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Festival de Cannes 2024 - Dia #09 Festivais e Mostras

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Dia 8

31) Dirigido por Mohammad Rasoulof, The Seed of the Sacred Fig é em sua essência um grito de horror e protesto contra um Estado teocrático e autoritário que não deveria ter espaço no planeta em pleno 2024. Escrito pelo próprio cineasta, o roteiro gira em torno de uma família iraniana que, como tantas, é afetada pelas tensões políticas e sociais que explodem ao seu redor – especialmente porque o pai Iman (Missagh Zareh), recém-promovido a uma posição de juiz em um tribunal revolucionário, é pressionado a assinar condenações de morte por blasfêmia sem sequer ter tempo de ler os processos, o que o incomoda profundamente. Enquanto isso, sua esposa Najmeh (Soheila Golestani) - a verdadeira protagonista do filme - tenta manter a família unida enquanto equilibra as demandas de um marido cada vez mais paranoico e ansioso e duas filhas jovens que começam a questionar o regime opressor em que vivem. Aliás, mais do que apenas questionar: exaustas como boa parte das mulheres do Irã, Sana e Rezvan (Setareh Maleki e Mahsa Rostami) se juntam às manifestações que tomam as ruas – e quando uma amiga próxima das duas é ferida, presa e torturada pela polícia, a família é forçada a confrontar as contradições e horrores do sistema em que estão inseridos.

Atuando como um estudo sobre o autoritarismo e como este corrói não apenas a sociedade, mas também as relações pessoais (familiares ou não), o longa centraliza este processo na arma que Iman recebe como parte de sua função judicial e que, ao desaparecer, eleva sua paranoia a um ponto no qual passa a ser preocupante para a esposa e as filhas, já que começa a se questionar se ela teria sido roubada por uma das garotas – o que eventualmente transforma aquele lar em uma síntese da dinâmica da sociedade como um todo.

Atingindo o ápice da tensão em seu terceiro ato – os últimos 45 minutos de suas quase três horas de duração –, o poderoso plano final do longa (e não revelarei spoilers, obviamente) é uma metáfora fabulosa que cria uma das imagens mais emocionalmente intensas de todo o festival.

Aliás, é fundamental apontar também a coragem pessoal de Rasoulof, que rodou o filme em segredo (basta assistir ao longa para saber por que jamais seria aprovado pelo Estado) e, como consequência, enfrentou perseguição e prisão no Irã antes de se exilar. Neste sentido, o uso de imagens de arquivo que complementam o desfecho ressalta a urgência ao filme e o fato de que os riscos envolvidos são reais.

Certamente merecendo vencer o prêmio principal do evento – a Palma de Ouro de Melhor Filme -, The Seed of the Sacred Fig é essencial não apenas por sua relevância política, mas por sua maestria técnica e emocional.

E é o meu favorito do Festival de Cannes 2024.

32) La plus précieuse des marchandises (ou A Mais Preciosa das Cargas) é uma animação que aborda o horror do Holocausto através de uma fábula: com apenas 82 minutos de duração, o filme conta a história de um pobre lenhador e sua esposa, que vivem em uma região remota e gelada durante a Segunda Guerra Mundial e cuja tranquilidade é ocasionalmente quebrada pela passagem de trens. Com o desejo intenso de ser mãe, A Esposa do Lenhador (e seguindo o padrão de fábulas, todos os personagens são batizados de modo similar) reza para que os "deuses dos trens" deixem cair alguma “carga preciosa” em seu trajeto e, um dia, seu pedido é atendido quando um bebê é atirado de um trem que transporta judeus para campos de concentração. A partir daí, o filme acompanha o esforço do casal para cuidar da criança – mesmo que, a princípio, o Lenhador, a princípio contrariado até em função de seu antissemitismo, insista em rejeitar a ideia.

Em teoria, abordar o Holocausto através de uma estrutura fabulesca pode ser um conceito instigante e promissor – e visualmente o diretor Michel Hazanavicius (flertando com a animação depois de uma carreira comandando live action) acerta na abordagem básica: produzidaa em 2D com um estilo tradicional, a animação adota uma paleta de cores fria e triste que reflete a paisagem e o tema do projeto. O trem que transporta os judeus, em particular, é retratado de forma expressiva, trazendo uma uma caveira em sua parte dianteira e ressaltando o fogo que sai pela chaminé como se tratasse de uma máquina vinda do inferno. Estas escolhas visuais são impactantes, não há duvidas, mas também expõem a total falta de sutileza que atravessa a obra.

Optando por uma abordagem explícita e, muitas vezes, caricata, o roteiro do próprio Hazanavicius (baseado em livro de Jean-Claude Grumberg) retrata o Lenhador, por exemplo, como um antissemita definido apenas por seu preconceito e que, para deixar clara sua intolerância, faz comentários como "esse bebê deve ter vindo da terra dos sem-coração” e “eles mataram o filho de Deus". Não há nuance ou complexidade em sua caracterização – e esta obviedade se repete na constante utilização de uma iconografia já muito (e melhor) explorada por outros filmes que lidam com o Holocausto. Com a importante diferença de que aqui as imagens beiram o exploitation; em vez de provocarem reflexão, essas passagens parecem buscar apenas chocar e emocionar de forma barata, como se o filme estivesse mais interessado em arrancar lágrimas do espectador do que em contar uma história significativa.

É até irônico que no dia em que assisti ao melhor filme do festival acabei vendo também um dos piores.

26 de Maio de 2024

Sobre o autor:

Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.
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