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Festival de Cannes 2024 - Dia #01 Festivais e Mostras

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Dia 1

1) O cineasta francês Quentin Dupieux não é estranho ao conceito de filmes high-concept, que consistem daqueles projetos que partem de uma premissa atípica, em torno da qual toda a narrativa é estruturada, e que pode ser resumida em uma frase: “Rapaz volta no tempo e acidentalmente impede que os pais se conheçam, colocando a própria existência em risco”; “Um homem se submete a um procedimento para apagar as memórias que tem da ex-namorada, mas se arrepende no meio do processo e tenta impedir sua execução”, e por aí afora. De um modo ou de outro, em obras como Rubber: O Pneu Assassino, Mandíbulas, Fumar Causa Tosse e mesmo A Jaqueta de Couro de Cervo (“homem estranhamente obcecado por roupas de couro de cervo decide eliminar todas as jaquetas do mundo enquanto finge produzir um filme”), Dupieux investiu em ideias bem particulares – e em O Segundo Ato (Le deuxième acte) volta a demonstrar sua aptidão para conceber esse tipo de conceito.

Mas se nos demais ele revela quase imediatamente do que se trata o projeto, aqui ele a princípio brinca com a percepção do espectador ao ancorá-lo em um universo aparentemente prosaico no qual um garçom chega ao restaurante em que trabalha logo pela manhã (o único elemento de estranhamento é seu nervosismo) e dois amigos conversam sobre uma jovem que se mostra interessada em um deles, que tenta convencer o outro a seduzi-la.

E é então que, no meio da discussão, Willy (Raphaël Quenard) faz um comentário transfóbico e desperta pânico no companheiro David (Louis Garrel), que o reepreende e o lembra de que estão sendo observados... por nós, espectadores. A partir daí, a presença da câmera no universo diegético é assumida através de olhares nervosos lançados pelos atores em direção à lente e por menções ao roteiro que devem seguir, indicando estarmos vendo duas camadas de ficção: uma composta por atores que participam de uma comédia romântica e outra que consiste da comédia em si.

Uma das diversões oferecidas por O Segundo Ato, aliás, reside em nossas tentativas constantes de decifrar que camada estamos vendo a cada instante: quando Guillaume (Vincent Lindon) discute com Willy ou irrita Florence (Léa Seydoux), isto está ocorrendo entre os personagens ou entre os atores que os interpretam? Esta é uma confusão ressaltada pelo fato de que personagens e intérpretes têm os mesmos nomes (que, vale apontar, são diferentes daqueles dos atores reais que Dupieux escalou) e, assim, estes não servem como pista sobre qual universo estamos vendo em determinado momento. Por outro lado, há pontos em que o rompimento da barreira entre ficção e “realidade” se torna patente, como ao ouvirmos David reclamar que Willy está fugindo do roteiro ou quando Guillaume critica a produção por contar uma história de amor batida e sem importância que ignora todos os inúmeros problemas que tomam conta do mundo (uma indignação que na realidade serve para disfaçar o ego ferido de um ator cuja carreira encontra-se estagnada).

Empregando longos planos que permitem que os atores caminhem por trechos extensos enquanto entram e saem de seus personagens, Dupieux aqui e ali sugere a presença de uma equipe atrás da câmera sem com isso tirar o foco de seus quatro intérpretes principais (aliás, cinco, já que também há o garçom vivido por Manuel Guillot) – e os únicos momentos nos quais insere uma trilha instrumental não-diegética são aqueles que ressaltam a artificialidade emocional do filme-dentro-do-filme, que também emprega uma montagem com cortes mais frequentes. Já a abordagem da fotografia é essencialmente a mesma para todas as camadas da narrativa, concentrando-se em planos mais fechados que mantêm o foco nos atores e em uma estética que jamais tenta diferenciar ficção e “realidade”.

E se insisto em empregar aspas sempre que menciono “realidade”, não é por um preciosismo semântico por estar falando de uma narrativa cinematográfica, mas sim porque O Segundo Ato talvez contenha um terceiro degrau que recontextualize tudo o que havia apresentado até então – ou talvez não, já que um dos pontos do longa é que isto não faz diferença.

Neste sentido, é irônico como o filme se mostra (acertadamente) crítico com relação à Inteligência Artificial como instrumento “criativo”, condenando os algoritmos que ditam sua lógica, já que uma de suas produtoras é justamente a Netflix, que tem feito o possível para transformar a realização artística em um processo calculado para agradar todos os quadrantes do público sem se importar com os sacrifícios que isto impõe à Arte em si. Em contrapartida, Dupieux tenta aproveitar a lacuna moral que a metalinguagem abre para ao mesmo tempo colocar piadas de gosto duvidoso na boca dos personagens e condená-las, o que não deixa de ser uma estratégia com certo cinismo – e não ajuda que sejam tão óbvias. Aliás, esta é a grande fragilidade de O Segundo Ato (e de outros filmes do cineasta): se contentar com a natureza “espertinha” da premissa e não se preocupar em explorá-la até os limites, passando apenas a repetir as mesmas piadas diversas vezes até que toda a graça tenha sido extraída destas.

Neste aspecto, é curioso que o momento mais instigante (e belo) do longa seja aquele que se limita a expor o próprio fazer, registrando os trilhos da dolly empregada para registrar os extensos planos enquanto a própria câmera a percorre, sobrepondo neste momento as várias camadas de registro da narrativa com uma inteligência que infelizmente não está muito presente no resto da projeção.

2) Liane enfrenta uma realidade difícil: depois de passar um tempo em um lar para menores quando sua mãe alegou ser incapaz de controlá-la, a jovem de 19 anos agora se encontra de volta e dividindo o teto não só com esta, mas com a irmã menor – uma situação precária, já que há a possibilidade de despejo e as brigas domiciliares seguem frequentes. Juntando dinheiro a partir da venda de produtos que rouba nos shoppings da região, a moça nutre sonhos de fama e riqueza, não hesitando em gastar o que economizou ao comprar um vestido de 600 euros que, num contraste brutal, usa enquanto caminha à beira da rodovia e de um canal sujo ao voltar para casa.

Não que suas dezenas de milhares de seguidores em redes sociais façam ideia disso, já que em suas fotos e vídeos ela surge sempre alegre e cheia de energia, exibindo os apliques, as unhas longas e milimetricamente enfeitadas, maquiagem elaborada e os implantes de silicone pelos quais certamente pagou também com o fruto de seus furtos. A Liane do Instagram não é uma ladra obrigada a morar com a mãe negligente, mas uma influencer – algo que ela tenta capitalizar sem sucesso ao oferecer divulgação a uma amiga em troca dos produtos de beleza que esta vende. Seu maior sonho, porém, é participar de um reality show famoso, acreditando estar bem perto de seu objetivo quando atrai o interesse de uma produtora do programa que assistiu aos seus vídeos e a convida para um teste.

Dirigido e roteirizado pela estreante Agathe Riedinger, Diamante Bruto (Diamant Brut), exibido na mostra competitiva do Festival de Cannes de 2024, é em parte um comentário direto não apenas sobre uma cultura movida a narcisismo e autopromoção ininterrupta, mas sobre a artificialidade que resulta de forma inevitável desta lógica: para a tal produtora, por exemplo, o que interessa não é a situação de Liane ou mesmo sua personalidade, mas sua disposição para criar conflitos e exibir o corpo, sendo revelador como a narrativa se limita a incluir a voz da profissional, não seu rosto, num reflexo de como sua disposição para explorar a imagem de jovens ingênuas não se aplica a si mesma. De forma similar, a própria relação entre Liane e seus seguidores é indicativa de uma dinâmica tóxica: ela se alimenta da atenção constante (mesmo sem conseguir convertê-la em vantagens financeiras) enquanto seus followers se satisfazem em projetar na influenciadora suas fantasias ou mesmo seu ódio – e ao longo da projeção, Riedinger inclui na tela em diversos pontos alguns dos comentários publicados no perfil da protagonista e que variam entre “você é perfeita” e “se mate”.

Funcionando em essência como um estudo de personagem, Diamante Bruto aposta pesadamente na performance da jovem Malou Khebizi, que não tenta suavizar as facetas menos atraentes de sua personagem: deslumbrada já pela oportunidade de fazer o teste, Liane assume uma atitude ainda mais narcisista e iludida do que de costume, ficando evidente, por exemplo, não ser a melhor das amigas – e o modo como trata o mecânico Dino (Idir Azougli), com o qual conviveu quando estava no lar para menores e que agora, já trabalhando com o irmão, demonstra interesse pela antiga conhecida, é fria e calculada, como se estivesse continuamente avaliando como as perspectivas limitadas do sujeito impactariam seus planos de fama (não que ela esteja errada quanto a isso; a forma como lida com o dilema, contudo, é um pouco cruel). Em contrapartida, a protagonista exibe uma preocupação genuína com a irmã caçula (que, com suas sobrancelhas delineadas, comprova sua admiração pela mais velha) – mas isto nem sempre é o suficiente para compensar suas explosões de raiva e suas ações mais egoístas, o que torna difícil para o espectador a tarefa de empatizar com a personagem ainda que nos compadeçamos diante de imagens como o teto mofado de seu quarto ou o cuidado quase infantil com que gruda pequenos enfeites no salto de seu sapato.

Demonstrando uma ansiedade contínua que a diretora salienta ao focar o balançar de suas pernas sempre que está sentada, Liane sorri apenas quando a câmera de seu celular está ligada – e perceber isso é algo que aumenta a força do belo plano final de um filme que nos apresenta a uma realizadora com potencial para alcançar resultados muito mais sólidos do que este.

3) Exibido na sessão de abertura da mostra Un Certain Regard do Festival de Cannes, When the Light Breaks (Ljósbrot) é um filme que reflete a inquietação de sua protagonista. Escrito e dirigido pelo islandês Rúnar Rúnarsson, responsável pelo maravilhoso Vulcão e pelo irregular (mas instigante) Ecos, o longa acompanha uma jovem durante um momento de imensa dor e perda pessoal ao mesmo tempo em que demonstra interesse em iniciar um diálogo sobre a natureza da Arte, o papel que esta desempenha na aproximação entre indivíduos e mesmo como pode ter um caráter curativo e de reinvenção própria.

Abrindo a narrativa enquanto o casal formado por Una (Elín Hall) e Diddi (Baldur Einarsson) aprecia o pôr do sol e faz planos para o futuro que terá início assim que este romper com a atual namorada no dia seguinte, o filme logo destrói estes projetos quando o rapaz sofre um acidente poucas horas depois, deixando um rastro de dor e luto não apenas na garota, mas no pequeno grupo de amigos que incluía seus colegas de banda e da faculdade de artes. Mas o interesse particular da narrativa reside no processo interno de Una, cujo sofrimento é intensificado pelo fato de ninguém ter conhecimento sobre seu relacionamento com Diddi, o que a obriga a ouvir comentários sobre como este e a namorada Klara (Katla Njálsdóttir) formavam “o casal perfeito” e mesmo a servir de ombro amigo à outra. Este isolamento da protagonista é reforçado, por sinal, pela inteligente fotografia de Sophia Olsson, que adota uma profundidade de campo frequentemente reduzida que mantém Una à parte do mundo que a cerca – e é uma pena quando, aqui e ali, o longa cede a impulsos mais óbvios, como ao sobrepor as imagens de Klara e Una através de um jogo de reflexos que apenas repete de modo tolo o que o restante da narrativa já vinha fazendo tão bem.

Eficiente ao retratar a angústia terrível que se segue ao acidente, quando a falta de informações concretas é uma tortura em si e os amigos e parentes preocupados escutam a chamada sem resposta do telefone da pessoa amada como uma representação sonora da dor que se anuncia, When the Light Breaks compreende bem como este tipo de situação se desenvolve, como em um momento de tragédia coletiva que coloca várias famílias ansiosas lado a lado, cada manifestação de alívio alheia por uma boa notícia representa simultaneamente uma esperança e um golpe no estômago por indicar o tempo que se esgota – uma lógica que se mantém diante da dor do outro, que sugere a possibilidade de um horror, mas também o fato de ainda não ter se concretizado.

Enquanto isso, o temperamento artístico da protagonista e de seu círculo de amizades confere ao filme uma perspectiva própria ao cercar suas lembranças, suas reações e seus mecanismos de defesa com um contexto associado ao processo criativo, seja ao compartilhar lembranças de uma performance improvisada de Diddi, seja ao tentar demonstrar para Klara como sua visão limitada da Arte que o próprio namorado estudava pode ser expandida através de uma dinâmica simples que a leve a enxergar o mundo com um olhar distinto – e o instante no qual a câmera assume o ponto de vista da garota enquanto, guiada por Uma, percebe como pode se fazer “voar” é uma das passagens mais belas da projeção.

Porém, a âncora do longa é mesmo a performance intensa de Elín Hall, que é estudada pela câmera com uma proximidade física (e, como consequência, emocional) tão grande que às vezes temos a impressão de que a lente irá tocar o rosto da atriz – uma abordagem que atinge o clímax em um longo plano que a traz dançando com uma entrega absoluta, como se estivesse tentando extravasar o luto através de seus movimentos, e culmina em um lindo abraço coletivo.

Dito isso, o filme é fragilizado por um obstáculo central: a necessidade de concentrar toda a narrativa em um espaço de pouco mais de 24 horas, o que soa implausível em particular por incluir em poucas horas o acidente em si, a espera por notícias (e sua confirmação) e até uma missa em homenagem aos mortos – além de outros incidentes que não mencionarei por ser desnecessário para o propósito deste texto. Ainda que movida pela intenção de tornar a trajetória mais intensa (além de justificar a presença de Klara), esta condensação excessiva feita pelo roteiro escancara o artifício e se torna uma distração em um momento no qual deveríamos estar tomados apenas pela jornada.

16 de Maio de 2024

Sobre o autor:

Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.
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