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Dia 4
11) Responsável pelo excelente Boi Neon e pelo instigante Divino Amor, o pernambucano Gabriel Mascaro é um cineasta cujos trabalhos podem até receber o rótulo superficial de “provocativos”, mas sempre expressam estas inquietudes com inteligência, complexidade e uma abordagem estética notável. Em seu novo longa, O Último Azul, exibido como parte da competição do Festival de Berlim 2025, o diretor nos apresenta a uma distopia futurística que, embora situada em um futuro fictício, reflete com eficiência as mazelas muito reais do presente.
Ambientado em um Brasil no qual os idosos são obrigados a se mudar para colônias governamentais ao atingirem certa idade, o roteiro de Mascaro e Tibério Azul apresenta como justificativa institucional para a medida um desejo de "recompensar" aqueles indivíduos pelos anos de trabalho dedicados ao país – uma justificativa cuja demagogia logo fica clara ao ser exposta como uma forma de segregar e descartar aqueles que já nos dias de hoje são vistos por neoliberais como um ônus ao Estado. Supostamente determinado a "honrar" estes cidadãos mais velhos com medalhas e cuidados, o governo não hesita em caçá-los e transportá-los em veículos batizados pela população como “cata-velhos” – e tampouco é promissor o fato de que aparentemente ninguém sabe exatamente onde ficam estas colônias de “aposentados”.
Trazendo a veterana Denise Weinberg como a protagonista Tereza, que atinge a idade-limite determinada pela legislação, O Último Azul não demora em apontar como, depois de passar a vida desempenhando trabalhos braçais exaustivos (ela agora é funcionária da limpeza em um matadouro de crocodilos), ela chega à fase derradeira de sua existência sem conquistar confortos mínimos, já que as remunerações oferecidas pelos empregadores são, como de hábito, totalmente desproporcionais ao esforço e às horas de dedicação de uma classe politicamente ignorada – algo típico de uma distopia que, infelizmente, é também a realidade do mundo atual. Angustiada pela determinação arbitrária do fim de seus dias “úteis”, Tereza lida ainda com a frustração por nunca ter tido a chance de realizar o sonho de voar em um avião – e quando Mascaro enquadra a personagem diante da foto de uma aeronave, as asas do aparelho parecem atravessar sua cabeça, criando uma imagem simbólica bonita de sua obsessão e de sua determinação por permanecer livre.
A performance de Weinberg, por sinal, é construída com uma inteligência que se revela apenas aos poucos: a princípio, a antipatia da personagem, que mantém a expressão sempre cerrada e uma postura quase agressiva, se arrisca a afastar o espectador (especialmente quando as tentativas de humor da narrativa são sumariamente abortadas pela protagonista), mas, à medida que a projeção avança, a transformação gradual na composição revela um arco belíssimo — e o simples ato de soltar o cabelo se torna uma revelação absoluta. Com isso, a atriz praticamente oferece uma aula ao demonstrar como sacrificar momentos pontuais de empatia fácil para estabelecer uma trajetória mais complexa a longo prazo é uma decisão corajosa capaz de trazer recompensas imensas.
Brilhante também em sua direção de arte (obra de Dayse Barreto), O Último Azul cria um futuro que parece ao mesmo tempo familiar e estranho, usando locações reais — como uma área tomada por casas de palafita — e complementando-as com elementos que reforçam a atmosfera distópica (e, neste sentido, vale apontar novamente como a realidade dos que pouco têm soa como distopia para quem não é obrigado a enfrentá-la cotidianamente). Enquanto isso, outros ambientes concebidos para o filme, como um parque abandonado (ao menos, creio ser algo criado por Barret), resultam em imagens não só impactantes como significativas, apresentando-se como um símbolo de uma alegria há muito esquecida e impossível. Como se não bastasse, a fotografia de Guillermo Gaza captura e ressalta a beleza dos cenários naturais ao mesmo tempo em que confere a estes uma profunda melancolia, resultando em quadros que poderiam perfeitamente ser emoldurados e pendurados na parede (aliás, entre estes eu incluiria também aquele que traz dois peixes – um branco, outro vermelho – se encarando em um aquário). Para completa, há a trilha de Memo Guerra, que, além de adicionar uma camada de leveza e até mesmo de humor a uma narrativa que, em sua essência, é pesada e melancólica, consegue sugerir um tom fabulesco que combina com o realismo mágico que atravessa a narrativa aqui e ali.
Contando ainda com performances fantásticas de Rodrigo Santoro e da cubana Miriam Socarras em papéis menores, mas fundamentais, o longa emprega a vivacidade da personagem desta última e a melancolia presente na composição do primeiro como contrapontos na evolução da própria protagonista – e se Socarras quase rouba o filme ao viver uma mulher que aprendeu a burlar o sistema para alcançar alguma liberdade, Santoro se destaca em um plano no qual a câmera, aproximando-se lentamente de seu rosto, expõe a tristeza em seus olhos e revela muito sobre o sujeito sem que uma linha de diálogo tenha que ser pronunciada.
Sem jamais esquecer sua veia política (presente mais em subtexto do que escancaradamente como em Divino Amor), Mascaro aponta, por exemplo, a hipocrisia de uma ideologia conservadora que, ao mesmo tempo em que prega a importância da família, não hesita em desmantelá-la ao enviar os idosos para longe – um reflexo de tantos líderes políticos e religiosos que, sempre apontando o dedo na direção de progressistas com a acusação de que estão “destruindo valores familiares”, estão constantemente nas capas dos grandes portais envolvidos em denúncias de abuso sexual e atos de violência.
É difícil não pensarmos que esse futuro distópico já está aqui.
12) De modo geral, “chato” não é um adjetivo que considero muito relevante ao descrever um filme: há obras que podem ter um ritmo lento, que testa ocasionalmente a paciência do espectador, e que ainda assim se revelam experiências maravilhosas; no mínimo, estas abordagens exigem uma atenção que muitas vezes é dispersada ou mal recompensada por outras narrativas que na superfície bombardeiam o público de informações.
Dito isso, o francês A Torre de Gelo é chato em um nível torturante.
O problema aqui não reside necessariamente no ritmo equivocado, na falta de incidentes impactantes ou da atmosfera gélida (literal e metaforicamente), mas de decisões criativas que sugerem o esforço para transformar uma história rasa em algo que pudesse ocupar as intermináveis duas horas de projeção. Escrito pela diretora Lucile Hadzihalilovic ao lado de Geoff Cox, o roteiro, ambientado nos anos 70, acompanha Jeanne (Clara Pacini), uma jovem de origem humilde que vive em um vilarejo congelado e sonha em escapar de sua realidade para encontrar algo mais significativo na vida – algo que ela faz depois de uma longa caminhada pela neve até chegar a uma cidade maior, refugiando-se finalmente em um estúdio de cinema e passando a dormir escondida atrás dos cenários, já que não tem dinheiro para se hospedar em outro lugar. É ali, então, que ela se depara com a produção de um filme baseado na fábula da Rainha de Gelo - uma história que ela mesma costumava contar à irmã mais nova. Envolvendo-se aos poucos com o projeto, ela se aproxima da estrela do filme, a irascível Cristina Van Der Berg (Marion Cotillard), cujas intenções acerca da novata são misteriosas.
Ou não. Porque um dos aspectos mais frustrantes de A Torre de Gelo é a obviedade do roteiro, que, previsível e tolo, traz uma protagonista que, inicialmente atenta a todas as ameaças (normalmente representadas por homens), de repente se mostra incapaz de perceber o óbvio até que seja tarde demais – e se talvez um comentário pudesse ser feito sobre o fato de ela ignorar o perigo quando representado por uma mulher, este é um ponto pelo qual o filme não demonstra interesse. Assim, o público fica preso à parvoíce de Jeanne enquanto o longa se arrasta até o desfecho, já que Hadzihalilovic parece acreditar que a lentidão acrescenta profundidade à narrativa – e 80% da obra consistem em personagens caminhando lentamente enquanto se aproximam ou se afastam da câmera (outros 10% se resumem a planos-detalhe de mãos pegando objetos no chão, ao passo que o tempo restante é dedicado a mostrar a heroína olhando para o mundo com expressão triste).
É triste, portanto, constatar como o excelente trabalho de direção de arte acaba por ser desperdiçado: concebido por Julia Irribarria como um espaço formado por corredores escuros e ambientes sufocantes, o estúdio só é superado pelos cenários do filme-dentro-do-filme, que conseguem sugerir a natureza de fábula daquela história, surgindo grandiosos, ao mesmo tempo em que levam o espectador a suspeitar de que aquele projeto não vai resultar em uma obra das melhores, fazendo jus ao próprio longa que o abriga.
O mesmo, aliás, pode ser dito sobre a personagem de Marion Cotillard – se a Cristina Van Der Berg interpretada por esta não parece ser uma atriz das mais competentes, a própria Cotillard não parece entender a diferença entre “misteriosa” e “inexpressiva”, transformando uma figura que deveria despertar fascínio em uma fonte de tédio. Enquanto isso, a novata Clara Pacini, mesmo com seus olhos grandes e expressivos, fica limitada pelo roteiro e pela direção, passando a maior parte do filme caminhando vagarosamente e encarando tudo ao seu redor com uma melancolia que soa mais como muleta dramática do que como algo orgânico à protagonista. Fechando o elenco principal, August Diehl faz o máximo que pode como o médico/fornecedor/amante?/assistente da estrela Cristina (embora este máximo não seja muito), ao passo que o cineasta Gaspar Noé, marido de Hadzihalilovic, parece se divertir interpretado o também cineasta Dino.
Fico feliz que alguém tenha se divertido com A Torre de Gelo.
13) Uma das grandes surpresas desta Berlinale até o momento, o brasileiro A Natureza das Coisas Invisíveis, dirigido pela jovem Rafaela Camelo, lança um olhar sensível e delicado sobre o universo infantil, transformando uma trama aparentemente simples em uma narrativa repleta de encantamento. Escrito pela própria diretora, o roteiro nos apresenta à pequena Glória, uma menina de 11 anos que, tendo passado por um transplante de coração ainda na primeira infância, precisa se medicar constantemente, o que de forma alguma lhe tira a alegria, a agitação e a curiosidade típicas da idade. Filha de uma enfermeira que, mãe solteira, não tem com quem deixá-la nas férias, Glória passa os dias no hospital em que Antônia trabalha - e é lá que conhece Sofia, uma garota de sua idade que acompanha a bisavó, Francisca, internada após um acidente doméstico enquanto estavam sozinhas em casa.
Presença importante no cotidiano dos pacientes, que se alegram com sua espontaneidade, Glória não demora a deixar clara sua familiaridade com o ambiente hospitalar — ela conhece os funcionários, os corredores e até o depósito que contém as caixas onde são guardados os pertences daqueles que, como ela diz sem compreender totalmente o significado destas palavras, "foram embora". Vivida pela estreante Laura Brandão, cuja doçura e naturalidade são cativantes, Glória finalmente encontra uma companhia mais apropriada em Sofia, que, incorporada pela também estreante Serena, estabelece uma dinâmica leve e encantadora com a nova amiga.
Aliás, os elogios não devem ser limitados ao elenco infantil, já que as veteranas também criam performances essenciais para o sucesso do longa: vivendo respectivamente as mães de Glória e Sofia, Larissa Mauro e Camila Márdila evocam com sensibilidade a exaustão de mães solteiras que lidam com múltiplas responsabilidades — uma avó doente, uma filha em férias e, no caso da personagem de Márdila, um ex-marido obviamente problemático. Marcada pela sororidade e pelo apoio mútuo, a dinâmica entre essas mulheres se torna aos poucos um dos pilares emocionais do filme, que também encontra um suporte fundamental em Aline Marta Maia como a “bisa” Francisca: sua vivacidade é tamanha que, nos instantes em que a mulher é devorada pelo Alzheimer, sentimos profundamente a ausência de sua consciência — uma perda que ecoa na filha e na neta.
Mas o que realmente define A Natureza das Coisas Invisíveis é a maneira como captura a capacidade infinita das crianças de encontrar fascinação e divertimento mesmo nas circunstâncias mais difíceis: Glória e Sofia correm, gritam (não de pavor, mas aqueles gritos que as crianças soltam por excesso de energia) e exploram o mundo com uma alegria contagiante – e a naturalidade com que lidam com questões que os adultos muitas vezes evitam — como a morte — é um dos aspectos mais tocantes do longa. O filme, diga-se de passagem, por vezes adota uma visão quase metafísica sobre o tema, tratando estas discussões sem tabus ou pregações e exibindo, em vez disso, uma abertura típica de suas jovens personagens. A crença em rituais como o benzimento, por exemplo, é retratada sem julgamento, quase em um tom documental (eu não me espantaria caso as amigas da bisa tenham sido interpretadas por não-atrizes), reforçando a ideia de que a vida e a morte são processos que transcendem a compreensão imediata.
Contrapondo com eficácia as sequências no hospital àquelas que se passam em um sítio, Camelo e a diretora de fotografia Francisca Sáez Agurto reforçam, neste contraste entre os espaços confinados de um e as áreas abertas de outro, a ideia de como a infância é um espaço de liberdade, imaginação e ausência de preconceitos – ao menos, até que os adultos de mentalidade estreita intervenham e as contaminem.
Hábil ao ancorar o espectador ao ponto de vista de suas pequenas estrelas, A Natureza das Coisas Invisíveis é – e sei que estou empregando a palavra pela terceira vez – encantador, estabelecendo Rafaela Camelo como um talento a ser acompanhado de perto daqui em diante.
14) Em sua essência, Reflexos em um Diamante Morto é um grande exercício de gênero — uma homenagem, uma brincadeira com as convenções dos filmes de espiões produzidos nos anos 60 e 70. Concebida pelo casal formado pelos franceses Hélène Cattet e Bruno Forzani, que assinam juntos roteiro e direção, esta produção belga é uma festa visual que envolve direção de arte, figurinos e fotografia fabulosas… que, infelizmente, estão a serviço de um roteiro que se acredita mais inteligente do que realmente é, naufragando em uma estrutura cuja complexidade mal consegue disfarçar o fato de ser apenas uma desculpa para que os realizadores criem sua própria versão irônica de James Bond e Harry Palmer – algo já feito, por exemplo, por títulos como Austin Powers e Agente 117.
Desta vez, o espião se chama John D., que, já idoso e aposentado, vive num hotel na Riviera francesa enquanto se lembra de seus dias de glória. Depois de ter sua atenção despertada por uma jovem na praia ele mergulha em uma série de devaneios sobre o passado que se tornam ainda mais intensos quando a moça desaparece – e aos poucos o longa embaça a fronteira entre memórias, alucinações e mesmo a possibilidade de que estejamos apenas vendo… a produção de um filme. Isto, claro, serve como desculpa perfeita para que Cattet e Forzani invistam em referências cinematográficas e experimentações que denotam seu amor pelo gênero.
Em teoria, esta estrutura fluida poderia ser fascinante; contudo, ao longo dos breves 87 minutos de projeção o exercício vai se tornando tão obcecado com o próprio enigma que perde o foco daquilo que inicialmente se propôs a fazer. E é uma pena, já que a montagem e a fotografia se esforçam ao máximo para criar uma coesão negada pelo roteiro: as transições entre cenas e sequências, por exemplo, são feitas com uma inventividade brilhante - um pequeno movimento de câmera ou um corte preciso podem mudar o rosto ou a idade do personagem, criando uma instigante sensação de fluidez temporal ou entre “realidades”. No entanto, o roteiro, disperso e cheio de reviravoltas que mais distraem do que aprofundam a narrativa, parece mais interessado em criar um quebra-cabeça do que em contar uma história coesa. E aqui reside o maior problema do projeto: ele estimula o espectador a tentar "decifrar" o que está acontecendo em vez de permitir que simplesmente se entregue à experiência.
Neste sentido, esta talvez seja a primeira vez em que enxergo problemas no excesso de foco no roteiro, mas a verdade é que Reflexos em um Diamante Morto é bem mais interessante quando se entrega à pura paixão pelo Cinema e deixa a trama de lado.
15) Remetendo às origens da carreira da cineasta Lúcia Murat, que havia flertado com a hibridez de gêneros em sua estreia em longas com Que Bom Te Ver Viva, de 1989, seu novo trabalho – Hora do Recreio – é um filme que também se apresenta como uma combinação de documentário e ficção (ou um tipo específico de ficção). Engajada desde o início com temas políticos e questões sociais como a ditadura militar e a resistência (ela própria tendo sido presa e torturada pelos fascistas), Murat lança neste filme um olhar preocupado e cheio de empatia sobre as vivências de adolescentes de escolas públicas do Rio de Janeiro – e até por isto ele acabou sendo exibido na Berlinale na mostra “Generations 14+”.
Retrato cru e importante das desigualdades, violências e opressões que moldam o cotidiano desses jovens, Hora do Recreio já começa com uma sequência longa e impactante, já que seus vinte primeiros minutos (talvez um pouco mais) consistem em uma série de depoimentos de alunos, com idades entre 15 e 16 anos, que compartilham em sala de aula experiências profundamente dolorosas, falando sobre os abusos físicos sofridos por suas mães — uma realidade tristemente comum —, sobre racismo, transfobia e homofobia. Tocante não só pelo que é dito, mas também por como e por quem é dito, esta passagem traz, por exemplo, um jovem de 17 anos que, já grande, expressa o desejo de poder proteger a mãe quando "crescer" - uma fala que comove imensamente não só por sua dor, mas especialmente quando lembramos que, para parte considerável da sociedade, ele já é visto como um adulto — e, portanto, como alguém que deve ser responsabilizado e punido, não protegido (e é claro que o racismo também desempenha um papel nesta visão).
Porém, o filme vai além dos depoimentos, já que, a partir de certo ponto, Murat faz uma escolha inesperada ao expor o próprio processo de filmagem, revelando que aquela "sala de aula" é, na verdade, uma encenação: os alunos são reais, assim como suas histórias, mas o espaço foi montado para o filme, já que nenhuma escola da cidade do Rio de Janeiro autorizou as gravações em suas salas. Essa decisão de incluir-se na tela, que poderia ser interpretada como narcisismo em outros contextos, aqui serve para denunciar a tentativa constante do Estado de suprimir qualquer forma de denúncia; a cineasta não se coloca na narrativa por vaidade, mas para evidenciar as barreiras impostas àqueles que tentam dar voz às injustiças sociais (algo que também é apontado pelos próprios adolescentes).
Dividido em três partes (a primeira, como mencionado, é composta pelos depoimentos dos alunos), o longa a seguir passa a enfocar a dificuldade de filmar em uma escola de outra comunidade devido a uma operação da polícia militar que basicamente a invadiu — uma sequência que expõe a violência e a opressão que atravessam o cotidiano desses jovens, que em essência vivem em uma espécie de zona de guerra. Já a terceira parte traz uma encenação teatral de trechos de “Clara dos Anjos”, de Lima Barreto, realizada pelos próprios alunos vistos na introdução. A escolha do texto, claro, não é aleatória: Barreto, um escritor negro, discute temas que ecoam profundamente a realidade desses adolescentes – e é curioso como, durante a encenação, os jovens não apenas interpretam, mas também refletem sobre o racismo presente na própria obra, questionando palavras e atitudes do texto original que, embora datas, ainda refletem em suas vidas.
Transformando esta mistura de gêneros em uma reflexão sobre como a Arte representa um espaço de resistência e reflexão, Hora do Recreio consegue, em pouco mais de uma hora e vinte minutos, discutir temas urgentes e – tão importante quanto isso - também celebrar a resiliência e a capacidade de análise da conjuntura social por parte dos jovens que retrata e que já foram forçados a crescer com uma cruel rapidez pelo mundo que os cerca.
16) Se Eu Tivesse Pernas, Eu Te Chutaria é o título perfeito para um filme cuja protagonista experimenta ao mesmo tempo uma profunda exaustão e uma frustração crescente diante das pressões de seu cotidiano. Funcionando como um estudo de personagem que leva o espectador a sentir a ansiedade de uma personagem que só não desiste de tudo por ter ciência de suas responsabilidades, este longa escrito e dirigido pela atriz Mary Bronstein (que faz uma pequena participação como uma médica que contribui para as tensões da protagonista) é intenso, claustrofóbico e sustentado por uma performance magistral de Rose Byrne, que desde já se torna uma das favoritas ao prêmio de atuação desta edição do Festival de Berlim.
Trazendo o público para perto da personagem desde o primeiro segundo, já que a projeção abre com um primeiríssimo plano do rosto de Linda (Byrne) enquanto participa de uma sessão de aconselhamento psicológico ao lado da filha pequena, o filme amplifica cada uma das microexpressões da atriz, que transmite uma variedade de sentimentos - frustração, cansaço, irritação, vulnerabilidade – em questão de poucos minutos. Sem jamais incluir a criança ou a terapeuta no campo, Bronstein já estabelece assim a abordagem geral da obra, ressaltando o sentimento de isolamento de uma mulher à beira de um colapso.
Mãe de uma filha que há um bom tempo encontra-se doente (a natureza da doença nunca é totalmente esclarecida, mas exige cuidados intensivos que incluem um tubo de alimentação), Linda precisa cuidar da criança ao mesmo tempo em que lida com o trabalho, com a reforma de sua casa (o teto de seu quarto desabou de uma hora para outra) e com a ausência do marido, um militar que está em uma longa viagem e faz ligações constantes para cobrar informações sobre a situação da filha e da casa (o bem-estar da esposa aparentemente é irrelevante). Assim, ao optar por não mostrar a filha ou o marido — apenas ouvimos suas vozes —, a diretora evita a empatia imediata que sentiríamos diante da imagem de uma criança com um tubo de alimentação e permite que sejamos confrontados apenas com o trabalho e a carga emocional e física que ela representa, ao passo que o marido se estabelece como uma presença-ausência que em vez de companheirismo oferece somente tensão adicional.
Enquanto isso, a câmera inquieta e os quadros fechados do diretor de fotografia Christopher Messina contribuem para a sensação agoniante que permeia a projeção, ao passo que o desenho de som desempenha um papel crucial ao salientar o nervosismo de Linda através do bipe constante da máquina que monitora a filha, do ruído da babá eletrônica, da estática que aumenta à medida que a protagonista se afasta do quarto de hotel para respirar um pouco e da vibração grave que por vezes toma conta do ambiente, reforçando seu desconforto e sua ansiedade.
Evocando a exaustão física e emocional da personagem com uma intensidade que é ao mesmo tempo dolorosa e divertida, Rose Byrne cria uma ligação tão grande com o espectador que, ao testemunharmos seu alívio ao chegar em casa e tirar os sapatos, praticamente sentimos a sensação de descompressão de seus pés. Ao mesmo tempo, a ironia representada por sua profissão - como psicóloga, ela precisa projetar segurança e controle aos pacientes enquanto sua vida pessoal desmorona - é explorada com humor à medida em que ela vai se mostrando cada vez mais irritada diante do descaso de todos para com sua situação. Aliás, suas pequenas explosões, ainda que justas, também são capazes de provocar risos, o que é instrumental para aliviar ao menos a carga emocional do espectador, já que esta trégua jamais é oferecida à protagonista . Vale ressaltar também a excelente presença no elenco secundário do (ótimo) comediante e apresentador Conan O’Brien, que, como o psicólogo da protagonista - em uma performance contida e surpreendente na qual até seu topete tradicional foi domado - adiciona uma camada de ironia ao filme ao demonstrar uma impaciência que reforça como ninguém (nem seu psicanalista!) parece empatizar com sua situação.
Tocando ainda em questões importantes sobre a maternidade e as expectativas sociais em torno desta, Se Eu Tivesse Pernas, Eu Te Chutaria questiona, através de Linda, a ideia de que toda mulher nasceu para ser mãe e deveria aceitar isto, destacando como a sociedade desconsidera as necessidades, sonhos e frustrações individuais das mulheres em favor de um ideal maternal.
Vitrine mais do que merecia ao talento de Rose Byrne, já dona de uma carreira longa e repleta de belas performances, não será surpresa caso este filme resista à distância da qual se encontra da temporada de premiações 2026 e transforme sua protagonista em uma das favoritas às principais estatuetas do próximo ano.
16 de Fevereiro de 2025