocional, preparando o espectador para a atmosfera tensa que experimentará nos 124 minutos seguintes.

Escrito pelo próprio cineasta, o filme é estrelado por Pierfrancesco Favino (que vive uma fase brilhante em sua carreira) como o policial Franco Amore – o sobrenome funcionando como uma ironia pouco sutil: prestes a se aposentar (um mau sina em qualquer narrativa), ele é recebido por uma festa surpresa preparada por sua jovem esposa Viviana (Linda Caridi) até ser subitamente chamado para a cena de um crime que, logo descobrimos, contém o cadáver do parceiro do protagonista, Dino (Francesco Di Leva). A partir daí, o longa volta no tempo para revelar não só o que aconteceu dentro daquele túnel como também as complexas relações entre personagens que ocultam suas motivações enquanto podem.

Com uma trilha brilhante de Santi Pulvirenti, que idealiza sua música como um indivíduo em busca de ar, o filme é beneficiado também por um elenco que sabe criar tipos marcantes que, mesmo se entregando a certa estilização, mantêm um pé na realidade, o que é fundamental para que a urgência da trama e os riscos envolvidos não se enfraqueçam. Neste sentido, o destaque reside na dinâmica entre Amore e Viviana, que Linda Caridi encarna como uma mulher que, mesmo assustada diante do que ocorre, é valente e cheia de iniciativa, surpreendendo o marido – e o espectador – com uma determinação que por vezes soa como pura inconsequência.

Mas é mesmo a cena que revela o que ocorreu naquele túnel que atua como clímax de L´ultima notte di Amore, sendo orquestrada por Di Stefano e pelo montador Giogiò Franchini com precisão – e mesmo que saibamos o que ocorrerá (ou acreditemos nisso), a tensão nos envolve completamente, expondo como passamos a nos importar com aquelas pessoas ainda que não vejamos como poderiam ter um futuro promissor.

E assim concluo a cobertura do Festival de Berlim 2023, que acabou por premiar as seguintes obras:

Urso de Ouro

“Sur l’Adamant” (On the Adamant)


Urso de Prata – Grande Prêmio do Júri

“Roter Himmel” (Afire)

 

Urso de Prata – Prêmio do Júri

“Mal Viver” (Bad Living)

 

Urso de Prata – Melhor Direção

Philippe Garrel, por “Le grand chariot” (The Plough)

 

Urso de Prata – Melhor Roteiro

Angela Schanelec, por “Music”


Urso de Prata de Melhor Atuação Principal

Sofía Otero, por “20.000 especies de abejas” (20,000 Species of Bees)


Urso de Prata de Melhor Atuação Coadjuvante

Thea Ehre, por “Bis ans Ende der Nacht” (Till the End of the Night)


Urso de Prata – Melhor Contribuição Artística

Hélène Louvart pela fotografia de “Disco Boy”


27 de Fevereiro de 2023

Sobre o autor:

Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.
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