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Dias 03 e 04
8) Exibido em sessões especiais durante o Festival de Cannes, o documentário A Bela de Gaza, dirigido por Yolanda Zauberman, traz uma premissa intrigante: em um projeto anterior, a diretora havia capturado a imagem de uma garota de programa transsexual nas ruas de Tel Aviv e posteriormente, ao saber que esta mulher supostamente havia caminhado de Gaza até a cidade, sua curiosidade é despertada, o que a leva a buscar a jovem. Entrevistando outras garotas trans - todas atuando como prostitutas (ou tendo trabalhado como acompanhantes no passado) -, o filme revela suas experiências e desafios enquanto as moças, em sua maioria árabes, falam sobre as violências que enfrentaram em seus lares e a transfobia que as forçou a buscar refúgio em Tel Aviv.
No entanto, apesar da suposta liberdade oferecida pela cidade, elas continuam a viver com medo da violência, expondo, assim, uma existência ameaçada por gradações de horror. Carismáticas e abertas com relação às suas experiências, as entrevistadas compartilham suas jornadas (inclusive com cirurgias de transição) com generosidade; contudo, a partir de certo ponto a verdade é que o documentário começa a soar repetitivo à medida que as histórias se tornam apenas variações sobre ocorrências similares – e mesmo que o número de traumas vivido por elas ressalte como tudo aquilo é tristemente comum, de um ponto de vista narrativo as repetições, depois de cumprirem a função de salientar isto, deixam de trazer novas perspectivas e comprometem o fluxo da narrativa, o que leva o projeto a ficar aquém de outros que exploram temáticas similares.
(Além disso, o lançamento do filme ocorre em um contexto geo-político delicado em que o genocídio perpetrado em Gaza permeia as discussões atuais – e apesar deste não ser o foco do filme, é impossível ignorá-lo.)
Em suma, A Bela de Gaza é um testemunho importante das lutas enfrentadas por aquelas mulheres, mas acaba se perdendo graças à montagem problemática e à falta de foco da diretora com relação ao que havia escolhido como ponto central de seu projeto.
9) Tenho uma relação complicada com o cinema do cineasta chinês Jia Zhang-ke: se As Montanhas se Separam me deixou frustrado, Amor Até as Cinzas traz momentos que me tocaram e Um Toque de Pecado me encantou profundamente – e esta ambivalência com relação ao diretor se confirmou ao assistir ao seu mais recente filme, Caught by the Tides, incluído na mostra competitiva do festival. Escrito pelo próprio Zhang-Ke ao lado de Yongming Zhai, o longa acompanha um casal em seus encontros e desencontros ao longo de mais de duas décadas, de 2001 a 2023, em uma proposta temporal intrigante e ambiciosa.
Infelizmente, a primeira hora de projeção se complica à medida que o cineasta parece optar por um registro documental ao mostrar o cotidiano do casal — ou melhor, das vidas separadas que eles levam. Com ambições contrastantes, o empresário vivido por Zhubin Li e a artista interpretada por Zhao Tao são apresentados em meio a uma tapeçaria de imagens compostas pelas atividades da comunidade ao seu redor: ruas vibrantes, centros culturais para trabalhadores e grupos de mulheres que se reúnem para cantar. Essa abordagem confere uma cor local ao filme, trazendo uma verossimilhança que é inegavelmente interessante; porém, essa tentativa de capturar a realidade resulta em uma falta de foco que torna difícil inclusive perceber a importância do casal na narrativa, já que o espectador se vê perdido em meio a estes registros e histórias paralelas (ou que parecem ser histórias paralelas), sem entender claramente qual é o peso daquele casal para o filme como um todo.
Dito isso, em sua metade final a narrativa ganha foco e a conexão emocional se torna mais evidente, permitindo, inclusive, que Zhao Tao construa uma performance digna de reconhecimento e prêmios.
No entanto, mesmo que seja um testemunho das complexidades das relações humanas ao longo do tempo, Caught by the Tides não consegue superar seu registro disperso inicial, impedindo que Zhang-ke atinja o mesmo nível de profundidade e impacto emocionais de algumas de suas obras anteriores.
11) Depois de três dias pouco empolgantes no Festival de Cannes, o terceiro finalmente trouxe um filme pelo qual me apaixonei: Emilia Pérez, de Jacques Audiard. Exibido como parte da mostra competitiva, o longa se revela surpreendente desde o início, subvertendo expectativas e levando o espectador por caminhos inesperados ao se apresentar como um musical sem sacrificar o pesado tom original.
Empregando o que poderia ser apenas mais uma história sobre tráfico, cartéis e violência para fazer uma reflexão profunda sobre identidade, sexualidade e, acreditem, sobre a dor do luto na ausência do corpo da pessoa amada, o longa traz personagens complexos e multifacetados (em alguns casos, literalmente) que age com motivações que vão sempre além do superficial – e neste aspecto é preciso destacar a performance da atriz espanhola Karla Sofía Gascón, uma verdadeira revelação. Ao mesmo tempo, os números musicais se apresentam corajosos e curiosamente inseridos em um contexto de naturalismo que os enriquece sem a necessidade de coreografias complexas e movimentos de câmera excessivos, justificando a inserção no gênero sem permitir que as músicas se tornem uma muleta narrativa.
Eficaz ao abordar com sensibilidade tantos elementos distintos, Emília Pérez se tornou (até agora) meu favorito do festival, sendo uma pena que a pressa que estes textos produzidos ao longo do evento exigem me impeça de debruçar com cuidado sobre a experiência (o que espero corrigir no futuro).
12) Há momentos em que o estado de espírito do espectador contribui de modo inquestionável para enriquecer uma experiência cinematográfica – e isso aconteceu com o último filme que assisti no quarto dia do festival: The Surfer, dirigido por Lorcan Finnegan. Cansado – e, admito, um pouco irritado depois de um esbarrão desagradável com um crítico italiano que já me trouxe dores de cabeça em edições anteriores (de Cannes e Berlim), eu estava no clima perfeito para acompanhar a jornada de um protagonista que, à medida que o filme avança, vai se tornando cada vez mais nervoso e frustrado com a situação que o cerca.
Estabelecendo logo nos primeiros segundos a estética que marcará a narrativa, marcada por cores saturadas e intensas que evocam um calor quase insuportável, o longa cria uma atmosfera opressiva que se alinha perfeitamente com a trajetória do protagonista interpretado por Nicolas Cage em sua intensidade habitual – e a própria introdução do título, estilizada de maneira a remeter aos filmes de exploitation da década de 70, sugere uma obra que não terá medo de abordar a violência e os extremos emocionais do personagem. Aliás, a abordagem de Finnegan me remeteu constantemente àquela adotada por Oliver Stone no ótimo Reviravolta, que, como este, nos levava a sentir não apenas o calor escaldante do ambiente, mas também a crescente frustração do protagonista (lá, Sean Penn). Escalando as situações a um nível insuportável, The Surfer constantemente desperta a curiosidade do espectador com relação ao destino final ao qual toda aquela tensão nos conduzirá (o que também traz ecos do excelente Um Dia de Fúria, no qual a deterioração emocional – e moral - do protagonista representa o centro da experiência).
Incorporando um personagem que parece ter sido feito sob medida para suas composições expressionistas, Cage é essencial também ao estabelecer que, mesmo angustiante, The Surfer tem como propósito principal se apresentar como uma experiência essencialmente divertida, na qual o absurdo se converte em graça, adotando para isso um humor sombrio bastante eficaz baseado nos limites da paciência do protagonista – e que, neste caso, refletiram também os meus.
20 de Maio de 2024