Dia 08
27) A humanidade de Ken Loach jamais deixa de me surpreender e enternecer. Diretor que encara sua vocação como um dever de iluminar histórias ignoradas e personagens esquecidos, o britânico construiu uma filmografia baseada na empatia e na compreensão de que em um mundo dominado por um sistema que não só permite desigualdades brutais como depende destas para existir, a Arte é uma das poucas ferramentas poderosas à disposição de quem não tem dinheiro para comprar um megafone.
Em The Old Oak, o veterano se concentra na xenofobia crescente no Reino Unido – aliás, em toda a Euripa – graças aos discursos de intolerância de um segmento ideológico cuja força reside na fomentação do ódio. Decadente como seu letreiro torto sugere, The Old Oak é o pub pertencente ao gentil TJ Ballantyne (Dave Turner), que se torna simpático aos esforços de uma família de imigrantes sírios que é alojada em um vilarejo pelos assistentes sociais responsáveis por integrá-la ao seu novo país, o que envolve ajudá-la com os poucos programas sociais disponíveis até que o patriarca, ainda incapaz de deixar a nação de origem, consiga se reunir à esposa e aos filhos.
Não demora muito para que alguns habitantes da região comecem a hostilizar abertamente os recém-chegados, destruindo a câmera fotográfica de Yara (Ebla Mari), sua posse mais preciosa, e manifestando o desejo para que a família se mude dali. Por outro lado, há aqueles que, como TJ, compreendem que aquelas pessoas não são o inimigo; que, ao contrário, são tão vítimas quanto elas – uma similaridade que ofende alguns daqueles que deveriam estar mais aptos a percebê-la, mas que insistem em se julgar superiores aos estrangeiros que, em sua visão, recebem benesses estatais que saem de seus bolsos (quando na realidade deveriam estar exibindo que estes programas se expandissem usando a taxação das fortunas gigantescas daqueles que realmente sugam o que podem do Estado enquanto fomentam o dissenso entre as classes economicamente mais frágeis.
Não que The Old Oak seja uma obra pessimista, já que a generosidade de Loach não comporta cinismo; de modo geral, o filme revela otimismo ao crer que, com informações suficientes, muitos que pregam a intolerância compreenderiam o erro de suas ações – e alguns dos momentos mais emocionantes do longa não giram em torno de situações trágicas, mas da compreensão e da gentileza de estranhos.
Habitado por uma galeria de atores não-profissionais que conferem autenticidade ao projeto com seus rostos expressivos que nada têm de glamurosos, The Old Oak contém uma passagem não muito comum na obra de Loach: uma reunião em uma igreja local que traz um discurso apaixonado sobre aceitação e respeito ao próximo – pois às vezes é necessário dizer o óbvio em um mundo cuja cultura é dominada por super-heróis dedicados à defesa do status quo.
28) L'amour et les forêts (Just the Two of Us) é o estudo de um relacionamento tóxico que, como tantos, tem início com a promessa de companheirismo e carinho para aos poucos se revelar uma prisão na qual os abusos psicológicos ferem tanto ou mais que os físicos. Estrelado por Virginie Efira como as gêmeas Blanche e Rose Renard – a razão narrativa para que sejam gêmeas jamais fica clara, a não ser como meio de fortalecer o paralelo entre as irmãs -, este filme dirigido por Valérie Donzelli e roteirizado por esta ao lado de Audrey Diwan (a partir do livro de Éric Reinhardt) apresenta o carismático Grégoire Lamoureux (Melvil Poupaud) em uma festa na qual estabelece uma dinâmica leve e fácil com a protagonista; a química ficando mais evidente pela luz vermelha que cobre o casal (numa obviedade que cumpre seu papel).
Aliás, a fotografia de Laurent Tangy é um significante importante em Just the Two of Us: quando vemos Grégoire coberto de sombras na escada, logo no princípio do relacionamento, sua figura já representa uma semente de sua natureza possessiva e perigosa – um potencial que por um bom tempo permanece oculto sob seus modos gentis e carinhosos. Neste sentido, Donzelli faz um belo trabalho ao introduzir os sinais de um relacionamento tóxico em meio a uma metamorfose tão gradual que os sinais de alerta são ignorados até que seja tarde demais: discussões que sempre envolvem a frase “a culpa por isso é sua”, irritações gratuitas que se transformam numa postura passivo-agressiva que tenta levar a mulher a sentir-se responsável pelo desconforto do companheiro embora nada tenha feito e assim por diante.
Com o passar dos anos – e a chegada de filhos -, o que antes era uma parceria começa a soar como uma relação de posse, como se, por mais independente que tente ser, Blanche jamais tenha autorização para se esquecer de que pertence ao marido. Neste aspecto, uma das grandes virtudes do filme é demonstrar como a protagonista demora a compreender a dimensão dos abusos psicológicos que a vitimam – não por falta de inteligência, mas por acreditar que são apenas sinais de crises no relacionamento e das pressões sofridas pelo marido que podem ser resolvidas com o tempo. Além, claro, da dificuldade natural em não querer aceitar ter passado tanto tempo ao lado de alguém cuja verdadeira natureza é oposta àquela na qual baseou seu afeto.
Eficaz ao evocar o sentimento opressivo experimentado pela protagonista, que passa a encarar o toque do telefone como um alarme da vigilância do marido, o longa perde um pouco de sua força em função das elipses frequentes e de um desfecho que se revela bem mais otimista do que deveria. Ainda assim, as boas performances e a ótima fotografia se encarregam de equilibrar estes problemas.
29) O pessimismo não faz muito sentido no fim da vida. Aliás, alguns diriam que não se justifica em período algum, já que a única coisa que muda de fato é a saúde mental do indivíduo, mas acredito que na dose certa pode servir como uma forma de mover a juventude a questionar o que a cerca em vez de permanecer passiva pela certeza de que tudo irá melhorar. Quando nos aproximamos de nossos desfechos, contudo, o que nos espera já é definitivo demais por natureza; sobrecarregar tudo com a expectativa de um desastre é pura tolice. Além disso, toda a experiência acumulada ao longo de décadas (caso tenhamos sorte) já é mais do que suficiente para que saibamos que o otimismo é tão tolo quanto seu oposto.
Em seu novo trabalho, O Melhor Está por Vir (Il sol dell´avvenire), o cineasta italiano Nanni Moretti cria uma narrativa na qual o pessimismo de seu protagonista – e que alguns chamariam de realismo (estes alguns provavelmente seriam chamados de pessimistas) – é constantemente suavizado pela leveza de seu humor, soando mais como uma frustração do estado atual das coisas do que como uma visão negativa do futuro. Isto, claro, se torna mais fácil para um diretor como Giovanni (o próprio Moretti, evidentemente), que pode literalmente criar um mundo segundo sua filosofia, e que encontra-se no processo de realizar um filme sobre o conflito interno do Partido Comunista Italiano diante da invasão soviética à Hungria em 1956, quando o impulso de condenar a ação de Khrushchev se debatia com a lealdade ao Politburo em Moscou (contudo, na versão de Giovanni, não há fotos de Stalin no PCI, reforçando sua determinação em conceber uma realidade pessoal).
Extraindo humor a partir das neuroses do personagem, que força a esposa e a filha a participarem de seus rituais pré-início de filmagens, por exemplo, O Melhor Está por Vir compensa a postura ranzinza do sujeito com a habilidade de Moretti (como ator) de adotar um olhar infantil que confere doçura às suas criações, completando-as com a interessante contraposição de sua empolgação com o ritmo de fala lento. Determinado a acelerar seu ritmo de produção por constatar como já está bem mais próximo do fim de sua carreira do que do início, Giovanni também parece abrir mão da autocensura, manifestando-se de modo bem mais enfático (e pouco diplomático) do que de costume – o que o leva, entre outras coisas, a interromper as filmagens de um projeto produzido por sua esposa Paola (Margherita Buy) para questionar a abordagem de seu jovem diretor com relação à violência, resultando em uma sequência divertida para o espectador e enlouquecedora para a mulher. Aliás, um dos méritos da narrativa é permitir que os modos do protagonista nos divirtam ao mesmo tempo em que reconhecemos como viver ao seu lado é impossível, o que nos leva a compreender por que sua esposa tem intenção de deixá-lo após 40 anos de casamento.
Há, claro, a possibilidade de que muitos enxerguem o sentimentalismo de Moretti como um problema, mas a sinceridade do cineasta ao expressar suas frustrações (como na ótima cena em que se reúne com executivos da Netflix) é tocante. Com isso, quando organiza sua grande parada felliniana nos minutos finais de projeção, homenageando a história do Cinema italiano e seus grandes astros, o que poderia ser visto como apelativo ou condescendente soa como o que é: o esforço de um veterano para reconhecer a beleza da arte que seus conterrâneos (contemporâneos ou não) produziram/produzem e celebrar o pequeno milagre que cada filme concluído fora do sistema hollywoodiano representa.
30) Segundo longa-metragem do francês Jean-Bernard Marlin, cujo filme de estreia (Shéhérazade) já havia lhe rendido o prêmio César, Salem é um projeto ambicioso que, dividido em três capítulos, parece a princípio contar uma história inspirada em Romeu e Julieta ao enfocar o relacionamento entre dois adolescentes de 14 anos de idade, Djibril (Dalil Abdourahim) e Camilla (Maryssa Bakoum), que, vivendo em conjuntos habitacionais para famílias de baixa renda em Marselha, são ligados a grupos rivais, os Gafanhotos (composto primordialmente por jovens negros) e os Grilos (formado por romanis). Quando a garota engravida, inicialmente o namorado acredita que um aborto seria a melhor solução para evitar uma guerra, mas depois que um de seus mentores, Gato Negro (Amal Issihaka Hali), mata um de seus amigos, ele começa a mudar de ideia – o que não impede que o irmão de Camilla reaja violentamente à notícia de sua gravidez, resultando em um conflito no qual acaba morto enquanto Djibril é enviado para a prisão.
E é aí que Salem faz uma alteração curiosa em sua trajetória e se afasta da estrutura que o primeiro capítulo parecia sugerir ao saltar doze anos no tempo e reencontrar o protagonista agora adulto (e vivido por Oumar Moindjie) saindo da prisão – ou melhor: de uma instituição para jovens com problemas mentais, já que neste período o rapaz se tornou convencido de ser capaz de curar qualquer um, acreditando também que sua filha com Camilla detém o mesmo poder.
Estas conotações religiosas se infiltram na narrativa de forma ambígua, empregando efeitos visuais eficientes para trazer as visões de Djibril à vida e levando o espectador a questionar se estas são reais ou meras alucinações; se por um lado ele afirma ter deixado de tomar os medicamentos que o mantinham em equilíbrio, por outro há o fato de que testemunhamos o que parecem ser eventos inexplicáveis. Estes elementos sobrenaturais, contudo, não sacrificam o desenvolvimento da dinâmica entre Djibril e a filha Ali (Wallenn El Ghabaoui); ao contrário, a insistência do sujeito em levar a filha a aceitar sua “verdadeira” natureza se torna parte essencial do relacionamento – algo que os atores (todos amadores) exploram com talento.
Mais esperançoso do que poderíamos esperar, Salem (que em árabe significa “paz”) se compromete em função do ritmo irregular e das pontas soltas de suas subtramas, mas é um esforço suficientemente forte para que Marlin siga com uma trajetória promissora à sua frente.
24 de Maio de 2023