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Festival de Cannes 2023 - Dia #04 Festivais e Mostras

Dia 04

12) Apenas os dois minutos iniciais de Zona de Interesse já são o bastante para que o espectador perceba estar diante de uma obra única. Funcionando como uma espécie de prólogo sonoro que estabelece a natureza angustiante do universo no qual seremos mergulhados a seguir, a passagem usa a trilha dissonante, incômoda, de Mica Levi como única informação na tela – até que subitamente somos apresentados ao cotidiano da família Höss e ao seu patriarca, o comandante Rudolf Höss (Christian Friedel), responsável por administrar o campo de extermínio de Auschwitz.

Divertindo-se ao lado da esposa Hedwig (Sandra Hüller) e dos filhos em um belo dia de sol ao lado de um lago cercado de verde, o sujeito logo passa a ser visto enquanto desempenha suas tarefas cotidianas em reuniões mantidas em casa ou discute trivialidades com a família; quando encontra-se ausente, o centro narrativo é deslocado para Hedwig, que cuida do lar – ou melhor: ordena suas criadas a fazê-lo -, dos filhos e recebe visitas de amigas sempre impressionadas com seu estilo de vida, o que inclui caras peças de roupa cujas origens só são discutidas quando o propósito é criticar suas antigas donas.

Construído a partir de tableaux que transformam as cenas diárias da família Höss em pequenos quadros simétricos que refletem a obsessão daquelas pessoas com a ordem (ou com um conceito de “ordem” particular), o filme jamais mostra os horrores que estão acontecendo do outro lado dos muros vistos ao fundo da casa – e nem precisa, já que o excepcional desenho de som nos mantém cientes o tempo inteiro dos ruídos vindos das câmaras de gás e dos crematórios e que são intercalados pontualmente por tiros, choros e gritos à distância. Porém, se as implicações de todos estes sons são claras e pavorosas para o público, os personagens jamais parecem reconhecer sequer a existência dos barulhos ou da fumaça que se ergue dia e noite a alguns metros de distância, demonstrando como aquelas pessoas se tornaram imunes à barbárie e à dimensão do horror que constroem através da ação ou da omissão.

Enquanto isso, o conceito da “banalidade do mal” descrito por Hannah Arendt é perfeitamente representado pela natureza burocrática das discussões mantidas por Rudolf, por exemplo, ao receber a visita de engenheiros que desenvolveram uma forma eficiente de executar prisioneiros e destruir seus corpos – um projeto que é debatido não em termos de moralidade ou legalidade, mas de custos, rendimentos e logísticas. Além disso, o cineasta Jonathan Glazer não se preocupa em destrinchar o contexto político que permitiu o surgimento de um regime tão brutal, já que compreende que trata-se de um tema já fartamente explorado ao longo das décadas e que, em sua essência, se resume à manipulação das insatisfações de segmentos da sociedade para que atribuam as causas de suas frustrações a grupos específicos em vez de enxergarem o problema maior de um sistema criado para gerar desigualdade e injustiça – o que é sintetizado pela postura da mãe de Hedwig, que antes da guerra trabalhava na casa de uma mulher judia que posteriormente foi enviada para um campo de concentração, o que confere imensa satisfação à sua antiga funcionária.

De forma similar, o filme compreende que não há como aquela perversão generalizada (e legalizada) se manter contida, não sendo surpresa quando um dos filhos do casal começa a exibir um comportamento nazificado em suas pequenas maldades que indicam uma distorção de mundo que só tende a se expandir e a se tornar mais chocante.

Obra difícil de assistir justamente por ser tão eficiente em seu propósito de expor a natureza banal de todo aquele horror que muitas vezes é retratado como espetáculo por filmes de gênero, Zona de Interesse é uma experiência única. Pavorosa, mas única.

13) Chega a ser inacreditável que o mesmo realizador que há apenas dez anos venceu a Palma de Melhor Direção pelo ótimo Heli tenha criado uma bagunça tão lamentável quanto Perdidos na Noite, mas a triste verdade é que o mexicano Amat Escalante até hoje não conseguiu comprovar o talento que aquele filme prometia. Desta vez, trabalhando em um roteiro escrito ao lado do irmão músico Martín, o cineasta tenta contar uma história que começa como um suspense com tom político, passa pelo drama social, flerta com o ativismo ecológico até chegar desajeitadamente a uma espécie de thriller erótico, falhando por todos os gêneros que atravessa.

Contando com um elenco uniformemente pavoroso, o longa acompanha o jovem Emiliano (Juan Daniel García Treviño), cuja mãe, uma ativista política na pequena cidade mineradora em que vivem, desapareceu depois de protestar contra a corporação internacional que domina a economia local. Convencido de que seu corpo está enterrado sob a casa de uma família rica, ele consegue um emprego na residência, que é ocupada pela estrela de tevê Carmen Aldama (Bárbara Mori), sua filha influencer Mónica (Ester Expósito) e pelo marido Rigoberto Duplas (Fernando Bonilla), um artista cujo trabalho mais recente envolve disputas frequentes com um culto religioso.

Tentando criar reviravoltas que não apenas são estúpidas como dependem de comportamentos inexplicáveis por parte dos personagens (por que certo personagem finge para o(a) cúmplice não se lembrar do que fizeram?), Perdidos na Noite soa como um projeto amador, estabelecendo-se como um dos piores longas do festival de 2023 (só não é o pior graças a Black Flies).

14) Kléber Mendonça Filho é um cineasta cuja inteligência rivaliza apenas com sua inquietude como criador. Responsável por obras que conseguem existir em um continuum mesmo exibindo características fortes que as diferem umas das outras, o pernambucano reflete em seus longas-metragens a mesma vivacidade e bom humor presentes nos curtas do início da carreira, conseguindo combinar gêneros, temáticas e mesmo estéticas distintas em cada um de seus trabalhos.

Em Retratos Fantasmas, por exemplo, Mendonça persegue objetivos que poderiam soar díspares, mas que se complementam de modo orgânico: por um lado, o documentário é uma carta de amor à sua mãe, a historiadora Joselice Jucá, e à influência desta sobre sua formação intelectual e sua sensibilidade artística; por outro, é um registro histórico dos cinemas de rua de Recife e como estes passaram por um processo de destruição e apagamento que ocorreu (e ocorre) também em vários outros aspectos da cidade (um tema que esteve presente em Aquarius, diga-se de passagem). Dividido em segmentos que se dedicam a estes tópicos, o longa é didático sem ser condescendente ou previsível, encontrando individualidade no senso de humor de seu criador e – o mais fascinante – na maneira com que seu processo criativo é exposto durante a própria narrativa.

Em certo momento, por exemplo, o cineasta fala sobre o cão que, pertencendo aos vizinhos, passava boa parte do dia latindo, o que enlouquecia os moradores da região – e ao longo dos anos, Mendonça fez vários registros do animal sobre o muro, concluindo que o principal motivador do barulho constante era sua solidão. Transformando observações e experiências cotidianas em matéria-prima, ele acabaria incorporando o latido a O Som ao Redor, que se concentrava precisamente no dia a dia daquela vizinhança (ou de uma muito similar), o que resulta em um incidente fantástico quando, certa noite, muito depois que o cachorro havia morrido, Kléber começou a ouvir o velho latido de forma insistente, levando algum tempo até descobrir que este vinha das televisões da vizinhança que estavam sintonizadas em um canal que exibia seu filme.

Esta passagem pode soar irrelevante ou apenas uma anedota bobinha (é bem mais do que isso), mas sua ligação temática com o restante do documentário é inquestionável, já que reflete a perpetuação de memórias através da Arte – e Retratos Fantasmas busca realizar este importante trabalho através da inclusão de histórias pessoais não apenas de seu criador, mas de figuras que conheceu ao longo da vida. Além disso, esta recaracterização do que é familiar está presente até mesmo na casa que sua mãe passou anos reformando e que depois se transformaria em sede da produtora de seu filho, em estúdio e em cenário.

Encerrando com uma sequência que poderia funcionar como um curta-metragem isolado, mas que se encaixa ao restante do projeto ao colher os frutos da proximidade que os dois atos anteriores criaram entre público e cineasta, Retratos Fantasmas é uma obra afetuosa que também é capaz de demonstrar raiva e frustração quando estas se fazem necessárias. É uma autobiografia e um registro de Recife; um documentário objetivo (até o ponto em que isto é possível) e um ensaio que ecoa a subjetividade de uma voz específica – e, acima de tudo, um filme lindíssimo e fundamental.

15) A tunisiana Kaouther Ben Hania já comprovou sua habilidade em navegar entre a ficção e o documentário, criando exercícios formais que frequentemente elevam o material através de uma inventividade notável que em Le Challat de Tunis, por exemplo, partiu de um incidente real (uma série de ataques realizados por um homem que, passando em rápida velocidade sobre uma moto, cortava com navalha as nádegas de suas vítimas – todas mulheres, claro) para criar um estudo de personagem curioso sobre um homem que afirma ser o criminoso e no qual a própria diretora se inseria de modo ativo. Posteriormente, ela dirigiria o angustiante A Bela e os Cães usando apenas nove longos e complexos planos (e que também se inspirava num caso de violência contra uma mulher) e o ambicioso O Homem que Vendeu Sua Pele, que renderia à Tunísia sua primeira indicação ao Oscar.

Em As Quatro Filhas, Ben Hania realiza um experimento narrativo que rivaliza com todos os seus esforços anteriores em termos de originalidade, ambição e, principalmente, risco, apresentado o espectador a Olfa Hamrouni e suas filhas Eya e Tayssir Chikhaoui, que relembram como as duas outras integrantes da família, Rahma e Ghofrane, abandonaram a mãe e as irmãs mais novas e se uniram ao Estado Islâmico (ou Daesh), a organização jihadista responsável por diversos atos de violência. Porém, para evocar memórias mais fiéis e intensas das três mulheres, a cineasta contrata duas atrizes para que interpretem as filhas desaparecidas: Nour Karoui (Rahma) e Ichrak Matar (Ghofrane) – e a emoção de Olfa, Eya e Tayssir ao verem as duas intérpretes pela primeira vez já sugere como Ben Hania descobriu uma ferramenta dramática importante.

Claro que eticamente há questionamentos necessários: em primeiro lugar, trata-se apenas de um artifício; o que as atrizes dizem ou relatam é filtrado pelas experiências e pela percepção das sobreviventes, contribuindo mais para que estas processem suas dores do que para esclarecer as circunstâncias que levaram as demais a uma ação tão radical. Além disso, o processo em si é claramente doloroso para todas as envolvidas – incluindo as atrizes -, sugerindo a possibilidade de que em vez de reparos surjam novas feridas. Ainda assim, trata-se de um exercício que se torna ainda mais fascinante quando uma terceira intérprete, Hind Sabri, é contratada para encarnar Olfa nas passagens que esta considera dolorosas demais para reviver – e Sabri, com uma personalidade forte e inquisitiva, se torna quase uma interrogadora da própria personagem, pontuando contradições na postura de Olfa e no machismo que esta incorporou ao longo da vida (e que em vários instantes resultou em atos agressivos contra as filhas).

Com isso, As Quatro Filhas é um documentário que atua como terapia não apenas para as envolvidas, mas para um país cujo tradicionalismo é responsável pela criação e perpetuação de traumas tão comuns que unem intérpretes e personagens em dores, revoltas e perdas.

20 de Maio de 2023

Sobre o autor:

Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.
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