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Dia 05
15) Um dos melhores filmes de 2019, Saint Maud marcou a estreia na direção de longas da britânica Rose Glass ao contar a história de uma enfermeira cuja determinação em salvar a alma de uma paciente terminal resulta em uma narrativa marcada por violência gráfica, incerteza quanto ao grau de subjetividade do que vemos, atmosfera carregada e performances intensas e memoráveis – características também presentes neste seu segundo longa, Love Lies Bleeding, que roteirizou ao lado de Weronika Tofilska.
Ambientado no final da década de 80 (mais especificamente em 1989, já que um personagem cita o efeito do lançamento de Duro de Matar meses antes sobre as visitas a estandes de tiro), o filme abre com planos-detalhe saturados e vibrantes do cotidiano de uma academia de musculação, revelando braços e pernas malhados e os aparelhos que assim os deixaram, até cortar subitamente para uma imagem menos estimulante: a de Lou, funcionária do estabelecimento, com a mão enfiada em um vaso sanitário enquanto tenta desentupi-lo. Com expressão pouco amigável, ela só não deixa a cidadezinha em que mora por preocupar-se com a segurança da irmã Beth (Jena Malone), vítima de constantes abusos físicos por parte do marido JJ (Dave Franco). Mantendo-se distante do pai, o perigoso Lou Sr. (Ed Harris), ela finalmente encontra uma razão para se animar quando uma desconhecida entra na academia certa noite: Jackie (Katy O´Brian), que está a caminho de Las Vegas a fim de participar de uma competição de fisiculturismo.
E dizer mais sobre a trama seria um pecado, já que um dos prazeres ao assistir a Love Lies Bleeding reside em ser surpreendido pelos acontecimentos e pelas reações dos personagens a estes.
Competente ao apresentar os habitantes de seu universo com economia, Glass precisa de apenas meia dúzia de planos para estabelecer quem são – isto quando não faz o trabalho com um só, como ao introduzir a figura grotesca vivida por Dave Franco através de um close que cobre a tela com sua expressão animalesca ao atingir o orgasmo. E se por vezes pode surgir a impressão de que a diretora não se importa com sutilezas (basta uma rápida olhada em Beth, com seu olho roxo e o braço imobilizado, para sabermos que apanha do marido), é porque de fato esta não é uma preocupação da obra – e se houvesse qualquer dúvida quanto a isto, bastaria testemunhar o fenômeno visual que é a composição física de Ed Harris para que esta desaparecesse.
Combinando de forma fluida uma abordagem estética naturalista (ainda que inspirada em parte pelos filmes de exploitation da década de 70) com instantes nos quais a estilização absoluta toma conta da tela, a fotografia de Ben Fordesman emprega – sem exageros – filtros vermelhos, câmera lenta, planos holandeses e plongées para evocar a intensidade do que retrata (e Harris é o principal contemplado por algumas destas técnicas). Enquanto isso, a direção de arte de Katie Hickman sintetiza o mundo deprimente, sujo e empobrecido daqueles indivíduos sem perder a oportunidade de usar as cores como signos sutis (como ao contrapor a caminhonete azul de Lou e o tom vermelho associado a seu pai, ilustrando o embate entre estes), o mesmo se aplicando aos figurinos de Olga Mill, que reforçam a ligação que prende Lou a Beth através do azul recorrente no visual desta última, por exemplo. E se a montagem de Mark Towns retrata com agilidade a proximidade cada vez maior entre Lou e Jackie em uma sequência na qual gemas de ovos, cigarros e vidrinhos de anabolizantes se complementam quase romanticamente, a trilha de Clint Mansell arremata o processo com brilhantismo, colaborando com as mudanças de tom da narrativa sem necessariamente ditá-las ao espectador.
Interpretando um dos personagens mais grotescos (e fascinantes) de sua carreira, Ed Harris contrapõe o visual extremo de Lou Sr. aos seus modos relativamente contidos e à sua voz baixa (“relativamente” porque não estaríamos falando de Harris se não explodisse em gritos raivosos aqui e ali), firmando-o como um vilão notável – em comparação, Dave Franco se torna um antagonista bem menos caricatural do que seria habitualmente, já que o padrão estabelecido por seu colega de elenco dita sua abordagem. Já Kristen Stewart, uma das melhores atrizes de sua geração, encarna Lou como uma mulher sempre tensa que parece estar constantemente à procura de algum motivo para explodir com as pessoas ao seu redor, embora acabe sufocando este instinto na maior parte do tempo (o que a torna ainda mais ansiosa). Inteligente tanto nos pequenos detalhes de composição (como ao brincar nervosamente com o lacre de uma lata de cerveja enquanto discute com Jackie) quanto nos elementos mais gerais (como ao adotar uma postura curvada que acentua sua exaustão e sua potencial brutalidade), Stewart ainda demonstra um ótimo timing cômico ao extrair graça de uma única palavra (“não”) no meio de uma das passagens mais tensas da projeção. Fechando o elenco, O´Brian é uma revelação (ao menos para mim, que não a conhecia), exibindo a fisicalidade essencial à Jackie enquanto projeta uma vulnerabilidade emocional que nos leva a torcer por ela – e pelo casal.
Tão explícito sexualmente quanto uma produção saída de Hollywood (mesmo que do sistema indie) poderia ser Love Lies Bleeding é um ótimo argumento contra a posição moralista daqueles que, lançando um olhar genérico sobre o Cinema, afirmam como cenas de sexo jamais são necessárias em um filme, já que é através da troca de prazeres que aquelas duas mulheres tão machucadas e fechadas para o mundo conseguem descobrir alguma saída.
Contando com um ótimo desenho de som que colabora para situar o longa numa fronteira que flerta com a fantasia ao ajudar a compor a trajetória física e psicológica de Jackie (se ele de fato cruza esta fronteira é algo sujeito a interpretações), Love Lies Bleeding é um exercício de gênero(s) que firma sua realizadora no topo da lista das grandes revelações dos últimos anos.
16) A esta altura de sua carreira, a cineasta paulista Juliana Rojas dispensa apresentações, mas listar seus belos trabalhos é um privilégio: Trabalhar Cansa, Sinfonia da Necrópole e As Boas Maneiras (o primeiro e o último codirigidos por Marco Dutra) são obras ambiciosas que combinam elementos de gênero com explorações temáticas complexas sobre relações pessoais, a vida em sociedade e a lógica opressiva do capitalismo. Em seu novo longa, Cidade; Campo, a realizadora mantém esta marca autoral e cria uma experiência com momentos memoráveis que, no entanto, falham em atingir a mesma coesão narrativa de seus antecessores.
Escrito pela própria diretora, o filme se divide em duas partes que contam histórias autocontidas: a primeira enfocando a migração de uma personagem do interior para um grande centro urbano; a segunda, a de duas outras mulheres na direção contrária. Abrindo a projeção com a chegada de Joana (Fernanda Vianna) na residência da irmã Tânia (Andrea Marquee) em São Paulo depois que a casa em que morava é destruída pelo estouro da barragem em Brumadinho, Cidade; Campo acompanha seus esforços para conseguir um trabalho e que a levam a se inscrever no aplicativo Diarex, descrito por seu sobrinho-neto Jaime (Kalleb Oliveira) descobre como uma espécie de Uber para contratar diaristas – e basta ouvirmos meia dúzia de palavras de uma representante da empresa para percebermos como o papo é sempre o mesmo, vendendo a precarização da mão de obra como “independência profissional”, o que na prática significa sugar o sangue dos funcionários sem ter que arcar com um centavo de direitos trabalhistas.
Encarnada com melancolia por Vianna, que evoca com eficiência sua dificuldade não só para se ajustar à metrópole como para processar o que perdeu (e processar quem a fez perder), Joana passa a ter visões do cavalo que mantinha em sua antiga propriedade e que foi morto pela lama da Vale, mas esta é apenas uma das várias experiências estranhas que vivencia – e que incluem também uma voz que a manda descansar, a aparição de um homem desconhecido em um reflexo e uma alucinação com o filho Getúlio. Estas intrusões sobrenaturais (ou apenas inexplicadas) em seu cotidiano fazem parte de uma estratégia narrativa na qual, como já dito, Rojas já investiu anteriormente, mas que aqui acabam soando sem muito propósito a não ser o do incômodo que despertam no espectador. O mesmo, aliás, pode ser dito sobre o interlúdio musical que traz Joana cantando uma canção sobre o cavalo Alecrim e que falha em ter o impacto de um instante similar de As Boas Maneiras – que, como este longa, também trazia um belo matte painting retratando o céu da cidade (mais um elemento estético em comum e que se soma à utilização de zooms para salientar a emoção dos personagens; um ótimo exemplo podendo ser encontrado no monólogo marcante de Ângela, vivida por Preta Ferreira).
Mas se a ligação de Joana com suas raízes é simbolizada pelo plano que enfoca seus pés acariciando a terra, uma conexão igualmente forte é criada pelo casal formado por Flávia e Mara (Mirella Façanha e Bruna Linzmeyer), que ancora a história seguinte ao viajar para o interior a fim de assumir a posse das terras que pertenciam ao pai da primeira depois que este é encontrado morto. Buscando um estilo de vida menos caótico e fora da supervisão constante da Internet, as duas mulheres decidem cuidar dos animais e plantar novas espécies de vegetais no solo que já se encontrava preparado – e é então que uma amiga do pai de Flávia, que não sabia de sua partida, chega ao local e acaba revelando que costumavam experimentar ayahuasca. Algo que as três fazem juntas, acelerando uma série de incidentes que levam o casal a questionar a decisão de viver ali.
Ainda que ao menos parte dos acontecimentos possam ser explicados desta vez por alucinações provocadas pelo chá, esta seria uma solução não apenas tola como reduziria Cidade; Campo a um mistério a ser resolvido em vez de uma tese a ser analisada. Além disso, não é difícil fazer suposições condizentes com a proposta de Rojas quando a presença de figuras espectrais indígenas surgem em um filme que exibe óbvia consciência sobre toda a brutalidade necessária para que aquelas terras saíssem das mãos dos povos originários. Em contrapartida, menos feliz é a decisão de Rojas de retornar à iconografia relacionada a lobisomens, já que isto apenas nos faz lembrar de como As Boas Maneiras era uma obra superior.
Beneficiado por um elenco predominantemente feminino e uniformemente competente, Cidade; Campo não representa uma decepção, já que conta com uma voz forte de uma cineasta talentosa, mas frustra por não ser um novo degrau criativo em sua carreira, parecendo estar mais interessado em reciclar o que já funcionou no passado do que em encontrar caminhos inéditos.
17) Críticos de Cinema não gostam muito de usar a palavra “chato” para descrever um filme – e há boas razões para isso: primeiro, que se trata de uma descrição simplista que não diz muita coisa, posto que “chatice” pode ser algo bastante subjetivo; e, segundo, que ser entediante não implica necessariamente em falta de qualidade narrativa (há vários filmes que mesmo “chatos” são excepcionais; aliás, alguns exigem certo grau de tédio para sua eficácia).
Dito isso, Pepe é chato pra caralho.
Perdoem-me, eu sei: trata-se de uma expressão vulgar que não deveria caber em um texto profissional, mas em conversas casuais. No entanto, depois de tentar evocar de outras formas o grau de chatice deste trabalho do dominicano Nelson Carlos De Los Santos Arias (até seu nome tem quer longo), constatei que nenhuma seria tão descritiva e honesta quanto a que usei.
Narrado por um dos hipopótamos descendentes daqueles que Pablo Escobar importou para a Colômbia no auge de seu poder (leia novamente o início desta sentença), Pepe – sim, este é o nome do bicho – busca ser um ensaio com tons surrealistas e humor absurdo, saltando entre imagens de arquivo, cenas originais criadas com atores, outras com abordagem “documental” e uma atmosfera melancólica provocada pelo fato de sabermos desde o início que o protagonista se encontra morto.
Pena que não tenha compreendido que mortos não falam, pois sua voz arrastada e cavernosa vai se tornando insuportável ao longo das mais de duas horas de projeção – um efeito potencializado por sua insistência em vocalizar o grunhido/ronco do animal (um “êh... êh... êh...” que emite a cada duas frases). Sem jamais dizer algo genuinamente divertido ou interessante, Pepe (personagem e filme) é uma tortura, uma estupidez, uma bobagem que só pode ter sido incluída na mostra Competitiva da Berlinale como pagamento de um aposta.
E é chato pra caralho.
18) Há quatro anos, ao cobrir o 70º. Festival de Berlim, apaixonei-me perdidamente por um documentário intitulado Gunda, que durante 93 minutos mergulhava o espectador no cotidiano de uma leitoa e alguns de seus companheiros em uma pequena fazenda. Sem buscar qualquer antropomorfização que provocasse uma identificação mais simples com o público, o filme apenas observava aqueles animais com atenção e sensibilidade, sendo beneficiado também por uma fotografia arrebatadora que convertia cada frame em preto e branco em uma pintura digna de museu.
Pois em Architecton, o documentarista russo Victor Kossakovsky volta a operar um pequeno milagre ao criar uma obra belíssima sobre... concreto. Aliás, logo nos primeiros minutos de projeção, a tela é tomada por um longo plano que acompanha o que parece ser um deslizamento de terra (mais tarde constataremos se tratar das explosões controladas em uma pedreira), permitindo, através da ĉamera lenta, que observemos cada rocha atravessando o quadro rumo à própria destruição, que virá do impacto com o chão (e com outras pedras) ou da força impiedosa de um triturador – que posteriormente também terá sua ação registrada em detalhes.
Transformando-se por alguns segundos em asteroides percorrendo o espaço (uma ilusão tão inspirada que eu precisaria revê-la para avaliar até que ponto há o envolvimento de truques de montagem), as pedras se tornam signos ao longo do filme, podendo remeter à beleza natural e à força do planeta, à engenhosidade humana, às ruínas que criamos ou à inexorável passagem do tempo, que ressalta o contraste entre a durabilidade do que erigimos e nossa própria efemeridade. Dono de um olhar admirável para composições, Kossakovsky trabalha ao lado do diretor de fotografia Ben Bernhard para criar passagens que merecem ser apreciadas em seus detalhes, desde a câmera flutuante que investiga a superfície de grandes estruturas de concreto até o plano estático que registra o saltitar de pequenas pedras em uma esteira rolante como se estivessem dançando ao som da trilha magistral de Evgueni Galperini, que oscila entre o sutil e o bombástico ao salientar como há muito no prosaico que merece ser visto como um autêntico espetáculo.
Aliás, Architecton consegue extrair beleza até daquilo que habitualmente enxergaríamos como pura destruição, como ao revelar os padrões de escavação que criam uma pirâmide invertida a partir da remoção sistemática de material ao invés da adição cuidadosa de blocos. Já em outro momento, uma imensa estrutura abandonada é apresentada quase como um projeto alienígena, o que é ecoa tematicamente com o breve plano que traz uma formiga passando diante dos padrões elaborados de uma coluna, comparando sua pequenez à nossa própria.
Pontuado por passagens que enfocam o arquiteto italiano Michele De Lucchi construindo um círculo de pedra em seu jardim (“É para durar uma vida”, ele explica), o documentário justapõe este processo de criação às imagens trágicas dos efeitos de um terremoto que devastou cidades inteiras na Turquia em 2023 – um fenômenos que de certa forma é visto como um revide do planeta depois de milênios sendo saqueado por seus habitantes e que envolve o processo das mudanças climáticas que tendem a tornar desastres assim uma ocorrência corriqueira.
E ainda que demonstre uma admiração óbvia pela engenhosidade humana, Architecton não consegue deixar de apontar a tolice inata de uma espécie que tanto destrói para construir apenas para posteriormente destruir o que construiu.
20 de Fevereiro de 2024