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Dia 3
6) Com uma filmografia marcada pelas críticas severas e constantes à lógica capitalista, o sul-coreano Bong Joon Ho demonstra uma coerência notável em suas narrativas, que discutem de modo inventivo temas como desigualdade social e as estruturas de poder que perpetuam um sistema que obviamente fracassou há muito tempo. De Expresso do Amanhã e Parasita, passando por O Hospedeiro e Okja (no qual outra de suas preocupações – o abuso animal – é abordada), o cineasta emprega sua sensibilidade política como fonte criativa – algo mais uma vez evidente em seu novo trabalho, Mickey 17.
Adaptado do livro de Edward Ashton pelo próprio diretor, o roteiro acompanha Mickey Barnes (Robert Pattinson), um sujeito que, para fugir do perigoso agiota ao qual deve dinheiro, se inscreve em uma missão espacial patrocinada por um bilionário fracassado na política, Kenneth Marshall (Mark Ruffalo), e que visa colonizar um planeta distante. No entanto, ao não prestar a atenção devida ao formulário que preenchia, Mickey acaba se tornando voluntário para ser um expendable — “descartável” -, ou seja, passa a viver para morrer. Quando isto ocorre (e ocorre um número de vezes que não é difícil deduzir), uma nova versão é "impressa", tendo suas memórias e personalidade reimplantadas para que continue o trabalho. Trata-se de um conceito fascinante e repleto de possibilidades que – não é preciso ser um gênio para perceber - serve como metáfora para a exploração do proletariado pelas classes dominantes: para seus empregadores, Mickey é literalmente descartável, um trabalhador cuja vida vale menos que o custo de sua substituição, sendo muitas vezes mais fácil exterminá-lo do que tentar curá-lo dos problemas que podem comprometer sua saúde.
Seguindo este objetivo temático, o diretor também ilustra de outros modos como as classes economicamente menos favorecidas são vistas pelas “elites” como compostas por seres “inferiores” – e a nave que abriga a maior parte da ação é um exemplo perfeito da inteligência da direção de arte do filme: suja, remendada e cheia de improvisos (especialmente nas áreas ocupadas pelos trabalhadores), a nave só exibe ambientes limpos, luxuosos e confortáveis nos espaços reservados ao bilionário e sua esposa, vivida por Toni Collette (e cuja obsessão por molhos demonstra como sua realidade está a anos-luz daquela experimentada pelos esfomeados operários que mantêm tudo funcionando).
Encarnando Marshall com uma abordagem que abraça perigosa e acertadamente a caricatura, Mark Ruffalo concebe o sujeito como um amálgama de figuras como Donald Trump e Elon Musk: autoritário, egocêntrico e obcecado com a ideia de colonização e pureza racial, o bilionário basicamente grita suas intenções nazistas ao falar em estabelecer uma "raça pura" no novo planeta – e é notável como o ator consegue se equilibrar entre a composição divertida e as ações desprezíveis, criando um vilão que é tanto cômico quanto repugnante (e o mesmo pode ser dito acerca de Toni Collette).
Mas, claro, é Robert Pattinson quem sustenta o filme sobre os ombros, adotando uma composição repleta de nuances e transmitindo a insegurança e a vulnerabilidade do personagem através de sua postura encolhida e da voz anasalada, trêmula e hesitante que se contrapõem à versão mais dominante (quase sociopática) e fria de Mickey 18, demonstrando uma habilidade imensa ao permitir que o espectador os separe sem que seja preciso que se identifiquem.
Não que Mickey 17 se limite a virtudes: o humor, marca registrada de Bong Joon Ho, aqui se mostra mais irregular, tropeçando em gags que nem sempre funcionam – embora conte também com momentos genuinamente engraçados — como ao apresentar a máquina que gera as novas versões de Mickey e que, como uma impressora comum, apresenta travamentos e retrocessos do papel/clone. Além disso, a narração em off, embora necessária por se tratar de uma adaptação que precisa transmitir a vida interior do personagem e suas reflexões, por vezes soa excessiva e mesmo preguiçosa, criando atalhos verbais para elementos que poderiam gerar passagens visuais interessantes.
Não há, porém, como negar as ambições temáticas do filme e de seu realizador: além da já discutida crítica ao capitalismo e à exploração do trabalhador, Mickey 17 também aborda questões como a colonização (com invasores tratando os nativos como agressores), a destruição ambiental e o abuso animal (neste sentido, o desenho de som merece destaque ao conceber as criaturas alienígenas, cujos ruídos incluem quase subliminarmente os latidos e ganidos de cachorros, inspirando assim uma simpatia imediata por elas).
Fazendo referências diretas a movimentos de extrema-direita (as roupas e bonés dos seguidores de Marshall remetem aos usados pela turma do MAGA), o filme faz uma relevante comparação entre grandes corporações, movimentos políticos e igrejas, mostrando como todos podem facilmente se tornar instrumentos de controle e opressão. E, claro, é também possível enxergar no longa uma discussão existencial sobre a natureza da identidade e da continuidade da vida, embora esta não pareça ser a principal preocupação de Bong Joon Ho.
O fato é que o filme tem me voltado à mente de forma contínua desde que o vi na Berlinale – e isto é sempre evidência de uma obra que deixou suas marcas no espectador.
7) É curioso como o cineasta mexicano Michel Franco tende a dividir opiniões; se há aqueles que, como eu, admiram sua habilidade ao criar tensão e explorar dilemas morais e éticos em narrativas ambiciosas, há outros que veem em sua abordagem estética uma barreira incontornável para que mergulhem em suas obras . Desconfio que Dreams, exibido como parte da mostra competitiva da Berlinale 2025, seguirá o mesmo caminho – mesmo que desta vez eu não sinta o impulso costumeiro de defendê-lo graças a questões que discutirei adiante.
Escrito pelo próprio diretor, o roteiro tem início com a jornada de Fernando (Isaac Hernández) do México a San Francisco, nos Estados Unidos: transportado por coiotes em caminhão fechado que acaba abandonado à beira de uma estrada, colocando em risco sua vida e as de dezenas de outros imigrantes ilegais, o rapaz insiste em retornar ao país que já o havia deportado não por almejar alcançar o tal “sonho americano” (na realidade, um pesadelo), mas por querer se reunir com a mulher com quem mantinha um caso sigiloso. Interpretada por Jessica Chastain, Jennifer McCarthy é executiva de uma grande corporação pertencente à sua família e presidida por seu pai, dedicando-se particularmente aos projetos filantrópicos que visam trazer um rosto mais amigável à empresa – entre os quais vários ancorados em imigrantes latinos e na comunidade mexicana.
A partir daí, o longa poderia seguir por vários gêneros e se apresentar como um thriller sexual, um drama sobre diferenças de classe econômica e idade, ou até mesmo um romance mais convencional sobre duas pessoas cujo amor é encarado como tabulo – e ao tentar abraçar todas estas possibilidades, Dreams começa a perder seu centro narrativo, embora consiga também manter o espectador interessado na situação de seus personagens.
A dinâmica do casal, por sinal, é o ponto forte do longa: Chastain, como de hábito, oferece uma performance instigante ao compor sua personagem como uma mulher que, rica, acostumada ao conforto e ao poder, tem como fraqueza o desejo inquestionável que sente pelo parceiro mais jovem, um imigrante pobre, ilegal e que como bailarino provavelmente jamais atingirá uma estabilidade financeira que lhe permita equilibrar ao menos um pouco esta dinâmica (a Arte raramente gera riqueza). Vivendo uma atração palpável, mas desigual, Jennifer desenvolve uma obsessão crescente pelo rapaz, enquanto este lida com o ressentimento de não poder assumir publicamente o relacionamento, já que a família da executiva jamais o aceitaria.
Ilustrando a tensão entre os dois através de planos longos e diálogos mínimos para revelar as emoções dos personagens através de suas ações e de seu comportamento em cena, Michel Franco muitas vezes usa pequenos gestos na mise-en-scène para comunicar elementos da personalidade daquelas pessoas: em certo momento, por exemplo, Chastain entrega casualmente o casaco para uma subordinada, sem nem olhar para esta, evocando em um movimento breve sua posição de poder e sua distância emocional. Do mesmo modo, a fotografia de Yves Cape emprega contrastes entre paleta de cores para demonstrar a posição e o temperamento de Jennifer e Fernando, adotando tons quentes nas cenas que envolvem o imigrante e seus amigos, e investindo em cores mais frias para acompanhar o cotidiano muitas vezes solitário da executiva. Através desta contraposição visual, o filme acaba por reforçar a ideia de que a mulher busca no parceiro um calor humano que falta em sua vida privilegiada e repleta de eventos sociais que, no entanto, só ressaltam o vazio que sente.
Dito isso, seus esforços de conexão são sempre limitados por seu pânico diante da possibilidade de ostracismo entre seus pares – e também por seu próprio preconceito: em determinada passagem, por exemplo, ela fica visivelmente incomodada ao ver o namorado conversando em espanhol com um garçom mexicano que os atende, sendo possível tanto a interpretação de que o desconforto vem de seu sentimento de exclusão ou (o mais provável) do fato de ver o namorado tratando um garçom como um igual.
Infelizmente, apesar das questões instigantes que apresenta, Dreams perde o rumo no terceiro ato ao enfocar (não se preocupem, não há spoilers) uma ação específica de um dos personagens que, de tão extrema e condenável, anula qualquer possibilidade de discussão sobre os temas que o filme vinha construindo. Trata-se de uma escolha narrativa desastrosa, que destrói a complexidade da relação entre os personagens e reduz o conflito a uma questão moral binária, transformando o que poderia ser uma reflexão profunda sobre poder, classe e desejo em uma questão simplista e frustrante.
Neste sentido, a frustração também remete a obras anteriores de Franco – especialmente Chronic, que, depois de 90 minutos brilhantes, consegue a proeza de desmoronar totalmente em seus dez segundos finais. Desta vez, o estrago não é tão imenso, mas enfraquece o filme a ponto de tornar difícil que levemos a sério suas intenções originais.
8) Embora admire a carreira de Anna Muylaert, que criou obras belíssimas em Que Horas Ela Volta? e no documentário Alvorada, há uma certa irregularidade em sua trajetória que não consigo deixar de observar: se demonstra sensibilidade para discutir questões sociais complexas em determinados trabalhos, em outros, como Mãe Só Há Uma e Chamada a Cobrar, a narrativa parece ser tomada por uma artificialidade que, nascida no roteiro e fermentada por performances frágeis, jamais consegue se recuperar – e infelizmente A Melhor Mãe do Mundo, seu mais recente longa, se encaixa na segunda categoria.
A história, concebida pela própria Muylaert, gira em torno de Gal (Shirley Cruz), uma catadora de papel e latas que decide fugir de um relacionamento abusivo com o companheiro Leandro, interpretado por Seu Jorge. Amedrontada, ela leva os dois filhos — que não são dele — e inicia uma longa jornada rumo à casa de uma prima, já que deve puxar seu carrinho durante todo o trajeto. Apresentando a fuga como uma "grande aventura" para as crianças a fim de não assustá-las (um toque de A Vida é Bela que jamais é explorado), Gal vai encontrando outras figuras pelo caminho, vivendo uma narrativa que, de certo modo, assume ocasionalmente as características de um road movie.
Um dos principais problemas do filme, vale apontar, reside na tentativa de Muylaert de criar autenticidade através de escolhas que, paradoxalmente, resultam em uma sensação de artificialidade – como, por exemplo, ao escalar não-atores — como um carroceiro — em pequenos papéis. Embora esta decisão possa até ter sido feita com a intenção de trazer “realismo” à narrativa, as performances destas pessoas são tão duras e mecânicas que quebram a imersão do espectador (e na tal cena envolvendo o carroceiro, que deveria ser de execução simples, a falta de naturalidade do rapaz é tão evidente que a cena simplesmente desmonta na tela).
Em contrapartida, Shirley Cruz compõe Gal com raiva contida e ansiedade crescente; sua expressão sempre cerrada e seu olhar tenso são eficientes ao transmitirem a angústia de uma mulher que parece ter perdido a capacidade de ver beleza no mundo – e a edição de som, com ruídos frequentes como o de cachorros latindo e telefones tocando ao fundo, reforça essa sensação de inquietude, evocando no espectador a mesma inquietação da personagem. Dito isso, também aqui o filme peca ao telegrafar demais certos elementos, como ao empregar uma grande angular em um close, em certo instante, que já antecipa ao espectador o que determinado personagem irá fazer, eliminando qualquer choque que poderia surgir naturalmente da narrativa.
Enquanto isso, Seu Jorge, apesar de uma participação breve, consegue transmitir o fascínio e a ameaça que seu personagem representa, ajudando o filme a retratar a complexidade de um relacionamento abusivo: mesmo ciente de que ceder ao companheiro apenas reiniciará ciclos de violência, Gal sente saudades e desejo pelo sujeito, o que também a leva a experimentar um sentimento de autodesprezo comovente (e injusto). São nestas passagens que a sensibilidade característica de Muylaert surge com maior força.
E, ainda assim, estes momentos são contrapostos por cenas que, tentando abordar questões políticas e sociais mais sérias, soam apenas forçadas. Um exemplo claro disso pode ser encontrado no instante em que Gal conhece uma mulher que vive em uma ocupação, quando, convidada a se juntar àquela pequena comunidade, responde: "Ficar numa ocupação? Mas eu não sou bandida!" – um diálogo pavoroso em sua artificialidade e que tem o claro propósito de abrir espaço para uma lição à medida que a protagonista inevitavelmente descobre o erro de seu julgamento e constata a legitimidade do movimento.
Por sinal, um problema similar pode ser detectado no desfecho do longa, que traz uma conversa final entre Gal e a filha que é de uma artificialidade gritante (e tenho plena consciência de ter usado a palavra “artificial” várias vezes ao discutir o filme; infelizmente é inevitável), como se o roteiro precisasse mastigar a "moral da história" para o espectador.
Minado pela mão pesada com que Muylaert trata a narrativa em determinados momentos, A Melhor Mãe do Mundo não faz jus ao talento e à sensibilidade de sua criadora.
9) O título é ótimo - O Diabo Fuma (e Guarda as Cabeças dos Fósforos Queimados na Mesma Caixa) –, mas acaba funcionando como uma espécie de punchline em um filme que não deveria ter uma. Escrito pelo diretor mexicano Ernesto Martínez Bucio a partir de roteiro co-escrito com Karen Plata, o longa gira em torno de cinco crianças — três meninos e duas meninas — que vivem com os pais e a avó em um ambiente familiar marcado por instabilidade: a mãe sofre de algum tipo de patologia psíquica (embora o filme não a identifique, soa como esquizofrenia) e o pai, embora presente, parece incapaz de lidar com a situação. Quando a mãe desaparece ao ter um de seus episódios de instabilidade, o pai sai para procurá-la, deixando os filhos sob os cuidados da avó, que também é esquizofrênica e tem alucinações religiosas frequentes envolvendo o diabo.
Sem se limitar a uma trama convencional, o longa constrói sua narrativa a partir da observação do cotidiano das crianças, retratando suas interações, brigas, reconciliações e a maneira como lidam com a negligência e o abandono. Interpretadas por atores mirins excepcionais e que têm uma química tão natural que é difícil acreditar que não sejam irmãos de verdade, elas trocam provocações, preocupações e se envolvem em briga que muitas vezes são resolvidas sem a necessidade de palavras — uma dinâmica fraternal tão legítima que ocupa o lugar do drama em si.
Ainda que triste em sua essência, O Diabo Fuma… não ignora os momentos de humor que surgem naturalmente da inocência e da espontaneidade daquelas crianças – e que são essenciais para equilibrar o tom do filme, que de modo geral é marcado pela sensação de abandono e desamparo. Dito isso, há instantes nos quais a obra parece ignorar o abuso daquela negligência, esforçando-se para levar o espectador a torcer para que os assistentes sociais que visitam os irmãos não percebem o que está acontecendo – quando, na realidade, o fato é que estes precisam desesperadamente de auxílio.
Como se não bastasse, assim como no húngaro Growing Down, sobre o qual também escrevi nesta cobertura da Berlinale, O Diabo Fuma… peca por desfecho abrupto e que de certa forma trai o que vinha construindo até então, soando apressado e um pouco covarde ao não lidar com as consequências de tudo que retrata.
10) Desde a cena inicial, o franco-belga Ari estabelece o peso emocional que recai sobre seu protagonista: dirigido por Léonor Serraille, o filme começa com uma sequência poderosa na qual a mãe do personagem-título explica ao filho, ainda criança, a origem de seu nome, que foi inspirado por um artista que, após perder um filho e a capacidade de pintar, teve outro filho que o fez recuperar não apenas a paixão pela arte, mas também a cor em suas obras. Contada com um olhar cheio de expectativas e projeções que Serraille enfoca em primeiríssimos planos que revelam ao mesmo tempo o amor entre mãe e filho e a injustiça de projetar tantas expectativas sobre uma criança, a história já expõe o fardo que Ari carrega desde a infância: a ideia de que sua existência deve de algum modo trazer esperança e renovação ao mundo.
Assim definindo como um de seus temas centrais o peso das expectativas — tanto as que os outros depositam sobre nós quanto as que criamos para nós mesmos -, o longa segue esta discussão ao imediatamente saltar para a vida adulta de Ari, que, professor de maternal ainda estagiário, está sendo avaliado por uma supervisora em uma de suas aulas. Engraçada e angustiante, a cena extrai hilaridade do extremo nervosismo do rapaz, que em vez de apenas ler um poema para os pequenos alunos de quatro anos de idade tenta contextualizá-lo ao falar sobre a Segunda Guerra Mundial. Rodada com uma câmera inquieta e mais uma vez colada ao rosto do personagem, a passagem transmite sua ansiedade palpável, fazendo com que o espectador compartilhe de sua crise de pânico.
A partir daí, o roteiro da própria cineasta segue o protagonista em uma jornada de autodescoberta enquanto revisita antigos amigos e conhecidos, constatando em cada encontro a universalidade de boa parte das frustrações que carrega. Um antigo amigo que trabalha no “mercado”, por exemplo, fala incessantemente sobre seus méritos e conquistas, mas não demora a ficar patente como recebeu ajuda em cada passo — do sogro para comprar uma casa, do pai para conseguir um emprego – embora, claro, insista em discursar sobre “meritocracia” e em afirmar que atingiu seus objetivos sozinho. Representando o centro narrativo do longa, estas conversas são movidas pela curiosidade legítima de Ari, que demonstra um interesse real em ouvir o que os demais têm a dizer em vez de apenas fazer indagações com o objetivo de vocalizar as próprias opiniões.
Abordando estas discussões com uma estratégia visual dinâmica e inteligente, Serraille constantemente enfoca Ari refletido em superfícies — espelhos, vidros —, utilizando este recurso para simbolizar as expectativas que pesam sobre este e sua constante busca por si mesmo. Ao mesmo tempo, o ator francês Andranic Manet carrega o filme com uma composição repleta de nuances, transmitindo a doçura, a dor e principalmente a sensibilidade de Ari, um sujeito que, ao carregar o bebê de um amigo, não consegue evitar as lágrimas diante da inocência da criança – e, claro, das dores que a aguardam no futuro.
Isto não quer dizer, contudo, que o filme idealize seu protagonista: capaz de atos egoístas e exibindo erros de julgamento óbvios, Ari se torna, assim, mais humano e real – e sua trajetória não gira em torno de alcançar algum tipo de epifania, mas de aprender a ser mais gentil consigo mesmo e compreender que não cumprir expectativas impossíveis não significa fracasso, mas sim parte da complexidade da vida.
15 de Fevereiro de 2025