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Festival de Berlim 2025 - Dia #02 Festivais e Mostras

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Dia 2

2) Living the Land, primeiro longa exibido na mostra competitiva da Berlinale 2025, é uma ficção com alma de documentário: dirigido por Huo Meng, o filme mergulha o espectador no cotidiano de um pequeno vilarejo chinês ao acompanhar quatro gerações da família Li. Com uma abordagem que evoca observação direta em uma narrativa ficcional, Meng encontra em cada detalhe daquele lugar a essência de seu povo, que, mesmo enfrentando condições de vida frequentemente duras, enxerga na terra uma parte fundamental de sua identidade.

Embora contendo uma ampla galeria de personagens, o roteiro escrito pelo próprio cineasta adota como ponto focal o garotinho Chuan, interpretado com um carisma notável pelo estreante Shang Wang: deixado no vilarejo para viver com os parentes depois que seus pais partiram para a cidade grande em busca de melhores oportunidades e levando consigo os dois irmãos maiores do menino (uma terceira criança sobrecarregaria financeiramente a família), Chuan é tratado com amor e cuidado pelos avós e pelos tios, mas isto não elimina seu constante sentimento de deslocamento por não carregar o sobrenome Li – o que de certo modo o coloca à margem. Em certo momento, por exemplo, seu avô explica onde cada membro da família será enterrado, mas o exclui por não dividir o sobrenome – um comentário feito não com crueldade, mas como uma simples constatação.

Aliás, o filme constrói uma galeria de personagens tão críveis e multifacetados que, quando um deles morre ou se muda para outro vilarejo, o espectador sente sua ausência; retratada com uma profundidade notável, a família Li nos conquista através das dinâmicas entre bisavó, avós, tios, tias e primos problemáticos - cada personagem tem motivações e temperamentos próprios, fugindo do recurso tão comum de conferir um único elemento marcante a cada membro do elenco.

Enquanto isso, a fotografia de Daming Guo, com suas cores quentes e vivas, evoca constantemente o calor humano que domina aquelas relações; as plantações de trigo, os campos e o próprio vilarejo são retratados com uma paleta saturada que, ao mesmo tempo em que salienta afetos, contrasta com a dureza da vida que aquelas pessoas levam. Pois o fato é que aquela não é uma existência idílica; as crianças brincam, riem, correm, mas ocasionalmente estas brincadeiras refletem indiretamente a crueza de sua realidade: logo no início da projeção, por exemplo, vemos os adultos desenterrando os restos de um parente que foi executado como ladrão há décadas e, descobrindo ao lado da ossada as balas que o mataram, entregam os projéteis para que os mais jovens possam utilizá-los como brinquedo. Da mesma forma, embora tenham acesso à escola, esta demonstra sua precariedade quando percebemos como as crianças levam seus próprios banquinhos para a sala de aula - e o principal recesso nos estudos é agendado para que os pequenos alunos possam usá-lo para trabalhar nas colheitas. E por mais extenuante que seja a rotina de trabalho, ainda assim aquela comunidade mal consegue sobreviver, sendo forçada a vender sangue para complementar a renda. Aliás, a dor e a pressão são tão presentes que, quando alguém chora, os demais nem sentem o impulso de oferecer consolo, já que reconhecem que aquilo é apenas parte da vida e que em outro momento serão eles que explodirão em lágrimas.

Fascinante também em sua atenção aos rituais da comunidade, Living the Land já abre a narrativa com uma longa sequência que acompanha o enterro de uma tia, observando o caráter performático do luto, com choros que começam e param conforme a situação exige, mas não de forma cínica – trata-se de uma demonstração de respeito e afeto, uma maneira de honrar os mortos com a expressão grandiosa da dor deixada por sua partida. Ao mesmo tempo, o longa encontra humor em passagens como a que traz a bisavó misturando pedras aos caracóis recolhidos pelos netos para venda, já que, experiente, sabe que os compradores utilizarão uma balança viciada para diminuir o valor pago.

Adotando os planos conjuntos como elemento básico da gramática visual do filme, Huo Meng usa estas composições compartilhadas do quadro para salientar o senso de comunidade e de pertencimento daquelas pessoas – como no momento em que a câmera percorre lentamente o espaço enquanto a família faz uma pausa durante a colheita para chupar picolé. Além disso, o desenho de som, que investe quase inteiramente em elementos diegéticos, reforça nossa imersão através dos ruídos cotidianos.

Refletindo a beleza de seu título, Living the Land deixa claro como aquelas pessoas não apenas vivem da terra – elas vivem a terra. Integradas ao seu ambiente de maneira profunda e orgânica, elas levam uma existência intimamente determinada pelo ciclo de plantio, colheita, nascimento e morte; se começa com um enterro, o filme também inclui casamentos e nascimentos, usando a família Li como uma representação de nossas próprias trajetórias.

Esta obra representou um começo maravilhoso para a competição.

3) Rodado em preto e branco e com uma razão de aspecto reduzida, o longa húngaro Growing Down (Minden Rendben) é uma obra que mergulha o espectador em uma atmosfera densa e claustrofóbica desde os primeiros minutos – algo apropriado para uma história que gira em torno de decisões impossíveis que inevitavelmente machucarão alguém importante para o protagonista, o viúvo Sándor (Szabolcs Hajdu), pai de dois filhos: um adolescente de 17 anos e um menino de 12, este último com um histórico preocupante de explosões de violência.

Iniciando um novo relacionamento e tentando aproximar os garotos de sua namorada, Sándor leva os filhos à festa de aniversário da filha desta – e é lá que a menina sofre um acidente ao cair em uma piscina vazia, entrando em coma. Porém, o que já seria uma tragédia se torna ainda mais devastador por possivelmente envolver a participação de seu caçula, Dénes (Ágoston Sáfrány), o que coloca o sujeito numa posição angustiante, já que revelar o que viu poderá resultar na destruição da vida do garoto, que certamente seria enviado a um reformatório.

Dirigido por Bálint Dániel Sós a partir de um roteiro co-escrito por este ao lado de Gergö V. Nagy, Growing Old retrata o comportamento de Dénes como uma incógnita: de onde vem tanta raiva? Seria um distúrbio de comportamento causado por alguma patologia psiquiátrica? Uma forma de lidar com a perda da mãe? Haveria algum modo de domar o temperamento impulsivo do menino? O fato é que estas incertezas tornam as decisões de Sándor ainda mais difíceis – e uma das virtudes da direção de Sós e da fotografia Kristóf Deák reside no modo como levam o espectador a sentir a ansiedade do personagem através do uso constante de primeiros planos (closes) que não apenas acentuam seu sufocamento como permitem que examinemos cada expressão em seu rosto. Enquanto isso, a montagem de Márton Gothár cria passagens de verdadeira subjetividade mental ao empregar, por exemplo, uma série de cortes cada vez mais velozes enquanto o protagonista toca piano, o que evoca seu estado emocional com grande eficiência.

Pontuado também por momentos de humor inesperados que oferecem ao espectador um alívio bem-vindo em meio à tensão constante, Growing Old infelizmente tropeça em seu desfecho – e, para evitar spoilers, aponto apenas que a resolução encontrada pelos realizadores soa simplista demais para um filme que, até então, vinha construindo uma narrativa complexa e desafiadora.

Não é um desastre, mas ainda assim frustra.

4) Um Completo Desconhecido faz jus ao seu título: evitando se tornar uma biografia convencional, o filme de James Mangold é menos um conjunto de “melhores momentos” da trajetória de seu protagonista e mais um estudo de personagem — ou, mais precisamente, da ausência de uma definição para este personagem.

Baseado em um livro de Elijah Wald adaptado por Mangold ao lado do veterano Jay Cocks (colaborador recorrente de Martin Scorsese há mais de trinta anos), o filme acompanha os primeiros anos da carreira de Bob Dylan (Timothée Chalamet), mas não com o intuito de conhecê-lo – o que, logo vemos, parece impossível - ou de apresentar uma narrativa linear sobre sua ascensão; em vez disso, o roteiro se concentra na ideia de que Dylan, mesmo para aqueles que o cercavam, era uma figura indecifrável. O que inclui o próprio músico, que frequentemente parece incapaz de compreender o que deseja ou o que faz.

Interpretado por Timothée Chalamet como um enigma cujos olhos inexpressivos (isto não é uma crítica à performance do ator; ao contrário: trata-se de uma abordagem essencial) podem não dizer nada ou dizer tudo que o espectador neles projete, Dylan soa como um alienígena que observou o comportamento dos humanos, mas não consegue compreendê-lo ou emulá-lo de modo convincente, mantendo-se distante e inacessível mesmo em suas interações mais íntimas.

Um alienígena, contudo, capaz de escrever músicas cujas letras demonstravam uma capacidade constante de comover, inspirar e desafiar até mesmo seus seguidores mais dedicados. Mas de onde vinham estas canções? Como alguém tão jovem podia ser capaz de capturar de modo tão sensível questões – sociais, políticas, emocionais – tão complexas que chegam a desafiar a compreensão de indivíduos com décadas a mais de vida e experiência? Estas perguntas, claro, não encontram respostas definitivas, já que o próprio Dylan insistia não ter qualquer intenção de usar sua arte como mensagem, defendendo o próprio direito de seguir sua trajetória sem ser visto como a “voz de uma geração”.

Beneficiado por um elenco coeso que inclui Edward Norton como um símbolo de integridade na figura de Pete Seeger e Monica Barbaro capturando a essência artística belíssima de Joan Baez (e também a frustração de uma mulher madura diante de um sujeito egoísta e incapaz de investir com sinceridade em uma relação), Um Completo Desconhecido ainda utiliza seus números musicais não como uma coletânea de sucessos obrigatórios, mas como forma de mover a narrativa e ilustrar a evolução de seus personagens

Remetendo aos brilhantes documentários que Scorsese fez sobre Dylan (No Direction Home e o semi-ficcional Rolling Thunder Revue), Um Completo Desconhecido repete a estratégia do mestre ao compreender que mais fascinante do que tentar “decifrar” um artista é testemunhar como o impulso criativo, a necessidade de se expressar, é mais determinante do que uma abordagem artística técnica, racional e facilmente explicável.

5) Se o primeiro filme da competição deste ano, Living the Land, foi uma experiência encantadora, o segundo, Hot Milk, infelizmente, foi um desapontamento. Marcando a estreia na direção da britânica Rebecca Lenkiewicz — conhecida principalmente por seu trabalho como roteirista, incluindo o excelente Ida (2013), de Paweł Pawlikowski —, Hot Milk pode até ter elementos promissores, mas acaba se perdendo em uma narrativa artificial e desconexa que não consegue sustentar suas próprias ambições.

Escrito pela própria cineasta a partir do livro de Deborah Levy, o roteiro acompanha Sofia (Emma Mackey), uma jovem que passa a maior parte de seus dias cuidando da mãe, Rose (Fiona Shaw), que se encontra presa a uma cadeira de rodas há décadas – uma paralisia que, ocasionalmente interrompida, sugere ter raízes psicológicas, sendo sintomático também que isto crie uma lógica na qual se torna dependente da filha, mas também amarra a garota à sua própria existência. Estudante de antropologia que há anos se arrasta para conseguir concluir o curso, Sofia estabelece com a mãe uma dinâmica que logo se revela o centro dramático do filme, o que se beneficia das eficientes performances de Mackey e Shaw, que concebem, por exemplo, nuances comuns às duas personagens que acabam por sugerir muito sobre sua história: em momentos de tensão, por exemplo, ambas exibem um tique nervoso ao piscarem os olhos, o que reforça a conexão entre as duas mulheres ainda que esta ligação tenha subtextos tóxicos.

Porém, a estabilidade – mesmo problemática – do cotidiano das personagens é alterado quando Rose decide hipotecar a casa a fim de financiar um tratamento com um médico espanhol, Dr. Gomez (Vincent Perez), cujos métodos oscilam entre a medicina convencional e algo que beira o charlatanismo – uma dubiedade que o filme cultiva deliberadamente: se por um lado Gomez solicita exames e avalia seus resultados, por outro parece confiar apenas em métodos mais intuitivos que envolvem longas conversas confessionais com a paciente (e sua especialização profissional jamais fica clara). Se por um lado isto poderia despertar questionamentos instigantes, na prática esta falta de clareza reflete um problema maior da obra: sua incapacidade de se comprometer com qualquer linha narrativa ou tema específico.

Não que o projeto careça de virtudes: a montagem de Mark Towns, por exemplo, adota uma lógica impressionista ao evocar a turbulência interna de Sofia em sequências que investem pesadamente em imagens simbólicas — como a que a traz em uma cadeira de rodas no fundo do mar —, enquanto o desenho de som ressalta a inquietude crescente da jovem através de elementos como o latido frequente de cachorros à distância e o toque insistente de telefones.

Infelizmente, um dos maiores problemas de Hot Milk (e que acaba por garantir seu fracasso) é a introdução de uma personagem secundária que, vivida por uma atriz normalmente brilhante (Vicky Krieps, de A Trama Fantasma), surge como uma caricatura de espontaneidade e vitalidade; aliás, sua entrada na narrativa é tão caricatural — ela entra em cena cavalgando em câmera lenta na praia, com um vestido branco ondulante recortado pela luz do sol — que chega a parecer uma piada, como se Lenkiewicz estivesse satirizando convenções de gênero. Lamentavelmente, não está: o filme não apenas leva a personagem a sério como lhe atribuindo um trauma que, em vez de trágico, soa ridículo. Com isso, se a cineasta pretendia criar um contraponto à tensa relação entre Sofia e Rose, o objetivo naufraga embalado por diálogos melodramáticos e clichês como "Você precisa abraçar a vida!" ou "Vocês eram apenas crianças!".

Como se não bastasse, o filme parece incapaz de desenvolver os próprios símbolos que cria, abandonando-os pelo caminho: em dois ou três momentos, por exemplo, a protagonista é queimada por águas-vivas, sugerindo, através da repetição, um significado metafórico que jamais se torna claro e que é eventualmente esquecido.

Com um desfecho que parece apostar na ambiguidade como força, mas que acaba soando como uma mera desculpa para uma resolução preguiçosa, Hot Milk provavelmente se estabelecerá como um dos longas mais frágeis da mostra competitiva da Berlinale 2025.

14 de Fevereiro de 2025

Sobre o autor:

Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.
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