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Dia 10
33) Quando Betânia tem início, a pequena comunidade na qual a personagem-título vive está no meio do processo de velar seu marido (morto pelo “sal”, segundo a viúva). Cantando em volta de uma fogueira, seu velho amigo Ribamar (Tião Carvalho) lamenta que todas as músicas que o sujeito conhecia serão enterradas com ele, já que não havia deixado registros – e os documentaristas que ocasionalmente apareciam para filmá-lo não se preocupavam sequer em lhe enviar uma cópia em DVD do que haviam capturado. Esta falta de preservação de nossa cultura popular é um problema crônico e trágico em nossa história; ao apontá-lo, o longa de Marcelo Botta não apenas faz uma denúncia importante como tenta diminui-lo ao incluir várias canções locais em sua narrativa.
Rodado na comunidade que divide seu nome com a protagonista e em outras locações relacionadas aos Lençóis Maranhenses, o filme é construído a partir do cotidiano de Betânia (Diana Mattos), parteira que vive há décadas em uma casinha sem água encanada e cuja eletricidade é fornecida por um gerador. Mãe de três filhas (uma há muito falecida), ela divide o espaço com o neto Antônio Filho (Ulysses Azevedo) e com o genro Tonhão (Caçula Rodrigues), que recentemente decidiu aposentar o quadriciclo que usava para conduzir turistas – algo proibitivo com o preço do combustível – e passou a oferecer passeios a pé pelas dunas. Estes elementos, contudo, são apenas periféricos no longa, servindo para estabelecer uma estrutura básica na qual as verdadeiras preocupações do diretor/roteirista possam ser ancoradas: a realidade cotidiana daquelas pessoas e o modo como a região afeta suas vidas.
Ciente de que retratar a humanidade de indivíduos comuns pode ser um recurso dramático bem mais poderoso do que qualquer trama cheia de reviravoltas, Bota observa, por exemplo, os esforços de Antônio Filho para estudar apesar de todas as dificuldades: a distância até a escola, a falta recorrente de eletricidade enquanto estuda à noite e o fato de seu antigo colégio não oferecer turmas no ensino médio. Ao mesmo tempo, o cineasta evita romantizar a precariedade econômica da família mesmo que se mostre capaz de enxergar beleza em momentos como aquele em que Betânia lava roupas usando uma pequena plataforma erguida sobre a água de um rio ou cochila em uma rede pendurada sobre a superfície de outro.
Uma abordagem similar é utilizada na maneira com que os lençóis são apresentados na tela: sem negar a natureza ímpar daquela paisagem, que combina deserto e água em uma única área, Bota cria planos aéreos lindíssimos que estabelecem sua magnitude; por outro lado, reconhece também o caráter destrutivo das dunas, que são vistas como uma ameaça pelos moradores locais e assim retratadas na tela em algumas passagens que transformam o som do vento em um uivo predatório. Aliás, o ponto de vista dos habitantes da região é representado por sequências que assumem um tom documental e durante os quais Mattos (sempre incorporando Betânia) conversa com pessoas reais não apenas sobre questões como a das dunas, mas sobre a história local, abordando também problemas como a sujeira deixada pelos turistas – e um destes diálogos é mantido enquanto três senhorinhas surgem sentadas sobre o imenso galho de uma árvore semi-submersa em um plano magnífico.
Mattos, é importante apontar, faz um ótimo trabalho nestas sequências documentais sem jamais abandonar a composição da personagem, cuja força de caráter move a narrativa e cuja subjetividade é instrumental para que o filme possa explorar a cultura local não só através das músicas, mas do folclore – especificamente de sua relação com o Bumba, meu boi, já que em vários momentos a vemos dançando nas dunas com uma representação da figura tradicional da festa (estas sequências se situam entre memórias e representações metafóricas da própria natureza de Betânia e de seu apego à sua cultura natal).
Criticando a exploração de mercadores da fé – como o pastor evangélico que insiste para que uma das filhas da protagonista doe 10% não do que recebe mensalmente (nada), mas do que quer ganhar – e a arrogância associada à condescendência colonizadora de muitos turistas que visitam os lençóis sem se interessarem minimamente pela realidade do que veem, Betânia é uma obra multifacetada que pode até não resolver todas as suas linhas narrativas de uma maneira clássica (o que é frustrante até certo ponto), mas nos prende com sua sensibilidade ao dirigir nosso olhar para uma comunidade pequena e encantadora.
34) Na edição anterior do Festival de Berlim, o vencedor do Urso de Ouro foi o documentário francês No Adamant (Sur l´Adamant), de Nicolas Philibert, que nos apresentava à clínica psiquiátrica que dava título ao filme e que, ancorada no rio Sena em Paris, constitui uma iniciativa interessante e atípica para facilitar que pessoas com problemas de saúde mental tenham acesso a algum acompanhamento que as ajude a processar suas dificuldades. Pois este ano Philibert teve seu novo trabalho exibido em uma seção especial, não-competitiva, e que de certo modo é uma continuação daquele longa: rodado em duas unidades psiquiátricas do hospital Esquirol que emprestam seus nomes ao projeto, Averroès & Rosa Parks abre a projeção com uma vista aérea da estrutura da instituição, que remete a uma prisão e nos leva a antecipar um show de horrores – uma expectativa felizmente frustrada quando constatamos que, assim como os profissionais do Adamant, os responsáveis pelos tratamentos destes pacientes são de modo geral indivíduos dedicados que parecem realmente ter a saúde destas pessoas como prioridade absoluta.
Estruturado em torno das sessões (individuais ou em grupo) com os pacientes internados no hospital, o filme acompanha (e posteriormente edita e monta) estas conversas com um olhar respeitoso que compreende as dificuldades particulares de cada um, não importando se os maneirismos e as falas deste ou daquele indicam uma gravidade possivelmente maior de suas doenças. Sim, determinado paciente pode exibir tiques e distorções de realidade bem mais acentuados, mas isto não significa que um outro cujo discurso soa totalmente lógico não esteja sofrendo por, digamos, acreditar que esta retórica por si só será capaz de mudar o mundo. Aliás, um dos aspectos mais instigantes do documentário é estudar como cada indivíduo processa suas questões internas de modo revelador: enquanto um insiste em enxergar em dois outros pacientes as figuras de seu pai e avô, um outro se mostra obcecado em poder trabalhar para pagar impostos, pois acredita que só assim poderá se redimir por erros cometidos na juventude.
Mas não são apenas as fabulações que se mostram distintas; é curioso notar também como uns escancaram suas dores enquanto outros fazem o possível para ocultá-las – e Philibert, como diretor, diretor de fotografia e montador, é inteligente o bastante para saber quando sustentar um plano por tempo suficiente para que percebamos detalhes como o de um homem que mantém o olhar fixo e atento nos olhos da profissional que o atende, passando a desviá-lo assim que começa a falar. De forma similar, o filme demonstra uma estratégia comum entre os atendentes de jamais confrontar as fantasias dos pacientes por mais absurdas que sejam, buscando discuti-las sem tentar desmontá-las.
E embora este não seja o objetivo principal de Averroès & Rosa Parks, é impossível deixar de admirar os recursos oferecidos pelo Estado para aqueles que precisam de apoio psiquiátrico, mas não possuem condições financeiras de pagar por este – e em certo momento um dos médicos ressalta para um interno como este tem direito não apenas ao tratamento, mas de ajuda financeira para arcar com os custos de um apartamento (dividido com dois outros indivíduos em circunstâncias parecidas) enquanto prossegue em seu processo de recuperação fora do hospital. Por outro lado, é impossível ignorar como muitas questões de saúde mental são agravadas pelas profundas desigualdades econômicas e sociais do país, o que pode ser constatado através do histórico de várias daquelas pessoas – algumas destas atravessando toda a vida entrando e saindo de instituições enquanto são maltratadas nas ruas.
Dito isso, um aspecto da experiência de assistir a este filme em uma sessão lotada da Berlinale me provocou um profundo incômodo: os risos de parte da plateia em diversos momentos da projeção. Aparentemente julgando divertidíssimas as falas de pacientes psiquiátricos em estado de descolamento da realidade (temporário ou crônico), estes espectadores obviamente não compreenderam – ou não se importaram com – o fato de que, por mais absurdas que fossem, estas declarações expressavam a angústia de quem víamos na tela. A responsabilidade por isto, é fundamental esclarecer, não é de Philibert, que constrói a narrativa com respeito e sensibilidade, mas ainda assim não pude deixar de pensar em como os retratados talvez não tivessem condição de compreender totalmente as implicações de permitirem a utilização de suas imagens.
Por outro lado, obras como Averroès & Rosa Parks são importantes para que os tabus relacionados a hospitais psiquiátricos – e a doenças mentais de modo geral – sejam descontruídos, o que não resolve o conflito que expus acima, mas ao menos representa uma justificativa convincente para que, apesar deste, o filme exista.
35) Ben Gottlieb é o chazan (ou cantor) da sinagoga de sua comunidade e, como tal, tem a função de recitar as orações de um modo musicalizado durante os cultos – uma tarefa que não consegue executar desde a morte da esposa em um acidente há pouco mais de um ano. Deprimido e morando novamente com as mães Judith e Meira (Dolly De Leon e Caroline Aaron, respectivamente), ele ainda atua como orientador dos jovens que se preparam para o Bat Mitzvah, sendo surpreendido certo dia quando Carla Kessler (Carol Kane), que foi sua professora de música no colégio, surge em sua sala pedindo para que ele a guie para que ela possa participar da cerimônia, já que nunca chegou a fazê-lo quando adolescente.
Vivido por Jason Schwartzman, que o compõe como um homem acima do peso e com a postura de alguém que foi derrotado pelo mundo, Ben se esforça para lidar com a atenção excessiva das mães, que insistem para que ele tente se relacionar com alguém, e assim sua reação inicial diante de Carla é mais de incômodo do qualquer outra coisa. Porém, aos poucos esta basicamente o obriga a se abrir através de seu riso fácil, do temperamento alegre e da espontaneidade que o sujeito aparentemente jamais teve – e é um prazer ver uma veterana como Kane, que sempre teve um talento particular para viver personagens excêntricas, ganhar a oportunidade de coprotagonizar uma produção depois dos 70 anos de idade (algo que ela não desperdiça). Além disso, há a presença de Robert Smigel, que, apesar de ser um dos roteiristas de comédia mais influentes das últimas décadas, normalmente faz apenas trabalhos como dublador, ficando reduzido a papeis pequenos, que normalmente envolvem poucas cenas, quando participa de projetos em live action – e seu timing cômico em Between the Temples, que lhe oferece um espaço bem maior para exercitar seu talento como ator, é a comprovação de como ele deveria ter tido uma carreira bem mais rica diante das câmeras. (E um crédito especial deve ser dado à figurinista Holly McClintock apenas pela genialidade da gravata que criou para o personagem de Smigel, o rabino Bruce, que traz as fotos de suas filhas dispostas verticalmente em uma gag visual hilária.)
Assim, considerando o talento e a consistência do elenco, é uma pena que o filme seja constantemente sabotado pelo cineasta Nathan Silver, que, talvez por não confiar no roteiro que escreveu ao lado de C. Mason Wells, emprega todo tipo de distração em sua condução da narrativa – ou talvez sua intenção seja apenas a de deixar claro que o projeto tem um diretor, já que faz o possível para atrair a atenção para seu trabalho. Utilizando zooms frequentes sem qualquer função observável e investindo em primeiríssimos planos que se concentram em elementos específicos dos rostos de seus atores (como ao preencher a tela com a boca de Schwartzman enquanto este mastiga um sanduíche ou ao destacar os olhos de vários personagens sem que a troca de olhares seja relevante naquele momento), Silver chega a cometer erros básicos de composição, como na cena que se passa em um restaurante e na qual corta a cabeça do dono do estabelecimento quando este se aproxima e troca algumas palavras com Ben e Carla.
Do mesmo modo, a montagem investe em transições marcadas por flashes que simulam a superexposição da fotografia e em freeze frames que sugerem um esforço do realizador para emular a estética de produções da década de 70 – algo feito sem qualquer consistência, por sinal. Com isso, o efeito ao longo da projeção é de irritar o espectador com todas estas distrações, comprometendo o filme que, como se não bastasse, ainda é prejudicado por um desfecho artificial e mesmo covarde.
Mas quando Between the Temples confia no carisma e no talento de seus intérpretes, seu charme é inegável.
28 de Fevereiro de 2024