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Festival de Berlim 2024 - Dia #02 Festivais e Mostras

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Dia 02

5) Mahin (Lili Farhadpour) vive sozinha em uma casa que se tornou grande demais depois que os filhos se casaram e saíram do Irã. Solitária, ela costuma virar as noites vendo televisão e fazendo tricô, ocupando os dias com tarefas triviais que a ajudem a gastar as horas até dormir. Certa noite, depois de uma cada vez mais rara reunião com amigas antigas, ela começa a se questionar sobre a possibilidade de encontrar um novo companheiro depois de 30 anos de viuvez – e, para isso, passa a frequentar espaços nos quais exista uma maior possibilidade de encontrar senhores disponíveis. É assim que ela conhece o taxista Faramarz (Esmaeel Mehrabi), tomando a iniciativa de abordá-lo e convidá-lo para ir até sua casa.

Como é fácil imaginar, a postura de Mahin não é algo que os fundamentalistas religiosos que passaram a controlar o Irã desde a Revolução Cultural de 1980 enxergam com bons olhos – uma postura desafiadora por parte dos diretores e roteiristas Maryam Moghadam e Behtash Sanaeeha, que ainda incluem uma cena na qual a protagonista desafia a chamada “polícia da moralidade” quando um de seus oficiais tenta prender uma jovem por estar vestida de modo “indecente” (não estava). Como punição, os realizadores não obtiveram permissão para apresentar pessoalmente o filme no Festival de Berlim.

Mas mais do que um filme-denúnica, My Favorite Cake (Keyke mahboobe man) é uma obra cuja delicadeza se torna ainda mais evidente em sua metade final, quando passamos a acompanhar a noite de Mahin e Faramarz: inicialmente tímidos, eles aos poucos vão se soltando (o vinho ajuda) e compartilhando histórias do passado e frustrações do presente, demonstrando uma franqueza que atua como atalho na construção de uma relação, já que sabem como o tempo é algo precioso e limitado.

Rindo, comendo, dançando e até tomando banho juntos (ou algo parecido com um banho), o casal é vivido com entrega absoluta por Farhadpour e Mehrabi, que alcançam o equilíbrio perfeito entre a empolgação pela possibilidade de algo novo e a ansiedade que esta causa.

E se talvez – talvez! – o casal de cineastas tenha deixado de identificar um subtexto potencialmente problemático que certo acontecimento no terceiro ato traz, isto é um pecadilho perto da experiência tocante que concebem no restante da projeção.

6) Embora não seja o tipo de coisa que costumo discutir ao escrever sobre um filme, creio ser importante abrir uma exceção ao registrar que Aaron Schimberg, diretor de A Different Man, nasceu com uma fenda labial e palatina que, mesmo corrigida através de cirurgias, deixou cicatrizes óbvias e afetou sua dicção. Este fato se torna relevante quando percebemos como o longa aborda, em maior ou menor grau, o sentimento de exclusão, de não-pertencimento, que pode se originar de algo assim, já que o bullying na infância e os olhares curiosos na idade adulta tornam impossível ignorar a existência de algo “errado” em sua aparência.

Aliás, não coloco a palavra “errado” entre aspas à toa: um dos temas A Different Man reside em nossa concepção do que é esteticamente agradável ou repugnante, explicitando como estes adjetivos são facilmente invertidos em função de fatores que nada têm a ver com os atributos físicos de uma pessoa.

Com o rosto totalmente desfigurado em função da neurofibromatose tipo I, Edward (Sebastian Stan) é um aspirante a ator que, como é fácil imaginar, só consegue papeis diretamente relacionados à sua condição, como um vídeo ridículo que tenta pregar o respeito mútuo em ambientes de trabalho da forma mais desajeitada possível. Encantado por sua nova vizinha, a aspirante a dramaturga Ingrid (Renate Reinsve), ele estabelece uma amizade com a moça, mas aos poucos se vê frustrado pela barreira que sente ser imposta por sua aparência e aceita fazer parte de um tratamento revolucionário que o cura completamente.

E é aqui que as óbvias limitações de Sebastian Stan como ator começam a comprometer o projeto: transformado em um homem atraente, a primeira atitude de Edward é abandonar tudo, mudar de nome e iniciar uma nova vida, tornando-se um agente imobiliário de sucesso – e se o roteiro de Schimberg faz este salto de maneira atrapalhada, o ator piora tudo ao jamais conseguir incutir verossimilhança ao personagem, que combina uma insegurança crônica (e compreensível) com um ressentimento que antes não existia (ao menos, não no nível que alcança). Restabelecendo a relação com Ingrid sem revelar sua verdadeira identidade, ele consegue ser escalado por esta para protagonizar a peça que ela escreveu sobre o homem que conheceu tempos antes – o próprio Edward, que agora se identifica pelo nome genérico “Guy”. A partir daí, sua personalidade vai se alterando conforme as necessidades imediatas da narrativa, embora o máximo que Stan consegue fazer é projetar confusão constante (talvez por estar se sentindo assim em função da incongruência de tudo que o cerca).

Esta falta de coesão se reflete na abordagem narrativa de Schimberg: se os créditos iniciais parecem referenciar thrillers conspiratórios da década de 70 e os rápidos zooms ocasionais reforçam a lembrança, em outros momentos o filme investe no body horror, remetendo ocasionalmente ao humor de (juro) Woody Allen – isto quando o humor é intencional e não causado involuntariamente pelo ator principal. Por outro lado, a trilha de Umberto Smerilli é sólida do início ao fim, refletindo a atmosfera incômoda que o longa gera em seus melhores momentos sem tentar ditá-la ao espectador.

Na verdade, A Different Man só parece começar a se encontrar quando um novo personagem surge na segunda metade da projeção: Oswald, interpretado por Adam Pearson, que realmente exibe os efeitos da neurofibromatose e ganhou destaque mundial graças à sua ótima participação no excepcional Sob a Pele. Vivendo um indivíduo vibrante, alegre e que se sente perfeitamente à vontade consigo mesmo, Pearson confere carisma a Oswald, estabelecendo um contraste gigantesco com Edward – que ressente o fato de alguém que ainda tem a aparência da qual ele se livrou consiga conquistar tão facilmente as pessoas ao seu redor, incluindo Ingrid (que Reinsve compõe com uma dose ideal de narcisismo para justificar as ações da personagem).

Amarrando a narrativa com várias elipses que diluem ainda mais qualquer impacto dramático que o filme pudesse ter, A Different Man é uma obra com ideias interessantes (e importantes), mas suas boas intenções na maior parte do tempo são barradas pela indefinição do realizador quanto ao tipo de projeto que quer criar e por um ator que se sente bem mais à vontade incorporando um uniformizado da Marvel do que um indivíduo complexo que exigiria estudo e preparação consideravelmente maiores.

7) Em seus primeiros minutos, enquanto ainda estamos sob a ilusão de que Hors du tempos terá uma reflexão a oferecer sobre como a natureza humana é adaptável às mais extremas das situações, o diretor francês Olivier Assayas estabelece a personalidade neurótica e narcisista do protagonista, o cineasta Paul (Vincent Macaigne), de forma direta e eficaz através de uma narração em off feita pelo sujeito enquanto registros fotográficos de cenários de sua infância surgem na tela. Discutindo suas memórias afetivas enquanto o desenho de som completa a imersão através de ruídos relacionados a estas (como os de uma máquina de datilografar sendo utilizada), o sujeito explica como ele e o irmão Etienne (Micha Lescot) decidiram atravessar o período da quarentena na antiga propriedade dos pais ao lado de suas namoradas Morgane (Nine d´Urso) e Carole (Nora Hamzawi), o que traz uma série de implicações ao testar o relacionamento de toda uma vida enquanto dois novos se desenvolvem com suas respectivas companheiras.

Mas isto se limita, como já dito, aos minutos iniciais; a partir daí, o que temos são discussões extensas e repetitivas sobre os cuidados para evitar o coronavirus, o impulso consumista reforçado pelo isolamento e a insistência em polir uma panela até que esteja livre de manchas. Tão diferentes em temperamento quanto em seu físico (é difícil imaginar Macaigne e Lescot como irmãos), Paul e Etienne encaram a pandemia de modos diversos: se este último sente-se podado e saudoso de sua liberdade habitual, o primeiro encara a quarentena como uma espécie de férias do mundo, permitindo que respire sem sentir culpa de estar relaxando enquanto o resto da sociedade trabalha normalmente. Este contraste, diga-se de passagem, poderia até gerar discussões instigantes pelo que revela sobre os personagens; em vez disso, Assayas prefere retratar os irmãos trocando referências culturais antigas ou conversas entre Paul e a filha pequena sobre como esta tem assistido à Netflix sem autorização da mãe.

Sim, uma narrativa eficaz poderia perfeitamente ser construída a partir de cenas que soam triviais, mas aqui a trivialidade parece ser o ponto, como se o cineasta acreditasse que a humanidade de suas criações está diretamente relacionada à capacidade que estas demonstram de se irritar com o fato de o lixo não ser recolhido no dia certo. Esta superficialidade é ecoada também nas sessões de terapia do protagonista, que soam como um clichê determinado a ridicularizar os psicológos através da caricatura, ao passo que a relação de Paul com uma mulher mais jovem segue este padrão ao tentar gerar humor com o fato de Morgane não ser capaz de identificar as referências mencionadas pelo namorado e o cunhado (por outro lado, Assayas a retrata como uma mulher inteligente, bem informada e experiente no setor cultural, contradizendo a premissa de sua “piada” e expondo-a como o que é: uma bobagem preconceituosa).

Sem conseguir trazer algum interesse visual para um roteiro completamente centrado em diálogos, Hors du temps ainda peca por certo esnobismo intelectual exibido pelos personagens e que o filme não apenas não reconhece como parece admirar, o que me leva a questionar até que ponto Assayas, também autor do roteiro, concebeu Paul como um avatar autobiográfico. Suspeito que a resposta possa gerar decepção nos fãs do realizador.

17 de Fevereiro de 2024

Sobre o autor:

Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.
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