Dia 03
9) Black Flies é desde já um dos piores filmes de 2023, comprovando como o ano não está indo nada bem para Sean Penn, que durante o Festival de Berlim já havia se destacado negativamente com o pavoroso documentário/hagiografia Superpower. Desesperado para se tornar um Vivendo no Limite, que tenta copiar em estética, temas e tom, o filme de Jean-Stéphane Sauvaire (escrito a quatro mãos por Ben Mac Brown e Ryan King a partir do livro de Shannon Burke) acompanha um grupo de paramédicos nas noites de Nova York, focando especialmente em um sujeito que se encontra à beira do esgotamento completo, mas que acaba conhecendo uma mulher que passa a representar uma possibilidade de esperança em um mundo horrendo, alternando seus momentos ao seu lado com outros nos quais, trabalhando ao lado de diferentes parceiros, testemunha o que há de pior na humanidade.
Pois é. Vivendo no Limite.
A diferença é que enquanto o filme de Martin Scorsese era uma obra brilhante que se equilibrava entre o horror e a luz por compreender como o puro niilismo anularia qualquer possibilidade narrativa mais interessante neste contexto, Black Flies é uma besteira comandada por um diretor que só é capaz de enxergar este horror através do prisma do “filme de arte” – uma expressão que abomino (todo filme é Arte), mas que aqui se encaixa por se referir justamente aos clichês associados a este termo.
Sem compreender o básico sobre estrutura dramática, o longa traz um protagonista (vivido em uma nota só por Tye Sheridan) que já começa em seu emprego enlouquecido, ao contrário do paramédico vivido por Nicolas Cage no trabalho de Scorsese, que era um veterano esgotado por traumas sucessivos e noites sem dormir. Assim, como Ollie Cross (“cruz”, entenderam? Profundo.) já inicia a narrativa em um tom de exaustão e insanidade, o filme não tem para onde caminhar – e nem consegue funcionar como estudo de personagem, já que este tem a profundidade de um pires, sendo definido por qualquer que seja o pesadelo testemunhado em cada instante da projeção. Para piorar, Michael Pitt, um ator talentoso que precisa de um diretor com visão clara para conter seus impulsos de overacting, aqui é deixado sem controle algum, criando uma caricatura que prejudica ainda mais o tom geral da produção, que, como se não bastasse, traz ainda uma pequena participação de Mike Tyson que… não, não se revela uma grande surpresa, criando exatamente o tipo de performance que esperaríamos do ex-boxeador (e não me perguntem por que Sauvaire o escalou em seu projeto).
O que nos traz a Sean Penn, um dos melhores atores de sua geração e por quem nutro, acreditem, grande admiração: incutindo gravidade ao personagem simplesmente através de suas profundas linhas de expressão, Penn cria a única figura realmente interessante do filme – até o ponto em que o roteiro decide que precisa de tragédias e dramas adicionais e força o personagem a dizer coisas e a tomar atitudes que pouco combinam com o que víamos até então, atravessando um “arco” que o transforma em mera muleta para qualquer que seja a “evolução” desenhada para o protagonista.
Determinado a transformar sua obra em um pesadelo, Sauvaire adota uma estratégia simples: se os personagens não estão vendo algo horrível, estão ouvindo. Assim, ao longo do filme somos presenteados com imagens absurdas que têm como único propósito a crueldade, seja a descoberta do cadáver de um cachorro no armário de trabalho de Ollie (algo que aparentemente é visto com descaso por seus superiores), seja uma sequência deprimente – talvez a única eficiente (até se perder na necessidade de ser chocante) – envolvendo um adicta em trabalho de parto. Já as cenas de sexo (é claro que um filme como este não abriria mão delas) são encenadas de uma maneira tão posada, tão artificial, que se tornam uma piada, convertendo-se numa visão adolescente do que hollywood consideraria como “artístico” (se vemos pelos pubianos, é porque é Arte).
Confundindo niilismo com crueza, Black Flies se mostra tão dedicado a ser “pesado” que, quando não há mais nada horrível a mostrar, decide incluir imagens capturadas em um abatedouro de animais.
Uma estupidez do início ao fim.
10) É difícil pensar em Indiana Jones e a Caveira de Cristal e não sentir raiva da geladeira resistente a bombas atômicas e da passagem que traz o jovem Mutt (Shia LaBeouf) saltando como Tarzan de um cipó a outro ao lado de dezenas de macaquinhos – dois momentos que resumem bem a tendência daquela continuação de introduzir conceitos instigantes apenas para jogá-los no lixo no minuto seguinte. Assim, depois de encerrar a trilogia original com o maravilhoso A Última Cruzada, que ainda contava com um plano final inesquecível, ver Steven Spielberg, George Lucas e Harrison Ford retomando a série apenas para enfraquecê-la foi uma imensa frustração.
O que nos traz a Relíquia do Destino: escrito a oito mãos pelo diretor James Mangold ao lado de David Koepp e dos irmãos Jez e John-Henry Butterworth – o que explica a impressão ocasional de uma estrutura remendada para criar um todo -, este quinto longa da franquia retorna aos seus vilões favoritos (os nazistas) já na extensa introdução, que, ambientada no fim da Segunda Guerra, traz Indiana Jones (Ford) e o amigo Basil Shaw (Jones) tentando recuperar a Lança de Longino, usada para perfurar o corpo de Cristo depois de sua morte (no universo de Jones, os nazistas estão sempre atrás de itens ligados ao cristianismo). Logo, porém, o foco da dupla passa ser outro: a máquina de Anticítera concebida por Arquimedes e que supostamente indicaria a localização de portais entre épocas diferentes. Possuindo apenas uma parte do mecanismo, Basil se torna obcecado pela ideia de encontrar o restante – e, décadas depois, a busca é mantida por sua filha Helena (Waller-Bridge) enquanto o fanático Dr. Voller (Mikkelsen) persegue o artefato com objetivos perversos. E, claro, o único capaz de ajudar a mulher é seu padrinho: Indiana Jones.
Compreendendo bem o tom equilibrado entre ação e humor que marca a série, a sequência de abertura é também a melhor desta obra (o que, sim, pode ser visto como um problema), criando situações em que as habilidades do protagonista são complementadas por sua sorte (como no detalhe da forca) e por sua incredulidade frequente diante desta última – e uma das características mais brilhantes da composição de Harrison Ford reside em sua capacidade de ilustrar a surpresa de Jones ao escapar vivo de certas ameaças. Além disso, o efeito de rejuvenescimento usado para recriar a aparência do personagem 25 anos mais jovem é um dos melhores já alcançados até hoje, soando tão convincente que admito ter ficado levemente desapontado quando a narrativa finalmente saltou para 1969.
O desapontamento, contudo, durou pouco, já que de um ponto de vista temático a ideia de contrapor a chegada do Homem à Lua (um marco de nosso avanço tecnológico) à profissão do herói (dedicada à investigação do passado) é inteligente e instigante, refletindo o envelhecimento do próprio Indy, que surge quase como um daqueles idosos sempre irritados com a invasão de seus quintais pelas crianças da vizinhança. Obviamente flertando com o alcoolismo e vivendo num apartamento minúsculo e claustrofóbico, o presente de Henry Jones Jr. é um terrível anticlímax para uma vida dedicada a aventuras e feitos tão grandiosos, o que imediatamente confere um tom melancólico ao filme. Aliás, isto se apresenta até mesmo na indiferença de seus alunos em sala de aula, que não poderia estar mais distante do fascínio apaixonado de sua classe em Os Caçadores da Arca Perdida.
Neste sentido, Ford mais uma vez demonstra sua profunda compreensão do personagem, cujo cansaço cede à empolgação assim que alguém exibe interesse pelo que está sendo dito pelo professor, deixando claro como sua paixão pela arqueologia segue intacta sob sua postura exausta. Do mesmo modo, Indy se mantém humano e verossímil mesmo nas situações mais absurdas graças à maneira como o ator expõe o medo (mais: pânico) do protagonista em várias delas. Em contrapartida, a presença de John Rhys-Davies como Sallah jamais escapa do puro fan service, não sendo justificada pela trama ou por qualquer oportunidade de criar um momento marcante para o personagem. E se Phoebe Waller-Bridge se apresenta como um acréscimo interessante à série (por mais que o roteiro custe a se decidir se a tratará como aliada ou não), o jovem Ethann Isidore jamais consegue transformar Teddy em algo mais do que um eco apagado do Short Round vivido por Ke Huy Quan em O Templo da Perdição, sendo absolutamente descartável para a narrativa. Para completar, Mads Mikkelsen e Boyd Holbrook criam uma dupla de vilões eficiente e com motivações cuja insanidade é mascarada de forma divertida pela seriedade com que são expressadas.
Desempenhando a ingrata tarefa de substituir o gigantesco Spielberg na direção de uma série cujas sequências de ação foram definidas pelo talento deste para estabelecer um ritmo frenético sem abandonar a clareza da mise-en-scène e a plasticidade desta, James Mangold faz um trabalho adequado na maior parte do tempo, criando instantes eficientes no meio de set pieces elaborados como a perseguição a cavalo e aquela envolvendo riquixás – e se tenho ressalvas aqui e ali, isto se deve ao excesso de efeitos digitais pouco convincentes e que decepcionam até em planos básicos como os establishing shots em um aeroporto e do cassino/hotel em Tânger, que gritam sua natureza de green screen. Além disso, enquanto Spielberg sempre encontrou meios de conferir plausibilidade às passagens mais fantasiosas (saltos entre cipós à parte), Mangold demonstra um pouco mais de dificuldade para repetir esta proeza – e se consigo acreditar na ponte “invisível” de A Última Cruzada e na vagoneta que retorna ao trilho depois de um longo salto em Templo da Perdição, não posso dizer o mesmo sobre o cavalo na linha do metrô em Relíquia do Destino.
Explorando bem a bagagem emocional de Indy (e da série) ao levá-lo a reconhecer em Helena sua própria dinâmica com o pai, esta continuação pode até não fazer jus aos capítulos produzidos na década de 80, mas certamente se apresenta como uma despedida bem mais digna de um dos personagens mais icônicos que o Cinema produziu.
Observação: é triste constatar como a trajetória da Disney rumo a um quase monopólio faz aqui mais uma vítima, já que a tradicional e elegante transição entre a vinheta da Paramount e um elemento visual que abra a narrativa é abandonado pela primeira vez na série graças a questões corporativas.
11) Ao longo dos anos, o turco Nuri Bilge Ceylan se estabeleceu como um dos nomes mais consistentes de sua geração: Era uma Vez na Anatolia e Sono de Inverno são duas pequenas obras-primas e A Árvore dos Frutos Selvagens não fica longe disso – e é um prazer constatar que seu novo trabalho, Ervas Secas continua a demonstrar sua consistência e sua maturidade crescente como realizador.
Escrito pelo próprio diretor ao lado de Akin Aksu e Ebru Ceylan (esposa do cineasta), o roteiro acompanha Samet (Deniz Celiloglu), um professor de arte que cumpre um período de trabalho obrigatório em uma pequena vila numa área desolada e que nutre um desejo profundo de ser transferido para Istambul. Porém, quando uma estudante o acusa de agir de modo inapropriado, o sujeito vê suas possibilidades de mudança diminuírem rapidamente ao mesmo tempo em que tenta estabelecer alguma ligação com Nuray (Merve Dizdar), professora em uma escola maior da região e que, mesmo perdendo uma das pernas ao ser vítima de um ataque suicida anos atrás (ou talvez justamente por isso), apresenta uma visão política afiada e ativa que desafia a passividade habitual do protagonista.
Estudo de personagem que enfrenta o grande obstáculo de girar em torno de uma figura que vai se tornando repulsiva à medida que a conhecemos mais e mais, Ervas Secas cria drama a partir de discussões maduras e complexas, contrapondo as visões de seus personagens como mecanismo narrativo mais importante – o que culmina em uma longa cena durante a qual os professores vividos por Celiloglu e Dizdar discutem temas como a contraposição entre a ação e a omissão (e o que isto diz sobre as pessoas que assume uma postura ou outra) como forma de avanço da sociedade, criando um embate entre a natureza ativista, presente, de Nuray e o egoísmo de Samet (cujo interesse pela mulher, diga-se de passagem, só é realmente despertado quando ele percebe que ela se interessou por seu amigo).
Empregando as paisagens cobertas de neve como um modo de estabelecer o tom clínico da narrativa, Ceylan busca manter o espectador sempre a certa distância de seus personagens, dando preferência a quadros abertos (há raríssimos closes) e a planos bem longos que nos inserem na lógica daquelas interações em vez de favorecerem um ritmo mais enérgico. Além disso, o diretor aprecia a ambiguidade do protagonista; se a princípio vemos sua atitude com a jovem aluna como a de um professor tentando estimular uma pupila promissora, aos poucos notamos elementos preocupantes em seu comportamento, como a tentativa de criar segredos com a menina e de se tornar seu confidente. E mesmo que possamos questionar a ocorrência de um abuso sexual, não há dúvidas de que ele acaba usando sua posição para cometer abusos emocionais pavorosos como forma de se vingar da garota, tornando-se impossível, para o público, enxergá-lo apenas como alguém com pouco tato social.
Audacioso de um ponto de vista formal, o longa surpreende também ao permitir que, em certo momento, o protagonista abandone a diegese ao passar por uma porta, o que de certo modo reflete como tudo para o sujeito naquele momento (ocorrendo em sua discussão com Nuray) é mera encenação – mas também refletindo como a própria obra de Ceylan está plantada em uma realidade difícil da qual é ao mesmo tempo comentarista e participante.
19 de Maio de 2023