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Festival de Cannes 2024 - Dia #08 Festivais e Mostras

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Dia 8

26) Motel Destino, longa brasileiro exibido como parte da mostra competitiva e que traz na direção um dos cineastas mais sensíveis do nosso cinema, Karim Aïnouz, é um filme que se sustenta mais por suas escolhas estéticas do que por sua substância narrativa ou emocional. Apresentando-se essencialmente como um thriller erótico com nuances de neo-noir, trata-se de uma obra que, infelizmente, fica aquém de suas ambições em ambos os aspectos, resultando em uma experiência que, apesar de visualmente interessante, deixa o espectador frio e indiferente.

Investindo em uma direção de arte cuidadosa, com cenários e figurinos que dialogam de forma instigante especialmente no espaço que dá título ao projeto, Motel Destino conta com uma abordagem de luz e cores que certamente merece a descrição de neon-noir, mas, à medida que a projeção avança, a narrativa perde o ritmo e determinados incidentes que deveriam ser impactantes acabam soando apenas artificiais. Enquanto isso, se Fábio Assunção oferece uma performance carregada de um carisma que serve para tornar um sujeito desprezível mais palatável (mesmo atraente), o novato Iago Xavier acaba soando perdido em comparação, apagando-se diante do elenco mais experiente. Não se trata de uma performance ruim, mas que parece deixar um vácuo no centro do filme – uma ausência de força ou carisma que prejudica profundamente a narrativa, tornando difícil qualquer conexão com o personagem, seja através da empatia, da raiva ou até mesmo da condenação.

Esta falta de conexão emocional percorre a narrativa: embora busque gerar tensão, o filme pouco consegue criar em termos de apreensão ou suspense – e ainda que se encaixe na definição de thriller erótico, não há realmente a sensação de que exista qualquer desejo ou química entre os personagens. Igualmente frustrante é o desfecho, que – evitando spoilers - recorre a um deus ex machina injustificado, acentuando a sensação de frustração do espectador. Além disso, o filme insiste em mastigar demais suas mensagens, resumindo a “moral da história" de forma didática e desnecessária, como se não confiasse na capacidade do espectador de entender os dilemas dos personagens por conta própria.

Dito isso, há diversos elementos que evitam que Motel Destino se torne uma obra ruim, da direção de arte à atuação de Fábio Assunção, passando também pela composição da atriz Nataly Rocha e pela fotografia.

No fim das contas, talvez o maior problema de Motel Destino seja sua ambição em ser muitas coisas ao mesmo tempo – e mesmo que não seja um fracasso (longe disso), é difícil não sair da sala com a sensação de que um pouco de foco talvez tivesse contribuído para fortalecê-lo.

27) Diretor cujo trabalho costuma ser marcado por uma inventividade e um senso de humor notáveis, o português Miguel Gomes infelizmente realiza em Grand Tour, seu novo trabalho em competição no Festival de Cannes, algo que soa mais como um exercício de estilo desconexo do que um filme com propósito claro. Escrito por quatro pessoas (Telmo Churro, Maureen Fazendeiro, Mariana Ricardo e o próprio Gomes) – algo que geralmente é um mau sinal -, o roteiro gira em torno de Edward (Gonçalo Waddington), um funcionário público britânico vivendo na Ásia no início do século XX, que, no dia em que sua noiva chega para o casamento, decide fugir em um barco, iniciando uma jornada sem rumo por diversos países. Enquanto a primeira metade da projeção acompanha esta fuga, a segunda alterna o foco para a perspectiva da noiva, Molly (Crista Alfaiate), que o persegue pelo continente. O problema é que ambas as metades falham em envolver o espectador - seja pela falta de profundidade dos personagens, seja pela narrativa que parece mais um pretexto para exibir imagens de viagem do que uma história propriamente dita.

Com uma estrutura que intercala a história principal com cenas contemporâneas das cidades por onde a trama supostamente se passa, o filme merece créditos pelo valor documental destes registros que ilustram costumes locais e paisagens marcantes, mas sua integração com a narrativa principal é desastrosa. Sem se preocupar em disfarçar os muito anacronismos (embora a história se passe em 1917, vemos pessoas usando celulares, carros modernos e outros elementos que quebram a fantasia), Grand Tour deixa a impressão de que o cineasta fez uma viagem pela Ásia, registrou belas imagens e, depois, decidiu criar uma história qualquer para justificar o uso destas – e o resultado é um filme que parece um travelogue mal costurado, sem a maestria de obras como Cartas da Sibéria, de Chris Marker, que conseguiam unir o documental e o ficcional (ou ensaístico) de forma orgânica.

Os personagens centrais são outro ponto frágil do projeto: Edward é um protagonista apático, cujas motivações para fugir do casamento nunca são exploradas de forma convincente, enquanto Molly é apenas irritante graças, entre outras coisas, à decisão de sua intérprete de adotar uma forma peculiar e repetitiva de rir, transformando a personagem em uma caricatura – e, assim, não é difícil compreender por que Edward prefere fugir do que amarrar sua vida à dela (não que ele seja muito melhor). Assim, com um casal composto por duas figuras insuportáveis, egoístas e sem qualquer química, por que o espectador deveria se importar com seus destinos?

Oscilando entre o tedioso e o frustrante enquanto luta para justificar suas escolhas estilísticas, Grand Tour se torna uma das maiores decepções do festival até o momento.

28) À medida que um festival como o de Cannes, que envolve quatro ou cinco sessões por dia, vai chegando ao fim, é natural que surja um certo sentimento de alerta quando o próximo filme da programação é anunciado com uma duração de quase três horas, por mais que, como crítico, seja importante evitar qualquer tipo de pré-julgamento. Felizmente, o longa dirigido por Gilles Lellouche, L’amour ouf (ou Beating Hearts, em inglês), é um filme que consegue manter um ritmo eficaz e envolvente ao contar uma história que acompanha um romance que se desenrola ao longo de vários anos, dividindo sua estrutura em duas partes: a primeira, focada nos protagonistas adolescentes, e a segunda, em suas versões adultas. Essa estrutura, embora não seja exatamente inovadora, é executada com competência, mais do que justificando sua necessidade dramática – e mesmo que certa “trapacinha” narrativa (que não mencionarei para evitar spoilers) possa causar frustração imediata, o roteiro escrito por Lellouche, Julien Lambroschini, Ahmed Hamidi e Audrey Dawn a partir do livro de Neville Thompson consegue torná-la mais palatável do que o esperado (e, sim, o número excessivo de roteiristas desta vez é uma exceção à regra que mencionei ao discutir Grand Tour).

Beneficiado por um elenco excepcional que conta com François Civil e Adèle Exarchopoulos como o casal principal na idade adulta e com Malik Frikah e Mallory Wanecque em suas versões jovens, a obra acerta especialmente na escalação desta última, que, revelada ano passado em Os Piores, segue especialmente cativante e cria uma continuidade (mesmo física) com Exarchopoulos que torna a transição ainda mais convincente.

Empregando pontualmente elementos de realismo fantástico que vêm se revelando recorrentes entre os filmes selecionados para esta edição do festival, L´amour ouf também consegue a proeza de tornar estas escolhas naturais mesmo que surjam subitamente, já que compreende a importância de evitar que isto sacrifique a exploração psicológica e emocional dos personagens – e, considerando novamente a excelência do elenco, não seria surpresa uma Palma coletiva para o quarteto central do projeto.

30) Segundo longa-metragem comandado pela indiana Payal Kapadia, All We Imagine as Light é uma obra que, embora não se proponha a construir um mosaico dramático no sentido tradicional, tece uma narrativa delicada e multifacetada sobre a vida de três mulheres em Mumbai que trabalham no mesmo hospital. Enfrentando desafios pessoais que refletem questões sociais e políticas mais amplas da Índia contemporânea, as personagens ilustram as dificuldades experimentadas especialmente pelo segmento feminino da população em um país marcado por desigualdades profundas e um crescente conservadorismo liderado por um governo de extrema-direita devotado ao atraso.

Vejamos, por exemplo, a enfermeira-chefe Prabha, interpretada com sobriedade por Kani Kusruti: vivendo em um limbo emocional desde que o marido partiu para a Alemanha logo após o casamento, deixando de enviar notícias desde então, Prabha é uma mulher casada, mas solitária, que se mantém presa em uma situação angustiante que se torna ainda pior graças à sua própria visão tradicionalista sobre o matrimônio e os deveres conjugais – um conservadorismo que ela expressa ao “defender” a “honra” de uma subordinada (e colega de quarto), vítima de fofocas sobre estar apaixonada por um homem que não é aquele com o qual os pais querem forçar o casamento, ao afirmar que esta “jamais faria uma coisa dessas”. Enquanto isso, a jovem, Anu (Divya Prabha), tem consciência de que o fato de o namorado ser muçulmano só torna as coisas mais difíceis diante de sua família – e, assim, o romance, além de ser um ato de rebeldia contra as expectativas familiares, acaba por ilustrar as tensões religiosas e sociais que atravessam a sociedade indiana. Por fim, a cozinheira Parvaty (Chhaya Kadam), a mais velha das três, sofre diante da iminência de ser despejada do apartamento onde viveu por 22 anos para que este seja demolido e dê lugar a um condomínio de luxo – um símbolo inequívoco de gentrificação e da desigualdade social.

Ainda que não seja explicitamente político, All We Imagine as Light traz, assim, questões políticas em cada cena, em cada diálogo, em cada olhar: a dificuldade do jovem casal para encontrar um lugar no qual tenham privacidade, por exemplo, é um recurso dramático/cômico, mas também um comentário óbvio sobre o moralismo barato que permeia boa parte da sociedade do país; não há motéis ou outros espaços seguros para o amor – ou apenas o sexo - fora dos padrões tradicionais. Aliás, um dos arcos principais do longa reside na compreensão crescente de Prabha sobre todo o conservadorismo que internalizou ao longo da vida, passando a questioná-lo e mesmo a desafiá-lo de forma mais aberta. Neste sentido, a sororidade entre as três personagens se torna a base temática e dramática do longa – algo que Kapadia captura sem cair em clichês ou em pregações superficiais e óbvias – o que é enriquecido, claro, pelas performances centrais.

Dito isso, o roteiro (da própria diretora) peca por certo desequilíbrio na divisão entre as três linhas narrativas e pela perda pontual de foco, quando se entrega a tangentes que não se conectam (nem se concluem) de forma satisfatória com o restante. Além disso, o tom do filme oscila em alguns momentos, criando uma sensação de inconsistência.

Reforçando o comentário feito durante a discussão de L´amour oeuf sobre a recorrência do realismo mágico na seleção dos filmes selecionados este ano, All We Imagine as Light também emprega o recurso no terceiro ato, o que acrescenta certo lirismo a uma abordagem até então mais seca e naturalista.

Marcando o retorno da Índia à mostra competitiva depois de um longo hiato, este é um filme que faz jus à distinção e estabelece Payal Kapadia como um nome a ser acompanhado de perto.

25 de Maio de 2024

Sobre o autor:

Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.
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