Aceitando o convite gentil da organização da 57ª. Edição do Festival de Brasília - um dos eventos mais importantes do calendário do audiovisual brasileiro – vim à capital para acompanhar as sessões de produções nacionais de todos os tipos: curtas e longas, ficções e documentários, inéditas ou já exibidas em outros festivais. É um mergulho recompensador na diversidade de uma indústria cinematográfica rica em preocupações temáticas, estéticas e nomes de talento; um respiro para quem ama não apenas a Sétima Arte, mas a sensibilidade cinematográfica brasileira.
O que me traz a Apocalipse nos Trópicos, novo filme de Petra Costa:
“Não comece com o Antigo Testamento”, diz o Cabo Daciolo ao entregar uma Bíblia para a diretora Petra Costa pouco depois de conhecê-la. Trata-se de um pedido que revela muito acerca de suas intenções de conversão de uma até então estranha – um encontro que ocorre no plenário da Câmara de Deputados, vale apontar – ao exibir o mesmo tipo de pensamento estratégico que os Cientologistas empregam ao esconder a natureza de sua religião (e toda a história de origem do lorde intergaláctico Xenu) até que os fiéis já tenham investido muito (financeira e emocionalmente) na Igreja: evitar que os aspectos mais absurdos/chocantes/repulsivos de sua teologia particular afastem possíveis novos adeptos antes que estes se deixem envolver pelo resto. É uma postura no mínimo conveniente (e hipócrita), esta de ignorar os elementos embaraçosos de um texto supostamente sagrado – pois o fato é que o Antigo Testamento é, como apontei ao escrever sobre Noé, um Senhor dos Anéis no qual Deus é simultaneamente Gandalf e o olho de Sauron; pedir que este seja adorado é tentar sufocar a própria natureza humana e o instinto empático que a maioria das pessoas possui até que este seja eliminado por religiões e ideologias fascistóides.
Além disso, por que negar o espírito odioso do Antigo Testamento se a postura mais comum entre os principais líderes evangélicos do país – ao menos aqueles que detêm a maior parte do poder político – é justamente a de raiva constante? “Aqui é um lugar de paz!”, grita o pastor Silas Malafaia durante um culto enquanto cuspe é lançado de sua boca, por exemplo, indicando como a última coisa sugerida por seu tom é o de conciliação ou amor ao próximo. Aliás, é impossível ignorar a ironia diante de cenas como aquelas que trazem uma multidão recitando “perdoai os nossos pecados assim como perdoamos a quem nos têm ofendido” quando estas mesmas pessoas parecem buscar ativamente razões para se sentirem insultadas, atacando e condenando qualquer um que não siga sua vida de acordo com os princípios arbitrários que evangélicos escolheram seguir. “Perdoar” só pode ser compreendido como prática destes indivíduos diante da submissão completa dos inimigos imaginários que insistem em criar. Assim, quando Apocalipse nos Trópicos exibe as silhuetas de dezenas de fiéis orando na Praça dos Três Poderes depois da vitória de Jair Bolsonaro, a imagem parece saída de um filme de terror, de uma distopia pós-apocalítica na qual os zumbis trocaram os grunhidos pelo hábito de “falar em línguas” depois de terem os próprios cérebros devorados por aqueles que seguram o microfone e exigem dízimos.
Dirigido por Petra Costa como uma investigação da influência religiosa crescente sobre o Estado, o documentário aponta, por exemplo, como Lula, em sua primeira campanha vitoriosa para a presidência, escreveu uma “carta aos banqueiros” para tranquilizar os parasíticos investidores/especuladores quanto às suas intenções caso eleito e como, em 2022, sentiu a necessidade de repetir o gesto, mas agora endereçando seu texto aos evangélicos. Sempre demonstrando uma postura curiosa e humilde diante do que está pesquisando e documentando, Costa exibe, através de sua narração calma, uma eterna capacidade de se surpreender diante de contradições que já se tornaram óbvias para tantos, mas que deveriam, sim, seguir chocando – e, com isso, a cineasta desmonta um pouco da naturalização perversa com que passamos a ver atitudes repugnantes que nunca deveriam se tornar cotidianas.
Porém, um dos maiores trunfos de Apocalipse nos Trópicos reside no acesso ao próprio Malafaia, que, recebendo a equipe da diretora em sua mansão e convidando-a até mesmo a viajar em seu jatinho particular cinicamente batizado de “Favor de Deus”, expõe com imensa autoconfiança (e a arrogância de quem sabe que jamais irá arcar com as consequências do que faz) suas estratégias de manipulação do poder e que envolvem a chantagem constante de voltar os fiéis contra aqueles que ousarem descumprir acordos feitos com as lideranças evangélicas. Justificando sua postura agressiva ao mencionar como Jesus “virou mesas no templo” (mas convenientemente esquecendo-se de mencionar que de acordo com os evangelhos de Mateus, Lucas, João e Marcos, esta ação foi feita para expulsar aqueles que usavam o templo como lugar de comércio, o que depõe contra a prática de pedir dízimos e da venda de todo tipo de produto que os pastores costumam divulgar, de Bíblias a CDs), Malafaia faz bravatas e posa de valente, mas a verdadeira natureza desta sua coragem é exposta quando, em certo momento, insiste em xingar um motoqueiro no trânsito até que, quando este responde, o pastor ri e comenta “ó, o segurança vai dar um susto nele”, apontando como o carro que o segue e que traz sua segurança particular se encarregará de impedir que ele seja confrontado pelo sujeito que provocou – e a naturalidade com que diz isso sugere uma situação que já se repetiu dezenas de vezes e que reflete também o costume de ofender minorias políticas apenas para usar a “liberdade religiosa” como defesa quando é contestado.
Alertando seus seguidores para que não sejam vítimas do “controle do pensamento pelo politicamente correto” enquanto se encarrega de garantir que o pensamento dos fiéis seja controlado por suas próprias pregações raivosas e os preconceitos que vomita, Silas Malafaia chega a agradecer a eleição de Bolsonaro através de uma oração que, feita diante deste e de toda a congregação, celebra como “Deus escolheu as coisas vis” para enfrentar os “inimigos” – um momento cujo humor involuntário infelizmente só é percebido por quem está imune à retórica do sujeito e ainda é capaz de sentir arrepios diante da imagem de insanidade coletiva composta por dezenas de pessoas ajoelhadas no meio da rua com as mãos estendidas e gritando para ninguém enquanto lamentam a eleição de um oponente político.
Inofensiva enquanto manifestação pessoal de crença em algo superior, esta postura se torna perigosa quando transformada em arma política e movida dos templos e igrejas para a rua, para as urnas e para esferas do poder público, quando, então, são usadas para reforçar a decisão de um presidente sociopata de não comprar vacinas, trocando ações emergenciais de saúde por orações – o que, claro, resulta em mais de 700 mil mortes e leva o Brasil a se tornar o segundo país com o maior número de vítimas fatais da COVID-19 no mundo, perdendo apenas para outro país cujo líder abraçou hipocritamente as vertentes evangélicas como um dos pilares de seu poder: os Estados Unidos de Donald Trump. Apelando aos sentimentos mais básicos de uma população já vitimizada por uma desigualdade econômica profunda (que, num círculo vicioso perverso, é acentuada pelo poder crescente de um sistema treinado para manipular esta mesma população), estes líderes políticos sabem que não há argumento racional que possa competir com o fervor de uma fé inflamada pela ameaça constante de inimigos dispostos a destruir as bases da civilização e corromper a estrutura familiar – e que estas ameaças e estes inimigos sejam imaginários não é problema algum, considerando a tendência deste segmento em já acreditar no irreal.
E é assim que, em incidentes revisitados por Apocalipse nos Trópicos, chegamos a um presidente da república que, democraticamente eleito, se sente à vontade para tentar destruir a mesma democracia que garantiu sua ascensão ao desfilar tanques pela Esplanada dos Ministérios, ao desafiar a Suprema Corte e ao ameaçar “metralhar” os inimigos. Contrapondo os discursos de campanha de Lula e Bolsonaro, baseados respectivamente em combater a fome e destruir os infiéis, o documentário escancara como a razão e o bom senso já não bastam como estratégia – e depois de afirmar que visitar igrejas é algo que nunca fez em uma campanha, Lula finalmente cede durante o segundo turno e é visto recebendo as bençãos de pastores em um templo evangélico.
A culminância inevitável de todo esse processo de quase duas décadas de instrumentalização política da fé e da lavagem cerebral promovida cotidianamente por pastores que usam a isenção fiscal de suas igrejas como forma de enriquecimento pessoal e da empresa que administram é o espetáculo deprimente visto em oito de janeiro de 2023, quando aqueles que “perdoam a quem (os) têm ofendido”, pregam o “amor ao próximo” e se dizem “cristãos” invadiram a capital do país e, enquanto tentavam derrubar a democracia, aproveitaram para demonstrar seu desrespeito pela História e pelos bens públicos quebrando vidros, destruindo artefatos históricos e defecando numa sala do Supremo Tribunal – e o silêncio com que Petra Costa cobre as imagens pós-destruição acentua a tragédia de um país ameaçado por “cidadãos de bem” e “patriotas” que a religião converteu em um exército de descerebrados.
A triste ironia é que houve um tempo não muito distante em que a Fé demonstrou um potencial promissor de agir para realmente defender os interesses dos mais vulneráveis: resgatando as pregações de líderes religiosos que, seguindo a teologia da libertação durante a década de 70, tentaram levar os fiéis a uma compreensão acerca dos mecanismos que mantinham e aumentavam a desigualdade econômica e de como era fundamental que se mobilizassem para mudar um sistema que sempre os oprimiria, Apocalipse nos Trópicos ilustra como estes líderes foram rapidamente silenciados e substituídos gradualmente por aqueles que defendiam a perversa teologia da prosperidade, que depositava as esperanças de um futuro melhor na disposição constante de alimentar templos (e, consequentemente, pastores) com doações que, vejam só, em algum momento futuro trariam uma recompensa material para estes generosos apoiadores. Claro que este “momento futuro” é indeterminado, ao passo que mansões e jatinhos particulares comprovam como, para os pregadores, a recompensa é imediata e abundante. Prosperidade para quem, afinal?
O poder que esta promessa evangélica de um futuro melhor representa é algo que Lula demonstra compreender bem em certo momento de Apocalipse nos Trópicos, quando discute o mecanismo emocional e psicológico que torna estes pastores tão poderosos – mas como oferecer uma contraposição eficiente a isso? Certamente não através de ações beija-mão ou da desistência de pautas “controversas”, pois se há algo que já deveria ter ficado mais do que evidente é que não há forma de competir com a pregação diária nos templos – principalmente quando o antigo fervor da esquerda hoje parece mover os fiéis, mas com um viés conservador em vez de revolucionário. Enquanto isso (como diagnostica corretamente o filme), a esquerda viu seu velho fervor ceder lugar a uma resignação diante do que é “possível”; estamos sempre argumentando como “isto é o que podemos fazer nestas circunstâncias”, esquecendo de que, no passado, a luta era para mudarmos as circunstâncias em si. Uma luta que obteve vitórias importantes e que só voltarão a acontecer quando compreendermos que, ironicamente, esta é uma batalha que também exige fé – não em um ser intangível supostamente representado por homens corrompidos, mas em nossa própria capacidade de mobilização diante de forças que, apesar da própria fraqueza moral, só se mantêm erguidas porque nos fizeram acreditar que são inevitáveis.
04 de Dezembro de 2024