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Festival de Berlim 2024 - Dia #09 Festivais e Mostras

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Dia 09

29) É praticamente impossível discutir o longa grego Arcadia, dirigido por Yorgos Zois, sem abordar uma reviravolta que ocorre ainda no primeiro ato. De modo geral, uma revelação no início da narrativa é algo que eu trataria de modo bem mais casual do que outra que viesse ao fim do segundo ato, já que, por ser tão precoce, faria parte da base do filme – e, no entanto, trata-se de um conceito tão interessante que sinto-me obrigado a sugerir que saltem para a discussão sobre o próximo longa da Berlinale e só retornem a este texto quando já tiverem visto a obra.

Escrito por Zois ao lado de Konstantina Kotzamani, o roteiro tem início com o plano-detalhe dos pés calçados da psiquiatra Katerina (Angeliki Papoulia), que encontra-se adormecida no banco de trás do carro dirigido por Yannis (Vangelis Mourikis) rumo a uma tarefa pavorosa: reconhecer o corpo de sua esposa, que teria sofrido um acidente de carro ao lado do amante em um cidadezinha no litoral do país. Atordoado por descobrir a traição e a morte da companheira ao mesmo tempo, Yannis é obrigado a passar alguns dias no lugarejo enquanto espera a liberação do cadáver, optando por permanecer na mesma casa que ela havia alugado. Enquanto isso, Katerina o acompanha com olhar preocupado por saber de sua tendência à autodestruição – algo que já o havia levado a perder a licença para exercer a medicina depois de fazer uma cirurgia sob a influência de metanfetaminas. Porém, o sujeito insiste em ignorá-la, preferindo se torturar com as imagens que encontra no telefone da esposa e que a trazem na cama com o amante.

Quando a projeção atinge a marca de 15 ou 20 minutos, porém, algo começa a ficar claro (e volto a avisar sobre spoilers): Katerina é a esposa de Yannis; se ele não responde, é porque não a vê, já que está morta. Felizmente, quando começamos a temer que Arcadia esteja guardando esta revelação óbvia para seu desfecho, a mulher tem uma longa conversa com o espírito de um jovem falecido há anos e que lhe explica as “regras” do pós-vida, incluindo o fato de que os mortos ficam presos às pessoas que por algum motivo não conseguem se desligar daqueles que partiram.

Em outras palavras: são os vivos que assombram os mortos, impedindo-os de seguir em frente. A ideia pode não ser exatamente original, mas é uma inversão rara no gênero e que Zois executa com habilidade com a ajuda de Papoulia, que incorpora Katerine com a dose certa de arrependimento, mágoa e horror com a própria situação, ao passo que Mourikis (lembrando a versão octogenária de Al Pacino) deixa evidente desde o princípio como a vida de Yannis já se encontrava caótica bem antes daquela tragédia.

Banhada em tons frios que transformam a melancolia dos personagens no fio condutor da narrativa, a fotografia de Konstantinos Koukoulios também emprega a profundidade de campo reduzida para evocar a restrição da liberdade (e da consciência) dos fantasmas (na falta de um termo melhor), que demonstram uma solidariedade mútua inspirada pelo terror que compartilham – um apoio que inclui a disposição de provocarem orgasmos uns nos outros, já que esta é a única maneira para que se lembrem de incidentes importantes sem dependerem da memória dos vivos.

Aliás, o compromisso de Zois com a premissa de seu filme é forte o bastante para impedi-lo de usar este detalhe como fonte de humor (algo que seria quase inevitável), optando por retratá-lo com a mesma abordagem sóbria com que lida com os demais aspectos daquele universo – e assim, quando vemos um casal de espíritos fazendo sexo ao lado de seus antigos companheiros ainda vivos, a sensação que experimentamos não é de graça, mas de comiseração pela situação de todos os envolvidos. (Não que Arcadia seja desprovido de humor: é divertido, por exemplo, ver uma mãe enlutada empregando um objeto do filho falecido para tentar estabelecer contato mediúnico e notar que se trata de um calendário erótico.)

Incluindo ainda uma subtrama relacionada a um policial local e seu cachorro, Arcadia é uma obra sensível que não deixa de inspirar horror apenas por se recusar a seguir as convenções do gênero; a diferença é que os sustos são substituídos por lamento.

30) Longa de estreia do iraniano Aliyar Rasti, que também assina o roteiro, The Great Yawn of History (Khamyazeye bozorg) é a história de dois homens em busca de um sonho – uma definição mais literal do que o esperado – e que se mostram incapazes de aprender qualquer lição com as experiências que vivem.

Um destes homens é Beitoallah (Mohammad Aghebati), um sujeito que trabalhou a vida inteira esperando que um dia alcançaria uma condição que fizesse jus às suas aspirações, mas que no processo acabou apenas sendo abandonado pela família farta de seus delírios de uma possível grandeza futura. Obcecado por sonhos recorrentes que revelam um baú cheio de moedas de ouro localizado no fundo de uma caverna, ele decide encontrar um ajudante que possa entrar no local e remover o tesouro, já que suas crenças religiosas o impedem de fazê-lo – e é assim que conhece Shoja (Amirhossein Hosseini), que aceita o trabalho mesmo sem fazer ideia do que se trata, posto que qualquer coisa seria melhor do que viver nas ruas de Teerã por falta de casa, emprego e estudos.

Assim, enquanto acompanha a jornada de um homem desesperado sendo guiado por outro que beira a insanidade, o longa cria momentos de humor originados da exploração do ingênuo Shoja por seu novo patrão, cuja religião não o impede de tirar vantagem de alguém mais vulnerável: quando eles ficam sem lugar para dormir, por exemplo, Beitoallah oferece a mão de obra do rapaz em troca de hospedagem, descansando enquanto o outro mergulha até os joelhos em um lodaçal para ajudar a anfitriã e convencendo-o até mesmo a lhe fazer massagem ao final do dia.

Com uma estrutura de road movie, a obra desenvolve sua narrativa a partir dos encontros da dupla com desconhecidos ao longo de sua viagem, aproveitando também as locações diversas para salientar a extensão da jornada e a exaustão crescente dos personagens – especialmente em uma sequência ambientada no deserto e que Rasti constrói com eficiência a fim de ilustrar a sede e a fragilidade dos dois homens. Além disso, a química entre Aghebati e Hosseini colabora para que os instantes cômicos não fragilizem o drama que reside na essência de seus personagens e que justifica uma expedição absurda por natureza.

No fim das contas, porém, o cineasta não consegue contornar o despropósito que move aquelas pessoas, enfrentando um dilema embutido na própria premissa: caso elas encontrem o tal tesouro, o filme assume características de realismo fantástico, sabotando o sofrimento prévio; caso não encontrem, a trajetória corre o risco de soar injustificada e frustrante de um ponto de vista dramático – um problema cuja solução o longa jamais encontra.

31) Em 2018, a tunisiana-canadense Meryam Joobeur foi indicada ao Oscar pelo curta-metragem Brotherhood (Ikhwène), que contava a história de um jovem que retornava ao lar depois de viajar para a Síria a fim de se juntar ao ISIS/Daesh e que, agora acompanhado por uma garota grávida coberta pelo niqab e apresentada como sua esposa, é visto com rancor pelo pai até que a situação saia de controle. Tratava-se de um filme cuja força residia tanto em seu mistério quanto na reação à sua resposta, partindo de um fenômeno político real e preocupante (a radicalização movida não só por um discurso de violência, mas pela ação abusiva de quem se encontra no poder) para criar um drama familiar instigante.

Pois Who Do I Belong To? (Mé el Aïn) é uma expansão do curta realizada por Joobeur com o mesmo elenco principal e com uma premissa quase idêntica que, no entanto, se desvia consideravelmente do original em um aspecto importante que acaba por diminuir seu impacto ainda que amplie suas implicações simbólicas. Novamente interpretando o patriarca da família, Brahim, Mohamed Grayaâ é talvez o ator que mantém a maior consistência entre projetos, retratando a rigidez de um pai que não compreende como suas ações são corresponsáveis pelas decisões dos filhos mais velhos ao deixá-los sem alternativa viável em sua própria terra. Enquanto isso, Salha Nasraoui, como Aicha (a matriarca), incorpora as alterações do longa da melhor maneira possível, assumindo a responsabilidade de amarrar o realismo do curta com os aspectos fantásticos do longa sem perder o centro dramático de uma mãe cujo amor pelos filhos exige uma dissimulação que não lhe vem naturalmente tanto ao lidar com o marido quanto com os vizinhos. Já os jovens Malek Mechergui e Rayene Mechergui, irmãos na vida real, mais uma vez transportam para a tela uma dinâmica de afeto importante para que vejamos Mehdi como um rapaz que não deve ser definido por sua simpatia pelo ISIS. Fechando o elenco vêm dois novos nomes que, ao contrário dos Mechergui, atuam profissionalmente: Adam Bessa como o policial Bilal e Dea Liane como Reem (Liane que, diga-se de passagem, esteve no ótimo O Homem que Vendeu Sua Pele, cuja diretora Kaouther Ben Hania comandaria o excepcional As 4 Filhas de Olfa, documentário sobre uma mãe… cujas duas filhas mais velhas fogem para se juntar ao ISIS).

A distinção que compromete Who Do I Belong To? diz respeito às visões que Aicha tem em diversos momentos e que ajudam a introduzir um outro elemento fantástico/sobrenatural que, tratado de forma desajeitada pela diretora, desperta mais perguntas do que gera respostas – algo que não representaria problema caso as perguntas não servissem apenas para desviar a atenção do tema do longa. Pois o que acaba ocorrendo é que em vez de desenvolver as questões morais, políticas, econômicas e familiares que moviam Brotherhood, Joobeur leva o espectador a tratar o filme como um quebra-cabeças, como um mistério que inspira o público a tentar compreender como as revelações finais se encaixam no que havia visto quando deveria estar mais interessado em analisar as implicações do que testemunhou.

Este é um problema comum em longas medianos originados por curtas excelentes: a necessidade de ampliar a duração com frequência resulta em escolhas narrativas que enfraquecem o que os originais tinham de melhor sem compensarem a perda com novos elementos que enriqueçam as adaptações. Espero que em seus próximos projetos, livre para explorar novos materiais, Meryam Joobeur reencontre seu foco.

32) Oasis é um documentário enlouquecedor: rodado ao longo de três anos pelos chilenos Tamara Uribe e Felipe Morgado, o filme acompanha uma trajetória que apresenta grandes similaridades com incidentes políticos que os brasileiros conhecem bem, começando com uma série de protestos inspirados pelo aumento nas tarifas do transporte público que resultariam em um movimento de massa com o objetivo de provocar grandes mudanças no cenário político do país.

A diferença é que enquanto aqui este movimento resultou no crescimento da extrema-direita, em um golpe parlamentar e nas condições para que Lula fosse encarcerado e Bolsonaro chegasse ao poder (nomeando como Ministro da Justiça o mesmo homem responsável por tirar seu adversário da disputa), no Chile a situação soaria promissora por mais algum tempo, inspirando esperança em vez de desespero quando, na esteira dos protestos, um plebiscito indicou a vontade da maioria da população de ver uma nova Constituição tomar o lugar daquela que amarrava o país desde o regime ditatorial de Augusto Pinochet.

Infelizmente, o “por mais algum tempo” é o elemento determinante no parágrafo anterior, já que os trabalhos das comissões formadas para redigirem um novo texto constitucional logo passaram a ser sabotados por uma estratégia de desinformação implementada pela extrema-direita chilena e que, ampliada pela mídia corporativa, acabaria por comprometer todo o processo, levando a mesma população que havia enxergado a necessidade de uma nova Constituição a rejeitá-la quando finalizada.

Montado por Morgado e Uribe ao lado de Christopher Murray e Andrea Chignoli, Oasis descarta qualquer editorialização através de narração e opta por um registro direto dos acontecimentos em ordem cronológica, investindo tempo de projeção para acompanhar não só os movimentos sociais, mas também políticos e comentaristas conservadores, justapondo discursos como forma de ressaltar suas ligações causais – como, por exemplo, ao mostrar a comemoração dos integrantes da comissão de Educação ao conseguirem aprovar um texto importante apenas para que a vitória fosse eclipsada por boatos de que a nova Constituição iria “tomar os filhos” das pessoas a fim de doutriná-los (ah, sim: e também tomariam suas casas). Para piorar, várias das comissões contavam com integrantes com claros conflitos de interesse, como o empresário detentor de licenças de exploração de água que fazia parte do comitê que deveria definir o acesso à água como direito universal. (Aliás, há um corte fantástico em certo ponto, quando a imagem de um grupo de amigos abastecendo uma lancha luxuosa é seguida por outra que traz um caminhão-pipa enchendo a caixa d´água de uma casa humilde.)

Comprovando como a mentalidade reacionária pode mudar de bandeira, mas mantém os clichês, Oasis ainda traz manifestantes que se opõem à nova Constituição cumprimentando policiais militares e pedindo fotos enquanto carregam cartazes que associam paranoia anticomunista com bordões homofóbicos.

E ainda que poupe o espectador do resultado final do referendo sobre o novo texto, o documentário a esta altura já revelou o bastante para que qualquer otimismo quanto a este tenha nos abandonado, descartando a necessidade da informação.

26 de Fevereiro de 2024

Sobre o autor:

Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.
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