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Festival de Berlim 2024 - Dia #03 Festivais e Mostras

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Dia 03

8) Como já discuti em textos sobre várias obras de ficção científica ao longo dos anos, as qualidades mais admiráveis em uma produção do gênero residem não necessariamente na originalidade do conceito que criam e apresentam, mas na maneira como desenvolvem suas ideias. Aliás, até premissas já batidas podem se tornar fascinantes quando exploradas de forma ambiciosa: ler uma história de Ted Chiang, por exemplo, é sempre surpreendente; quando julgamos ter chegado aos limites da ideia central, ele encontra novos caminhos para expandi-las.

Infelizmente, não é o que ocorre em Another End, longa dirigido pelo italiano Piero Messina a partir de um roteiro que co-escreveu com três outros profissionais (geralmente um mau sinal): Giacomo Bendotti, Valentina Gaddi e Sebastiano Melloni. Ambientado em um futuro não definido, o filme gira em torno de uma tecnologia que permite que as memórias (e supostamente a consciência) de pessoas falecidas sejam implantadas em um hospedeiro vivo, ressuscitando-as temporariamente até que um número limitado de “sessões” se esgote – e a proposta é a de que isto permita que a família possa se despedir apropriadamente do parente amado. Um destes possíveis clientes é Sal (Gael García Bernal), que perdeu a esposa em um acidente de carro no qual ele dirigia e que, consumido pelo luto e pela culpa, não consegue processar a perda e tampouco se obrigar a “ressuscitar” a companheira – cedendo apenas graças à insistência de sua irmã Ebe (Bérénice Bejo), que trabalha na corporação detentora do processo. Aos poucos, Sal se vê dependente das sessões para sobreviver e se torna obcecado com a hospedeira escolhida para abrigar a consciência da esposa, Ava (Renate Reinsve).

Como é possível perceber, as implicações da premissa são vastas e repletas de potencial: o que define a identidade de uma pessoa? A coleção completa de todas as suas memórias seriam capazes de defini-la? Ou de permitir a antecipação de sua reação a novas experiências? O que define “consciência”? Quais seriam os aspectos éticos de trazer alguém (ou sua consciência) de volta à vida como forma de aliviar a dor de seus familiares – especialmente sabendo que este retorno seria provisório?

Em vez de mergulhar nestas questões, Another End opta por investir em um gimmick, em um truque narrativo cujos possíveis efeitos dramáticos permitem que os quatro roteiristas deixem de fazer o trabalho pesado de desenvolver temas, concentrando-se em algo mais superficial.

O mais triste é que pontualmente podemos vislumbrar o potencial do projeto: a cena inicial situada no apartamento de uma vizinha de Sal, por exemplo, é dirigida por Messina com um toque de estranheza suficiente para sugerir um subtexto desconfortável sem expor de imediato o que provoca este incômodo, usando um espelho para revelar o que ocorre no fora de campo situado atrás da câmera – uma escolha interessante como apresentação e que depois é trocada por opções mais óbvias. Enquanto isso, Bernal, um ator sempre capaz de conferir humanidade aos seus personagens, torna a dor do protagonista palpável, sendo particularmente notável como ele permite que testemunhemos o exato instante em que seu personagem, antes resistente à ideia de ver a esposa com outro corpo, aceita aquela realidade e consegue identificar a amada por trás do rosto desconhecido. Do mesmo modo, Renate Reinsve aproveita a oportunidade de essencialmente interpretar duas personagens, diferenciando-as através do registro de sua voz, que desce um tom ou dois como Ava, e do olhar, que salta da energia otimista de Zoe para a exaustão cínica de sua hospedeira. Para finalizar, Bérénice Bejo fica presa a um papel ingrato, de uma única nota, que ganha dimensão adicional quando já é tarde demais para possamos apreciá-lo.

Outro problema do longa reside em sua dificuldade de estabelecer claramente o tempo transcorrido ao longo da narrativa, o que é um fator essencial se considerarmos que é justamente a limitação das sessões que confere urgência à situação; por outro lado, a montadora Paola Freddi alcança alguns bons efeitos através de justaposições dolorosas, como ao saltar bruscamente de um momento de alegria entre Sal e Zoe para outro no qual a hospedeira está sendo transportada ao fim de mais uma sessão (o que é feito, numa profunda falta de sensibilidade por parte da empresa, em um invólucro similar a um saco mortuário).

Acionando o botão de autodestruição em seus três ou quatro minutos finais, quando lida com determinado ponto do roteiro de uma maneira absolutamente desastrosa ao parecer mais interessado em insultar o público do que surpreendê-lo de alguma forma com suas escolhas dramáticas, Another End poderia ter sido uma pequena joia em vez de uma grande decepção. 

9) Há idealismo naqueles jovens, mas também uma perigosa inocência. Determinados a combater o regime nazista na Alemanha de 1942, eles contrabandeiam um rádio de ondas curtas para que possam trocar mensagens com os soviéticos (com o objetivo de, na melhor das hipóteses, passarem informações sobre avanços do exército de Hitler, já que um integrante do grupo talvez tenha acesso aos planos militares), produzindo também panfletos revolucionários, pichando muros com palavras de ordem e informando os familiares de soldados capturados pelos Aliados de que estes ainda se encontram vivos (algo que descobrem escutando transmissões radiofônicas produzidas em alemão e proibidas pelos nazistas). Ao mesmo tempo, eles desempenham aquelas missões entre risos empolgados, quase como se estivessem em uma brincadeira – e quando finalmente são presos, a realidade não demora a tirar o sorriso de seus rostos idealistas, ingênuos e até então esperançosos.

Dirigido por Andreas Dresen a partir do roteiro de Laila Stieler, De Hilde, Com Amor (In Liebe, Eure Hilde) já tem início com a prisão da personagem-título (Liv Lisa Fries), que, em gravidez avançada, participava de uma pequena célula revolucionária que incluía o marido Hans (Johannes Hegemann). O que chama a atenção nesta introdução, por sinal, é a relativa gentileza com que é tratada pelos responsáveis por levá-la e que a aconselham a colocar uma roupa quente na bagagem (um deles chegando a pedir permissão para tocar em sua barriga). Submetida a um interrogatório extenso, mas no qual a violência é sugerida e jamais colocada em prática, ela acaba por confirmar sua ligação com os demais – e mesmo que tenha que se submeter à humilhação de despir-se publicamente, nada do que testemunhamos parece sugerir a brutalidade habitual de regimes fascistas. Sim, durante seu parto, o obstetra ameaça casualmente decapitar o bebê caso este demore a nascer, mas a enfermeira presente se mostra infinitamente mais gentil e cuidadosa – e até a carcereira que fiscalizará Hilde suaviza-se com o passar do tempo, enquanto o pastor que a visita ocasionalmente exibe doçura e compreensão.

Mas antes que surja a impressão de que De Hilde, Com Amor relativiza a crueldade nazista, humanizando seus colaboradores, é importante ressaltar o que todas aquelas pessoas não fazem: questionar o sistema frio, cruel e intolerante que não apenas governa o país como trata qualquer dissenso como um grave ato de traição. Pior: para que possam viver com suas próprias consciências, elas acabam por encontrar diversas maneiras de relativizar o horror que ajudam a viabilizar – e em certo momento, por exemplo, o pastor relata que três conhecidos da protagonista “faleceram ao mesmo tempo”, eliminando o elemento mais crucial da frase: o de que foram executados. De forma similar, esta propensão de fechar os olhos é reproduzida até mesmo por pessoas comuns como a mãe de Hilde, que, ao falar sobre uma amiga judia, conta que esta está em uma “viagem de recreação” apesar de ter informações suficientes para saber o destino real da mulher.

Adotando uma estrutura inteligente que intercala a jornada de Hilde pelo sistema judicial e carcerário do regime nazista com flashbacks que voltam cada vez mais no tempo para resgatar como conheceu Hans e se envolveu na luta contra o fascismo, o filme alcança um efeito curioso, justapondo momentos cada vez mais desesperadores com outros cada vez mais leves e esperançosos – algo refletido pela fotografia de Judith Kaufmann, que alterna entre os tons quentes e frios e o saturamento/dessaturamento das cores como um código que, mesmo óbvio, é o ideal para a narrativa.

Com um desfecho direto cuja simplicidade representa a escolha mais impactante, De Hilde, Com Amor é uma obra que ilustra como o horror dos atos dos grandes monstros é viabilizado pelo silêncio de seus pequenos colaboradores – e também como o idealismo da juventude é ainda a maior esperança que o mundo tem para não ser destruído pelos “adultos” que o controlam.

10) Treasure é o tipo de produção “inspirada em fatos reais” que o espectador imediatamente percebe que incluirá fotos das pessoas reais que a “inspiraram” nos créditos finais. Escrito pela diretora Julia von Heinz ao lado de John Quester, o filme adota a estrutura de road movie para tentar fazer o que estes têm uma tendência natural de produzir: uma narrativa sobre duas (ou mais) pessoas que, em conflito contínuo, aos poucos aprendem um pouco mais uma sobre a outra até atingirem um entendimento catártico, indicando como a estrada que percorreram é uma metáfora da jornada interna que abraçaram. Abram espaço para as lágrimas, os letreiros subindo e as indicações ao Oscar.

Neste caso, a “jornada” é organizada pela jornalista Ruth (Lena Dunham), cujos pais foram os únicos integrantes de suas famílias a sobreviverem ao campo de extermínio de Auschwitz e que agora, após perder a mãe, decide visitar a Polônia para conhecer a cidade natal de seus familiares e, talvez, descobrir algo mais sobre a história destes. Acompanhada pelo pai Edek (Stephen Fry), que o faz por julgar que aquele país ainda representa perigo aos judeus (o filme se passa em 1991, vale ressaltar), Ruth se vê constantemente frustrada pelas mudanças de plano provocadas pelo sujeito, cujo temperamento bonachão é contraposto por sua recusa em discutir detalhes sobre o que vivenciou durante o Holocausto.

E por que ele deveria compartilhar o que quer que seja com Ruth, que se mostra insensível a ponto de não perceber por que embarcar em um trem na Polônia despertaria gatilhos emocionais no pai? Constantemente irritada, ela se entrega à compulsão alimentar durante as madrugadas, esvaziando o frigobar de seu quarto de hotel apenas para forçar o vômito em seguida e voltar a consumir sementes no café da manhã enquanto ouve Edek apontar como é solitária e deveria voltar para o ex-marido – uma insistência desrespeitosa que o roteiro trata como algo divertido e, pior, correto.

Aliás, a incapacidade da diretora de perceber o equívoco de várias de suas decisões criativas chega a impressionar: em certo momento, por exemplo, ela introduz uma montagem engraçadinha que acompanha Ruth praticando jogging pelas ruas da cidade e confundindo-se com o mapa que levou para se orientar – o que, por si só, já seria questionável considerando o tema da obra. Porém, a coisa se torna ainda pior quando a protagonista se depara com uma mulher que, obviamente faminta e acompanhada de filhos pequenos, tenta lhe vender objetos usados como um ferro de passar roupa e uma escova de dentes – algo que von Heinz trata como piada ao retratar Ruth atrapalhada com todos os itens que aquela mãe pobre e desesperada insiste em lhe entregar em troca do dinheiro que recebe. De maneira similar, Treasure denota sua xenofobia ao retratar Edek exibindo um comportamento nada apropriado ao insistir em conversar com a filha sobre a frequência com que esta faz “o sexo”, conseguindo, em uma só tacada, ridicularizar a dificuldade do imigrante com o inglês e pintar os estrangeiros como criaturas excêntricas que não distinguem o limite da intimidade alheia.

Aqui e ali, o filme até encontra soluções narrativas razoáveis, como ao incluir os ecos de sons do passado quando Edek se recorda de sua chegada a Auschwitz ou ao apontar como os familiares daqueles assassinados durante o Holocausto não têm sequer um túmulo sobre o qual possam chorar, mas estas são exceções raríssimas em um projeto que, para ilustrar como determinado personagem é carismático e cheio de vida, recicla pela milionésima vez a imagem deste cantando e dançando sobre um palco (em uma festa, restaurante ou bar de hotel) enquanto todos os demais presentes celebram enlouquecidos a sua mera presença. Enquanto isso, Ruth insiste em manter a expressão fechada e em distribuir patadas em quem estiver ao seu redor, chegando a humilhar o recepcionista de um hotel para dar uma lição de moral superficial que ressalte sua própria superioridade (e que ela repete posteriormente com uma guia de turismo por agir como… guia de turismo – que ela contratou, por sinal).

Recheado de diálogos que variam entre a tolice, o clichê e o expositivo, muitas vezes combinando os três (“Eu sinto falta de sua mãe”. “Eu sei. Eu também. (pausa) Já faz um ano”.), Treasure ainda inclui passagens nas quais vemos a personagem de Dunham praticando o que pode ser interpretado como automutilação ao tatuar em si mesma, de forma improvisada, números como aqueles que os nazistas marcaram na pele de suas vítimas – uma ação que, como a bulimia da personagem, parece ter sido adicionada apenas para oferecer à atriz algo mais para fazer além de gritar em um elevador para que os estranhos que a cercam parem de rir (uma cena pavorosa que se torna pior pela péssima direção dos figurantes, que gargalham como se estivessem em uma sátira).

Desperdiçando até mesmo o carisma de um ator inteligente como Stephen Fry (mas que também se entrega ao estereótipo do estrangeiro “espontâneo” e sem filtros), Treasure é desde já um forte candidato a pior filme de 2024.

18 de Fevereiro de 2024

Sobre o autor:

Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.
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