Dia 02
5) Monster, novo trabalho do veterano Hirokazu Kore-eda, é um filme curioso que vê um embate entre a postura filosófico-existencial de seu realizador e a tese central de sua narrativa. Estruturado a partir de múltiplos pontos de vista que resultam numa tapeçaria dramática que remete a obras como Rashomon, o roteiro de Yûji Sakamoto se passa em uma pequena cidade japonesa, dividindo-se em três segmentos que giram em torno dos mesmos personagens: uma criança que talvez esteja sofrendo bullying de um professor cruel; a mãe dedicada deste aluno e, claro, o próprio professor – além de figuras secundárias com importância própria, como a diretora da escola e um colega da criança. A pergunta é: o título da obra se refere exatamente a quem?
Embora o já mencionado clássico de Kurosawa salte à mente quando narrativas do tipo são apresentadas, Monster se diferencia em um ponto importante: se a obra de 1950 preservava a ambiguidade dos fatos à medida que a projeção caminhava, complicando-a ainda mais, o filme de Kore-eda de certo modo caminha na direção oposta, esclarecendo os acontecimentos gradualmente enquanto oferece informações importantes sobre as motivações e perspectivas de cada um dos personagens. Além disso, se Rashomon trazia um cinismo inegável quanto ao seu universo, Monster é dirigido por um cineasta que tem uma visão muito generosa sobre aquelas pessoas e sobre a humanidade de modo geral.
O problema – se é que podemos chamar de problema – é que o otimismo do diretor de certa forma acaba entrando em conflito com a estrutura de sua obra, que nos leva a enxergar muitos destes personagens com um julgamento severo mesmo que este se origine apenas de omissões, como, por exemplo, a passividade enlouquecedora da diretora (que por vezes soa cruel e vingativa).
Inteligente ao usar o posicionamento de câmera como um indicador sutil das perspectivas individuais em cada segmento, o filme é enfraquecido apenas pela incapacidade de resolver o dilema central de uma autoralidade em confronto com a própria obra, mas mesmo um Kore-eda menor é uma experiência significativa.
6) Faz parte da natureza humana estar sempre insatisfeito com o que temos, mesmo que em algum ponto de nossas vidas houvéssemos sonhado exatamente com aquelas conquistas específicas. A satisfação traz paz, mas elimina a emoção; a emoção inspira movimento, mas compromete a tranquilidade – ou de modo mais direto: o sexo turbulento potencializa o tesão, mas após o orgasmo é a calmaria que faz falta.
Este dilema é o centro de The Nature of Love, escrito e dirigido pela canadense Monia Chokri, que em 2022 comandou o engraçadinho Babysitter e que acompanha Sophie (Magalie Lépine Blondeau), que tem um relacionamento harmonioso com Xavier (Francis-William Rhéaume), dividindo com este seus interesses culturais e políticos típicos de classe média alta: eles se fazem rir, mantêm conversas estimulantes, são companheiros e nutrem um profundo afeto um pelo outro. Porém, depois de conhecer o empreiteiro Sylvain Tanguay (Pierre-Yves Cardinal), a mulher se lembra de elementos que pareciam ter deixado seu cotidiano – especialmente os sexuais. Excitada pelos modos mais bruscos do sexo com o sujeito (e Chokri faz questão de encenar estas sequências com um foco particular no prazer da protagonista), Sophie decide encerrar o relacionamento com Xavier e investir naquele novo relacionamento mesmo que sua familiaridade com Sylvain esteja a anos-luz daquela que tem com o marido – e a idealização/romantização que constrói em sua visão movida pela paixão é ressaltada visualmente pela maneira como Cardinal é fotografado em contraluz, representando um mistério sedutor cujo potencial para frustração é conveniente ignorado pela personagem.
Não é à toa que o título original seja “simples como Sylvain”, já que, ao contrário do antigo companheiro de Sophie, seu novo namorado é um homem sem grandes ambições intelectuais – e preconceitos intelectuais à parte, ela encontra certa tranquilidade (ao menos temporária) na despreocupação do sujeito com relação a grandes questões que pareciam tão centrais em seu envolvimento anterior. Além disso, como já apontado, a postura da protagonista reflete esta idealização tão comum daquilo que cremos querer, ignorando como o costume, a familiaridade crescente, pode tirar o brilho do que antes parecia tão excitante. Além disso, como Sophie é professora de filosofia, o roteiro de Chokri encontra humor ao trazê-la alterando a ementa de sua disciplina para enfatizar os pensadores cujas ideias reflitam melhor seus desejos em cada momento, invertendo o processo de analisar a vida segundo a filosofia e adotando a corrente que valide aquilo que ela já abraçou.
Já o tipo de comédia praticado por Chokri é fixo, dependendo pesadamente do excesso: cores fortes, cortes rápidos, volume alto, zooms, roupas de tom forte e por aí afora. Se isto já incomodava em Babysitter, aqui se torna uma muleta ainda mais óbvia, provocando o efeito contrário daquele que se buscava e fragilizando a comédia – o que, por sua vez, gera constrangimento por resultar em cenas com clara intenção cômica que simplesmente não funcionam.
7) A onipresença do “Made in China” nos rótulos de todo tipo de produto comercializado em uma sociedade na qual o consumo se tornou algo central é um fenômeno que resultou no crescimento econômico impressionante daquele país ao longo das décadas, mas que resulta de uma realidade perversa que – como é típico do capitalismo – depende do sofrimento, da exploração e da falta de perspectivas daqueles que ironicamente jamais terão condições de comprar a maior parte dos itens que fabricam.
Focado particularmente nas fábricas de roupas que estão mais para câmaras de tortura do que para confecções, Juventude é mais um documentário do brilhante Wang Bing que traz a observação direta como forma de editorialização, permitindo que o simples testemunho dos fatos conduza o espectador às suas conclusões.
Rodado ao longo de cinco anos em várias workshops (na realidade, sweatshops) chinesas, o filme expõe como a força de trabalho destes espaços é essencialmente composta por indivíduos de pouca idade que, originados de comunidades rurais humildes, vão para os grandes centros urbanos em busca de emprego e acabam se tornando praticamente mão-de-obra escrava, sendo forçados inclusive a morar em dormitórios precários localizados nos mesmos edifícios nos quais passam seus dias produzindo roupas baratas para o mundo. Vivendo em espaços apertados, abafados, mal iluminados e que sequer têm chuveiros quentes, forçando-os a tomar banhos de balde, estes operários têm sua juventude refletida não apenas em seus modos supreendentemente vivazes, mas – o que é mais comovente – em seus objetos pessoais, já que aqui e ali vemos ursinhos sobre as camas que são cobertas por lençóis com temática infantil.
Por outro lado, é claro que um ambiente opressivo como aquele cobra seu preço, sugando a vitalidade de seus ocupantes aos poucos e criando uma hostilidade que muitas vezes resulta em confrontos físicos provocados por desentendimentos triviais. Aliás, o simples fato de o diretor ter recebido autorização pelos gerentes destas fábricas para filmá-las é revelador por escancarar como aquela é uma realidade tão natural que nem ocorre aos administradores a possibilidade de que aquilo se torne um escândalo – e até as negociações com os funcionários, feitas à base de chantagem e crueldade, são vistas no filme sem qualquer tentativa aparente de censura.
Com uma duração de três horas e meia que se justificam por mergulharem o espectador no cotidiano daquelas pessoas, incluindo os ruídos incessantes das máquinas, Juventude é uma obra que faz jus à filmografia sempre humana de seu fantástico realizador.
8) Exibido como parte da mostra Un Certain Regard, Rosalie tem uma premissa curiosa: ambientado no interior da França nos anos 1870, o roteiro escrito pela diretora Stéphanie Di Giusto ao lado de Alexandra Echkenazi e Sandrine Le Coustumer (com colaboração de Romain Compingt e Jacques Fieschi) gira em torno de uma jovem que é oferecida pelo pai em casamento ao endividado comerciante Abel (Benoît Magimel), que a aceita pelo dote – e que ela seja belíssima é, para o sujeito, um bônus. O que ele não sabe, porém, é que Rosalie (Nadia Tereszkiewicz) guarda um segredo: o hirsutismo, sendo coberta de pelos da cabeça aos pés.
A princípio, este é o tipo de história que poderia ser desenvolvida para múltiplos gêneros, contendo potenciais dramáticos, cômicos, fantasiosos, de suspense, terror e por aí em diante – e o problema, neste caso, é que Di Giusto parece interessada em explorar muitos destes ao mesmo tempo. Assim, Rosalie se torna uma obra esquizofrênica, exibindo um otimismo notável com relação à natureza humana quando quer ser leve e investindo no pessimismo total quando o drama se torna o objetivo central – o que acaba se refletindo também na personalidade de Abel, que oscila de forma inverossímil por mais que o talentoso Magimel tente encontrar motivações que tragam coesão para este amontoado de ideias incompatíveis.
Assim, ao mesmo tempo em que a protagonista demonstra medo de ser rejeitada por todos caso seu segredo seja descoberto, ela logo decide expor seu hirsutismo de modo quase voluntário, exibindo uma força antes insuspeita (já que a fragilidade era o propósito narrativo até então). De modo similar, a reação da pequena comunidade à condição da personagem subverte as expectativas do público (algo geralmente recomendável) ao se mostrar acolhedora em sua maior parte, embora o roteiro se reserve o direito de manter dois ou três coringas para que desempenhem os papéis vilanescos necessários para a transição do segundo para o terceiro ato.
Aliás, o que a primeira metade da projeção oferece de instigante, a segunda descarta em prol do melodrama, quando o filme se mostra determinado em transformar Rosalie em mártir enquanto busca uma catarse dramática que acaba por se revelar pura cafonice.
18 de Maio de 2023