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Festival de Berlim 2024 - Dia #04 Festivais e Mostras

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Dia 04

11) Estamos em 2024, mas os estragos provocados por séculos de políticas colonialistas por parte de nações ricas e poderosas continuam a definir as difíceis condições de vida de boa parte das populações africanas e sul-americanas – e não apenas pela exploração das riquezas naturais dos países invadidos ou da conversão de seus habitantes em escravos (que, tratados como mercadoria, eram “exportados” para outros continentes e afastados de tudo que conheciam), mas também pelo sequestro da cultura e da identidade destes povos, que eram então tratadas como prova de como estes eram “exóticos” através da conversão de seus símbolos em meros objetos de exposição.

Em Dahomey, ótimo documentário dirigido pela cineasta franco-senegalesa Mati Diop, acompanhamos o retorno de 26 destes objetos ao Benim, como hoje se chama o território antes ocupado em grande parte pelo Reino de Daomé (Dahomey) e invadido pelos franceses no século 19. Iniciando com o cuidadoso encaixotamento das peças, Diop logo salta para a recepção destas em seu país de origem, já que trata-se de um filme não sobre partidas, mas chegadas – ou melhor: retornos. Assim, vemos a celebração do povo beninense nas ruas diante desta pequena vitória e acompanhamos as reformas do museu que irá abrigar os itens, constatando a importância do evento para a nação.

Igualmente interessante é o recurso empregado pela cineasta para expressar a violência que o roubo original daquele patrimônio representou e a lacuna história que ajudou a criar: uma narração em off feita por uma das peças, a de número 26, que representa um dos antigos reis da região e que se questiona sobre a possibilidade de que sua ligação com suas raízes seja restaurada. Além disso, é claro que Diop inclui inúmeros e belíssimos planos-detalhe que expõem as texturas, cores, rachaduras, falhas na pintura e a personalidade daquelas obras.

Porém, um dos elementos narrativos mais instigantes de Dahomey é o longo debate entre jovens universitários (algo que Diop organizou) sobre suas percepções acerca do retorno dos 26 objetos: há aqueles que o celebram como uma pequena vitória e outros que chegam a vê-lo como um insulto, já que nada representariam diante do total de sete mil itens saqueados pelos invasores franceses. Ao mesmo tempo, o evento permite o apontamento importante de como, de uma forma ou de outra, a devolução não soluciona o roubo de uma cultura e a imposição de outra, já que o simples fato de todos ali usarem o francês como língua oficial expõe como recuperar bens imateriais é algo impossível – e não por acaso, a estudante que expressa esta frustração faz questão de pronunciar parte de sua fala usando a língua Fom de seus ancestrais.

A mesma que Matt Diop, numa demonstração de coesão história e inteligência emocional, usa na narração em off da estátua do velho rei Ghezo.

12) Com um leve casaco verde sobre o vestido com detalhes vermelhos, a francesa mantém conversas surpreendentemente pessoais com indivíduos sul-coreanos que mal a conhecem: eles confessam frustrações de toda uma vida, assumem quando são mesquinhos ou narcisistas, derramam lágrimas e discutem sua apreciação por certos poemas e livros. De tempos em tempos durante as interações, a estrangeira tira um bloco de anotações da bolsa, resume o que apreendeu dos sentimentos expressados em algumas frases em sua língua natal e faz novas perguntas, entregando os papéis aos seus clientes ao fim do encontro.

Residindo na Coreia do Sul, Iris se reinventou como professora de francês; seu método consiste em levar seus alunos a repetirem frases que, contendo reflexões íntimas, facilitarão sua compreensão do idioma – um conceito que ela admite ter criado há apenas dois meses quando decidiu que precisava fazer alguma coisa para ganhar dinheiro no país.

Terceira colaboração entre a atriz Isabelle Huppert e o cineasta sul-coreano Hong Sang-soo, A Traveler´s Need (Yeohaengjaui pilyo) é, como já poderíamos esperar do realizador, uma obra construída a partir de longas cenas rodadas em planos únicos e estáticos que permitem que o elenco mergulhe em suas performances em um tom que, embora soe improvisado, logo se revela bastante estruturado a partir de diálogos específicos. Concentrando-se na interação entre Iris e apenas quatro outros personagens (seis se contarmos a mãe de um deles, com a qual ela conversa por alguns segundos, e uma estranha para a qual pede uma informação), o roteiro permite que a veterana crie uma figura intrigante, já que seu passado, suas razões para se mudar para a Coreia do Sul e o que realmente sente diante do que ouve permanecem um enigma; quando ela se afasta com seus passos curtos e rápidos, a câmera inicialmente tende a permanecer ao lado de seus interlocutores, como se temesse segui-la e eliminar o mistério que representa.

Aliás, mesmo quando a acompanhamos em instantes prosaicos, como ao almoçar aqui ou ler um poema ali, nada aprendemos de fato sobre Iris, cujos modos ora soam encantadoramente espontâneos, ora desajeitadamente estudados (como ao soltar risos repetidos que parecem um flerte adolescente). De maneira similar, se é honesta ao assumir para uma nova aluna que criou seu método há pouco tempo e sem qualquer embasamento (talvez seja apenas incapacidade de perceber o que há de errado nisso), por outro acaba transparecendo certo maniqueísmo ao lidar com o jovem Inguk (Ha Seong-guk), que a conheceu em um parque e lhe ofereceu hospedagem em seu pequeno apartamento – e Huppert, com sua composição distante que comunica algo quebrado dentro da protagonista, denota instabilidade psicológica suficiente para sugerir que talvez a mãe do rapaz, vivida por Cho Yun-hee, não esteja sendo paranoica ao preocupar-se com o filho.

Igualmente reveladora é a interpretação que Iris oferece sobre as confissões de seus alunos ao resumi-las a poucas frases, quando escreve sentenças rígidas, críticas, mesmo cruéis sabendo que serão repetidas diversas vezes por aquelas pessoas. Por outro lado, o fato de quase todos repetirem “confissões” quase idênticas pode apontar em duas direções: se encararmos estas repetições como representações objetivas, podem indicar tanto falta de sinceridade real ou – mais interessante – uma crítica de Sang-soo às convenções sociais de seu país; se como representações subjetivas de Iris, como a sugestão de que ela nem se preocupa em ouvir realmente o que os alunos dizem, concentrando-se mais em si mesma (e na bebida) do que no mundo exterior. Não é à toa que todos que a encontram tentam tocar música para impressioná-la, sendo rapidamente abandonados enquanto ela sai para fumar.

Esta abertura a leituras tão distintas, claro, é um mérito do cineasta, que mesmo com sua simplicidade estética (como ao corrigir os quadros com rápidos zooms ins e outs para se ajustar aos atores e seus movimentos) consegue criar um universo tão particular em suas sensibilidades autorais, mas tão universal nas inseguranças e peculiaridades de seus habitantes.

13) Acho até que é possível que alguém se divirta com L´Empire, novo trabalho do francês Bruno Dumont, já que as risadas esparsas que ouvi durante a sessão do longa no Festival de Berlim indicam que ao menos algumas pessoas estavam achando hilário o que ocorria na tela. No entanto, com exceção de uma ou duas breves passagens (nem estou falando de cenas inteiras, mas de um ou dois pedaços de cena), minha reação ao filme foi a mesma que experimento quando na cadeira da dentista: um profundo desejo de que aquilo acabasse logo.

Escrito pelo próprio cineasta a partir do que presumo ser um profundo desejo de brincar de dirigir Star Wars, o longa se passa em um vilarejo no norte da França que servirá de palco para uma batalha entre criaturas alienígenas que representará “a luta final que exterminará todas as raças, com exceção de uma” – um conflito centrado em torno de Wain, que concentra tudo que há de mais maligno no universo na forma de um bebê adorável. Concebido pelos “0” (zero), o bebê Wain deve ser destruído pelos bondosos “1” (um) antes que cresça, o que obriga representantes de ambos os povos a assumirem forma humana e se misturarem entre os habitantes do lugar enquanto secretamente conspiram uns contra os outros, cometendo aqui e ali uma decapitação com o uso de sabres de luz.

(E, sim, Dumont representa o binarismo entre o Bem e o Mal ao batizar suas espécies de 0 e 1 – o que, considerando todo o resto, é uma das decisões menos questionáveis do projeto.)

Escalando não-atores em papeis importantes ao lado de alguns profissionais como Camille Cottin, Fabrice Luchini e Lyna Khoudri, Dumont tenta uma abordagem quase bressoniana na condução das performances, mas com o propósito de extrair graça (ou tentar) da natureza inexpressiva destas. Ao mesmo tempo, ele permite que um ou outro intérprete mais experiente vá na direção contrária, criando composições que a palavra “caricatura” seria fraca para descrever – e Luchini, como um vilão bufão, é o maior exemplo disso. Por outro lado, a direção de arte contrapõe as paisagens prosaicas às intrusões alienígenas ao conceber naves grandiosas que se inspiram, para citar apenas a mais interessante, na arquitetura de catedrais, usando o que parecem arcos de concreto no lugar do metal que sempre constitui estas máquinas (e seguindo a lógica, muitos de seus painéis de vidro são vitrais multicoloridos).

As virtudes de L´Empire se encerram aí – e mesmo algumas delas, como a conceitualização das naves, são prejudicadas pelos efeitos visuais medíocres. Já os problemas são inúmeros, a começar (para repetir o ponto) dos efeitos digitais usados não só para criar os veículos espaciais, mas até outros teoricamente mais simples, como a decapitação via sabre de luz e a bolha preta flutuante que serve como Siri do vilão. Além disso a trilha sonora* tem o hábito de tentar pontuar quando alguma cena ou personagem deve ser visto com humor (como a dupla de policiais que investiga todos os estranhos fenômenos locais), o que é seguido pela fotografia, que emprega a grande angular próxima dos atores em busca do mesmo tom de “comédia”.

Enquanto isso, Dumont exibe não apenas um senso de humor juvenil (no pior sentido da palavra) como também a percepção sexual típica de um pré-adolescente educado antes da década de 60, enxergando as mulheres – mesmo aquelas que na realidade são alienígenas e apenas assumiram a forma feminina – como criaturas naturalmente emotivas e irracionais que se apaixonam imediatamente depois de uma experiência sexual, encarando como rival qualquer mulher que se aproxime de seu amado. Aliás, como não poderia deixar de ser, o diretor aproveita qualquer oportunidade para incluir uma desculpa para que as jovens atrizes removam as roupas – e se você leu o texto que escrevi sobre Love Lies Bleeding, publicado logo acima deste durante a cobertura da Berlinale, sabe que estou longe de ter uma posição moralista quando se trata de representação de sexo ou nudez na tela.

Apresentando uma estrutura desconjuntada, como se as cenas fossem justapostas quase ao acaso (em certo momento, a personagem de Anamaria Vartolomei está seguindo inimigos na areia; no seguinte, está ao lado do subalterno Rudy (Julien Manier) observando naves que se posicionam no céu em uma elipse que o montador* não chega nem perto de conseguir insinuar), L´Empire soa como uma brincadeira entre crianças na qual estas vão encenando em tempo real o que estão imaginando. Algo triste para se dizer sobre um filme roteirizado e dirigido por um homem de 65 anos de idade.

Ao menos, o resultado é melhor do que A Ascensão Skywalker.

*Curiosamente, os nomes dos(as) responsáveis pela montagem e pela trilha não estão listados no IMDb; quero imaginar que tenham removido por puro embaraço.

14) Não seria muito produtivo antecipar uma experiência alegre ao assistir a um filme intitulado Morrendo (Sterben), mas não creio que seja absurdo esperar algo além da ideia de que todos morrem, que a idade avançada traz uma série de indignidades e que... bom, a vida continua, bebês nascem, amores surgem e a Arte renova. Ao mesmo tempo, de um modo ou de outro, algum ou vários destes temas (se podemos chamá-los assim) são o adubo da maior parte da produção artística ao longo da História, então talvez seja inevitável. Ainda assim, certamente há formas de abordá-los com originalidade ou com mais sutileza ou...

... pois é. Este trabalho do alemão Matthias Glasner me dividiu: se aprecio sua sinceridade (e a dedicatória final expõe o quão pessoal é o filme), por outro não consigo evitar a frustração de ter assistido a três horas de projeção sem sentir nada além de admiração ocasional por algumas escolhas narrativas.

Uma destas escolhas é a surpresa representada por sua introdução, que, ciente das expectativas do público geradas pelo título, nos presenteia imediatamente com um vídeo engraçadinho de uma garotinha filosofando sobre a vida, seguindo-o com créditos coloridos e música alegre que estariam mais à vontade em uma produção infantil do que em uma obra que logo depois de exibi-los corta para a imagem de uma idosa coberta pelas próprias fezes e pedindo ajuda para o marido com demência que saiu nu para buscar socorro.

Escrito pelo diretor a partir de experiências pessoais (e nem preciso ler suas entrevistas para saber disso), o roteiro se divide em capítulos para acompanhar os membros da família Lunies: Gerd (Hans-Uwe Bauer), Lissie (Corinna Harfouch), Tom (Lars Eidinger) e Ellen (Lilith Stangenberg). Casados há décadas e ambos com problemas graves e terminais, Gerd e Lissie atingiram um ponto em que já não podem mais viver sozinhos, posto que esta não consegue mais cuidar daquele – ainda que em alguns aspectos eles se complementem bem: ele não pode mais dirigir em função da demência, mas ainda enxerga bem; ela tem condições para guiar o carro, mas enxerga mal, dependendo das orientações do marido para não provocar um desastre (uma das poucas passagens genuinamente divertidas das três horas de duração do filme).

A estrutura segmentada, aliás, inicialmente é interessante por oferecer pontos de vista distintos que alteram nossa percepção sobre aquelas pessoas: se a princípio tendemos a julgar Tom um filho relapso quando vemos o desespero de Lissie ao pedir ajuda pelo telefone, mais tarde, testemunhando a conversa a partir do ângulo do sujeito, compreendemos se tratar na realidade de um filho até generoso demais – uma generosidade que se reflete em seu relacionamento com a ex-esposa Liv (Anna Bederke), da qual se divorciou há dez anos e que, agora grávida de um indivíduo que ela própria detesta, o mantém envolvido na gestação e, depois, nos cuidados com o bebê. Para completar a pressão, Tom se encontra no processo de conduzir uma orquestra juvenil que estreará uma composição de seu velho amigo Bernard (Robert Gwisdek), cujas inseguranças artísticas vêm dificultando todo o processo.

Eficiente nestes seus dois primeiros capítulos, Morrendo retrata a dinâmica tóxica entre LIssie e Tom de modo sutil: embora sempre manifestando felicidade quando o filho liga ou a visita, a mulher tem o hábito de emendar seus elogios com algum comentário negativo sobre a vida pessoal ou profissional deste, culminando numa cena extensa cuja natureza devastadora se torna ainda pior em função do tom polido da conversa que enfoca. Neste aspecto, por sinal, o cineasta aproveita bem as três horas ao permitir que cada cena se desenvolva em seu tempo; aliás, cena ou plano, já que há uma longa tomada que, sem cortes, retrata os minutos finais da vida de uma pessoa, atingindo um resultado que surpreende por soar quase... sereno (esta passagem me fez pensar no documentário Island, de 2007, no qual a morte de um paciente terminal é acompanhada por uma câmera). Dito isso – e indo na direção oposta em termos de atmosfera -, há também outra cena longa e tocante, mas sobre nascimento: no caso, da obra de Bernard enquanto Tom investiga com seus músicos novos tempos para a composição, diminuindo o ritmo para encontrar o sublime oculto sob a ansiedade do amigo.

Mas o grande e incontornável obstáculo que compromete Morrendo de vez é o capítulo sobre Ellen – e não por culpa da ótima Lilith Stangenberg ou do carismático Ronald Zehrfeld, que interpreta o dentista pelo qual a mulher se apaixona; não, o problema é um erro de cálculo colossal por parte de Glassner que quase destrói seu filme ao tentar demonstrar o nível da atração entre os dois personagens através de uma sequência absurda que culmina com um dente sendo arrancado sem anestesia, com um alicate imundo, no chão de um bar/pub/boate. Pior: sem conseguir ser engraçada ou projetar erotismo, ela interrompe o filme, que jamais volta a se recuperar totalmente.

Este elenco merecia uma obra melhor.

19 de Fevereiro de 2024

Sobre o autor:

Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.
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